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Primeiros comentários sobre “A ditadura revolucionária do proletariado”, de N. Moreno #4 (E. Mandel)




Primeiros comentários sobre “A ditadura revolucionária do proletariado”, de Nahuel Moreno

(junho, 1979)

Ernest Mandel

Tradução de Roberto F.


Índice

4 — Uma incapacidade de entender a função objetiva da democracia proletária

5 — A substância política do debate



4 — Uma incapacidade de entender a função objetiva da democracia proletária


Na raiz de todas essas revisões e sérios erros do camarada Moreno, está uma fraqueza teórica fundamental: uma incapacidade de compreender a função, o papel objetivo, da democracia proletária na luta de classes, na revolução socialista e na construção do socialismo.


Paradoxalmente, o camarada Moreno transfere ao proletariado aquilo que ele começou definindo como uma característica da concepção burguesa de democracia: a diferença entre “democracia para a classe” e “democracia para os indivíduos”. Expulse o instinto e ele retornará com uma vingança. Na realidade, o camarada Moreno está expressando uma concepção burguesa da democracia proletária.

“Quando falamos das liberdades da classe trabalhadora, distinguimos dois níveis: aquele da classe trabalhadora como um todo na sociedade e aquele dos trabalhadores como indivíduos em sua classe. Esses dois níveis não são o mesmo; sua relação é dialética, e eles estão, frequentemente, em contradição um com o outro”


Na verdade, a conexão entre “liberdade na sociedade” e “liberdade na classe” é estruturalmente distinta para a burguesia e para o proletariado. O individualismo burguês — e sua concepção de liberdades individuais — é baseado na propriedade privada e na competição (e esse é o porquê dele decair intensamente na época do capitalismo monopolista). Igualdade entre o comprador e o vendedor de mercadorias é suficiente para o burguês, porque reproduz, mais ou menos automaticamente, as relações de produção e de exploração sobre as quais o reino do capitalismo se funda — exceto em momentos de grandes crises, especialmente crises revolucionárias. Além disso, a democracia entre a burguesia deve arbitrar conflitos intra-burgueses (isto é, aqueles que surgem da competição) e cristalizar o “interesse comum” da burguesia contra seus inimigos (sobretudo o proletariado, mas, anteriormente, contra a nobreza e, frequentemente, contra um competidor estrangeiro).


A situação do proletariado é totalmente diferente. Ela começa de um estado de atomização e dispersão que é reforçado, não eliminado, pela pobreza, pelo desemprego e pelas leis do mercado. Para se defender, ele [o proletariado] deve ser capaz de se organizar: um trabalhador não é páreo para um patrão, individualmente. Porém, a organização da classe trabalhadora nunca é o resultado automático do desenvolvimento econômico. Ela requer um esforço consciente. Logo, a liberdade de organização, a mais elementar liberdade da classe trabalhadora contra a classe inimiga, tem como pré-condição a liberdade de associação entre os trabalhadores; uma não pode existir sem a outra (caso contrário, o sindicato fascista com 100% de membros seria o melhor instrumento para a luta de classes).


Em seu caminho para estabelecer unidade — para não falar da conquista da consciência de classe — a classe trabalhadora não só tem que superar a atomização causada pela pobreza, pelo desemprego e pela competição. Ela também deve superar variações no interesse, na atitude, na tradição — e, em última análise, seus diferentes níveis de consciência são, ao menos parcialmente, determinados por essas variações — entre diferentes setores da classe trabalhadora: qualificados ou não qualificados; ofícios que têm uma longa tradição de qualificação (imprensa) e aqueles que se tornaram qualificados recentemente; pioneiros e retardatários na questão da sindicalização; residentes de grandes concentrações proletárias e recém-chegados do campo; trabalhadores “nativos” ou imigrantes; homens e mulheres; adultos e crianças, etc., etc.


Nós, portanto, compreendemos que a contradição real não é entre a “liberdade da classe contra as grandes corporações” e a “liberdade individual dos membros da classe”, mas sim o conflito entre o interesse de classe, tomado como um todo, e os interesses de certos setores (o que é ainda mais verdadeiro numa escala mundial do que em cada país tomado separadamente). E nós compreendemos que uma livre associação desses diferentes setores da classe trabalhadora é uma pré-condição absoluta para a conseguir, efetivamente, a unidade de classe.


Se qualquer setor, até uma maioria, tentasse impor qualquer coerção a [outros] grandes setores (a questão de impor disciplina a indivíduos não tem nada a ver com isso), o único resultado seria que esses setores perpetuariam a divisão da classe trabalhadora, tornariam impossível sua real unificação, para não mencionar a unificação em organizações estáveis e consolidadas. O resultado seria um enfraquecimento geral da classe trabalhadora em relação a seu inimigo. Longe de ser um “luxo” subordinado às “necessidades da luta de classe”, a democracia proletária é uma pré-condição indispensável para alcançar uma maior efetividade na luta de classes.


O que é verdade, do ponto de vista da mera unidade organizacional da classe trabalhadora contra a burguesia, é ainda mais verdadeiro do ponto de vista da formulação de nossas táticas, estratégias e métodos efetivos de formas de luta contra os capitalistas. A classe trabalhadora não tem um conhecimento científico inato. Infelizmente, não o receberá do camarada Moreno, com seu revisionismo pró-burocrático. O método e o programa marxistas revolucionários são uma grande contribuição. Mas eles não têm uma resposta pronta para tudo, caso contrário, um papagaio seria o melhor marxista e o melhor revolucionário.


Além disso, a assimilação do método e do programa marxistas revolucionários por milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares e até milhões de trabalhadores é um processo extremamente difícil e complexo, determinado, não só pela heterogeneidade da classe trabalhadora e pela profusão de correntes e de tradições ideológicas que marcaram o seu despertar e sua tradição organizacional em diferentes países, mas também pela descontinuidade na atividade (e, portanto na experiência) de diferentes camadas do proletariado.


De novo, qualquer tentativa de impor a “linha correta” por meio de canais hierárquicos, decisões administrativas ou coerção, só pode levar à consolidação das divisões e fragmentações ideológicas, políticas e organizacionais, ou seja, ao enfraquecimento do proletariado frente à burguesia.


O tema se complica ainda mais com o aparecimento, no movimento dos trabalhadores, de uma burocracia privilegiada, que age como correia de transmissão de influências ideológicas burguesas, materialmente interessada, em diferentes graus, em manter o status quo social, em função de seus próprios privilégios materiais. Quase todas as organizações de massa são dirigidas por tal burocracia, assim como ocorre nos Estados operários burocratizados.


Agora, o camarada Moreno admite que essas burocracias são “corruptas e contrarrevolucionárias”. (p.184) Dizer que elas são “corruptas e contrarrevolucionárias” implica que elas têm uma tendência a trair a maior parte das lutas iniciadas pela massa de seus membros, ainda mais do proletariado como um todo. Ainda assim, para desafiar o poder dessas burocracias e desalojá-las de suas posições de direção, a democracia proletária é essencial. Logo, é indispensável tornar as organizações proletárias existentes — incluindo as existentes nos Estados operários e os exércitos desses países — em instrumentos efetivos da luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. É precisamente esse ponto de vista que desapareceu, completamente, do argumento do camarada Moreno.


O que é verdade no processo da luta de classes e da revolução socialista mundial atuais se aplica da mesma forma ao processo de construir o socialismo ou, se você quiser, à administração da economia, do Estado e de todas as outras esferas sociais sob a ditadura do proletariado. Se existisse uma bíblia, em que respostas prontas pudessem ser achadas para todas as questões que concernem as escolhas que devem ser feitas a cada momento, nacional e internacionalmente, em todas essas diferentes áreas, esse não seria o caso. Mas tal bíblia não existe e, com todo o respeito, nem o camarada Moreno nem a sua fração a escreverão.


Nessas circunstâncias, só existem duas possibilidades: uma minoria — seja “burocrática” ou “revolucionária” — usurpa o direito de tomar essas decisões do proletariado como um todo. Nós não estamos dizendo que isso é “imoral”, “muito duro”, “não está de acordo com as nossas normas legais”. Nós dizemos que isso é ineficiente, que isso enfraquece o proletariado e a sua ditadura em relação ao inimigo de classe, que isso aumenta a magnitude de erros, de desperdícios de custos e de sacrifícios inúteis impostos ao proletariado e aos seus aliados, que isso atrasa a vitória final sobre o inimigo e dificulta a construção do socialismo. Mais uma vez, a democracia proletária é uma pré-condição para uma luta de classes eficiente contra a burguesia e contra o imperialismo, para uma luta efetiva para construir o socialismo.


Portanto, nós acatamos, completamente, a “definição pré-histórica” (Moreno o disse, pp.181–182) de que a ditadura do proletariado se identifica com a democracia proletária não, repetimos, porque ela corresponde às nossas normas, mas por razões de eficiência. Se o camarada Moreno discorda, ele deve provar o contrário, não simplesmente afirmar isso com base em experiência histórica (p.211), que é exatamente a experiência das burocracias dominantes (a não ser que o revisionismo seja levado ao ponto de proclamar a burocratização de qualquer organização ou Estado proletário como inevitável). Quando ele afirma (pp. 107, 182) que Trotsky revisou, posteriormente, essa definição, ele não está falando a verdade. Aqui está o que Trotsky escreveu dezoito anos depois da revolução de Outubro sobre o tema:


“Muito pior, entretanto, é a seguinte ideia: ‘essa ditadura do proletariado… deve ser afrouxada e progressivamente transformada em democracia proletária conforme a construção socialista vá à frente’. Dois erros de princípio profundos estão contidos nessas poucas linhas. Eles contrapõem a ditadura do proletariado à democracia proletária. Mas a ditadura do proletariado, por sua própria essência, pode e deve ser o ápice do desabrochar da democracia socialista. Para realizar uma enorme revolução social, o proletariado necessita de sua máxima concentração de forças e de capacidades. É justamente para superar seus inimigos que ele deve ser organizar democraticamente. A ditadura, de acordo com Lenin, deve ‘ensinar qualquer cozinheiro a liderar o Estado’. A espada da ditadura mira os inimigos de classe: a base da ditadura consiste na democracia proletária”. (grifos adicionados Wither France, Trotsky)


O camarada Moreno leva a confusão ao ponto de escrever: “o proletariado chinês também necessita de liberdades formais como a de imprensa, opinião e assembleia” (p.74).


Os marxistas chamam essas liberdades de “formais” sob o capitalismo por causa da existência da propriedade privada, da dominação burguesa e das gigantescas desigualdades econômicas e sociais, que significam que um milionário tem cem mil vezes mais oportunidades de realmente exercer a “liberdade” de publicar um jornal do que um trabalhador individual (a liberdade de imprensa não é completamente formal sob o capitalismo, porque mil ou cem mil trabalhadores, juntos, podem comprar gráficas e publicar grandes jornais, contanto que a liberdade real não seja tirada deles por um sistema de ditadura burguesa mais brutal)


Todavia, na China, a propriedade privada, inclusive de gráficas, de salas de reunião, foi abolida. De fato, o proletariado chinês deve conquistar — via revolução política e no caminho até ela — a real, e não a formal liberdade de expressar à vontade sua opinião sobre todas as grandes questões da política internacional, econômica, social e cultural. Longe de ser “formal” ou “de segunda linha”, essa liberdade é uma pré-condição para uma administração do Estado proletário Chinês contra seus inimigos externos e internos. É uma condição essencial para consolidar a ditadura do proletariado na China.


Mais uma vez, o camarada Moreno pode acreditar no contrário. Mas, então, ele deve provar. Ele, dificilmente, o faz em seu livro. É a sua maior fraqueza, junto com a utilização sistemática de falsificações caluniosas das posições contra as quais polemiza.


Nós baseamos nosso argumento em dois exemplos. O camarada Moreno gosta de fazer referências a sindicatos. Mas a conexão essencial entre a liberdade sindical contra os patrões e a liberdade para os “membros individuais do sindicato” não está, de forma alguma, no nível em que o camarada Moreno tenta colocá-la, entre os fura-greves e os agentes individuais da burguesia.


Se um balanço é feito das grandes greves por todo o mundo — e não só na Europa ocidental — nos últimos sessenta anos, nós descobrimos, facilmente, que para cada greve perdida em função da ação de “fura-greves” e de “infiltrados patronais”, existiu uma centena de greves ou perdidas, desviadas de seu objetivo inicial, ou impedida de se alastrar para a utilização do máximo potencial militante da classe trabalhadora, por causa da burocracia sindical. Os piores fura-greves, em sentido histórico, são os líderes burocráticos. Mas é impossível lutar contra eles efetivamente sem a conquista e a defesa mais enciumada da mais ampla democracia nos sindicatos e a mais ampla democracia nas fábricas. Comparadas a essa tarefa primária, parar fura-greves desorganizados, individuais ou ocasionais é algo completamente secundário. Todos os trabalhadores organizados com o mínimo de experiência sabem perfeitamente como superar esse problema sem a mínima restrição da democracia proletária.


Nós acabamos de testemunhar um espetáculo massivo e importante com a visita do Papa João Paulo II à Polônia. Deixemos de lado o acordo feito, obviamente, entre a burocracia polonesa e o Vaticano e o interesse que a burocracia tem em dirigir a oposição política por canais católicos em vez de canais comunistas e socialistas oposicionistas. Vamos também deixar de lado as características nacionais e culturais da Polônia, que, parcialmente — mas só parcialmente — explicam por que a influência da religião católica e de seu clero persistiu mais fortemente nesse país do que em qualquer outro país da Europa oriental.


O fato continua a ser que, trinta anos após a derrubada do capitalismo nesse país e, para usar a linguagem do camarada Moreno, depois do estabelecimento da “ditadura burocrática do proletariado”, milhares de pessoas (trabalhadores, camponeses, intelectuais, jovens) se voltaram para a Igreja Católica, em uma mobilização cujo aspecto político não poderia enganar ninguém. Nós perguntamos ao camarada Moreno: qual é a causa fundamental desse triste fenômeno? O cerco capitalista? A ofensiva de Carter? Nós não acreditamos que eles contem por mais de 10% de seu escopo. Nós acreditamos que ele se dá, fundamentalmente, pelos efeitos desmoralizantes, tanto objetivos quanto subjetivos, da ditadura da burocracia.


Se a burocracia não entregasse ao clero o presente de ser a única organização legal semi-oposicionista; se ela não tivesse substituído sistematicamente a formação de uma mentalidade nacionalista e chauvinista, tradicionalmente incorporada no clero, por uma ênfase na luta de classes polonesa no pré-1939; se ela não tivesse banido os partidos tradicionais e as correntes do proletariado e da pequena-burguesia (muitas das quais foram e continuaram a ser fortemente anticlericais); se não tivesse banido greves e permitido que o clero aparecesse como a única força legal defendendo os trabalhadores punidos; se tivesse permitido uma vida política intensa e democrática, incluindo um partido legal católico, que teria, então, sido compelido a se posicionar sobre todas as questões sociais — e algumas de suas posições, em relação ao aborto, à administração de empresas e ao estabelecimento de preços alimentares teriam sido muito impopulares entre os trabalhadores e as trabalhadores, temos certeza — nós não dizemos que a influência da Igreja Católica teria desaparecido na Polônia, mas estamos convencidos de que ela seria qualitativamente menor do que é hoje.


Mais uma vez, o camarada Moreno pode discordar dessas duas opiniões. Mas ele precisa demonstrar, não afirmar categoricamente, a teoria de que as restrições à democracia socialista são inevitáveis em função do “cerco capitalista” ou dos “inimigos de classe infiltrados”. A burocracia, felizmente, se identifica com a organização (e, onde o capitalismo foi derrubado, com o Estado). Ela considera, em princípio, todos aqueles que a criticam, que questionam sua gestão, que demandam que seu poder arbitrário e seus desperdícios devem parar (incluindo, especialmente, seu poder jurídico arbitrário), “objetivamente” trabalham para o inimigo, isso se não forem “agentes do inimigo”. O camarada Moreno aprova esse raciocínio? Se não, qual é o objetivo de todas as suas tiradas sobre as restrições necessárias à democracia socialista (proletária) em função de “dificuldades objetivas”? Por que ele rejeita a identidade entre ditadura do proletariado e democracia proletária, que vem diretamente de Marx, Lenin e Trotsky?


5 — A substância política do debate


Contudo, enquanto as ideias do camarada Moreno são mais sistematicamente perigosas e revisionistas do que se poderia pensar a uma primeira olhada, sua função política é diferente daquela afirmada pelo autor (se ele está consciente dessa função ou não, é menos importante).


Na realidade, o debate não é entre defensores da “ditadura revolucionária do proletariado” e defensores de uma “ditadura branda do proletariado”, não, “semi-reformistas”. O debate tem foco em uma questão bem diferente.


Para os autores da resolução Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado, essa resolução tem uma função precisa: facilitar a vitória da revolução proletária, ou seja, o estabelecimento de um real (apesar de “brando”, de acordo com os dogmas do camarada Moreno) poder soviético em alguns países-chave do mundo nos próximos anos. Nós temos uma fé de ferro nessa possibilidade, não só na Europa capitalista, mas também em alguns Estados operários burocratizados e em alguns países semi-coloniais semi-industrializados importantes.


Toda a nossa abordagem se baseia nessa perspectiva e nessa função. Nós nos baseamos na experiência real, não em guerras civis em países atrasados, mas em revoluções proletárias (ou seja, aquelas “realizadas” pelo proletariado urbano, incluindo o início da revolução política na Hungria e na Tchecoslováquia) que, realmente, ocorreram nos últimos sessenta anos. E nós percebemos que nenhuma dessas revoluções faliu em função de questões como “dureza” ou “pluralidade partidária” ou “rejeição da violência”, mas em função das questões que discutimos bastante detalhadamente na resolução do SU.


Se a maioria do proletariado pode ser convencida dessas concepções, as próximas revoluções proletárias vencerão; o Estado burguês será destruído; o poder soviético triunfará. Se não for convencida desse programa — por um partido revolucionário e por uma Internacional revolucionária, claro —, então as revoluções serão derrotadas como na Alemanha, na Espanha e no Chile.


O camarada Moreno aborda esse problema de uma forma diametralmente oposta. Para ele, as causas das derrotas das últimas revoluções proletárias foram objetivas, não subjetivas. Elas não se encontram na política traidora das direções, em manter a hegemonia no proletariado, no nível insuficiente de consciência de classe proletária ou na incapacidade de compreender a necessidade de esmagar o Estado burguês. Elas estão no papel da “aristocracia de trabalhadores em escala mundial” representada pelo proletariado dos países industrializados. Enquanto não houver uma piora catastrófica da qualidade de vida desse proletariado, será impossível estabelecer a ditadura do proletariado nesses países.


Estamos exagerando? Julgue você mesmo:


“… capitalismo, em seu estado superior, o do imperialismo, foi bem sucedido em tornar aristocráticos grandes setores da classe trabalhadora nos países imperialistas e em manter uma forte classe média lá… Essa divisão nas fileiras dos trabalhadores é a causa social de todos os outros fenômenos” (p.218)


Entretanto, essa classe operária “aristocrática” se levantou mais do que uma vez em enormes batalhas anticapitalistas: as batalhas revolucionárias alemãs e austríacas em 1918–1919, 1920, 1923 e 1927; as óbvias greves anticapitalistas na Itália em 1919, 1920, 1945, 1948 e 1969; a greve geral britânica em 1926; a greve geral francesa em 1936 e em 1968; a revolução política espanhola em 1934–1937 e o levante revolucionário (incluindo greves gerais políticas em níveis regionais) em 1975–1976; a revolução portuguesa de 1974–1975 e a lista continua. Nós sempre acreditamos que, apesar de sua “corrupção aristocrática” o proletariado desses países demonstrou, em várias ocasiões, sua tendência instintiva a reorganizar a sociedade em uma base socialista e que, somente o fator subjetivo (a traição por parte dos aparatos burocráticos, a fraqueza da direção revolucionária, a inadequação de seu nível de consciência) impediu a vitória dessas revoluções. Esse é o significado da fórmula do Programa de Transição: “a crise histórica da humanidade se reduz à crise da direção revolucionária”.


O camarada Moreno agora diz: não, a classe trabalhadora dos países imperialistas deve ser culpada. Ela é corrompida pelo imperialismo e não quer uma revolução. “A existência do imperialismo implica que toda a dinâmica da revolução mundial se alterou” (p.220). E essa dinâmica não retornará ao “curso correto” a menos que as condições de vida do proletariado ocidental se deteriorem de uma forma catastrófica:


“Enquanto os trabalhadores europeus não forem atingidos por uma crise econômica brutal, pelo desemprego, por 100 a 150% de inflação anual, pelo aparecimento de gangues fascistas e por golpes bonapartistas e fascistas, as ilusões burguesas-democráticas não serão aniquiladas. Nada nem ninguém será capaz de destruí-las.” (pp.92–93)


Essa é uma mudança drástica em relação à posição que o camarada Moreno e que sua Tendência Bolchevique tinham posto em prática há dois anos, em sua plataforma, focado na iminência da revolução proletária na Europa, num momento em que não havia nem miséria, nem 100–150% de taxa de inflação, nem golpes fascistas ou bonapartistas. Porém, o camarada Moreno nos acostumou a esses giros de 180° nesses últimos poucos anos: primeiro, contra a concentração do trabalho no movimento de massas Peronista, depois entrismo total nesse movimento; primeiro, a favor de obediência incondicional a comandos de guerrilha, depois ataques violentos ao “guerrilheirismo”, que deveria ser levado para os “tribunais populares”: primeiro, apoio à ofensiva contrarrevolucionária de Mário Soares em Portugal em maio-junho de 1975, depois um ataque violento a essa ofensiva (seguido por um chamado por um governo de Soares sem especificar qual programa ou com uma frente única com o PCP!). Nós podemos apostar que bastam poucos eventos espetaculares para o camarada Moreno mudar de posição, de novo, em relação às chances de revolução proletária na Europa.


Todavia, deixem-nos manter a coerência de sua posição atual. Dada a força do movimento de trabalhadores europeu; dada a capacidade da classe trabalhadora de resistência; dado que a ofensiva do patrões ganhou somente alguns pontos percentuais nos últimos muitos anos (rapidamente neutralizada por contra-ofensivas da classe trabalhadora; dada a posição competitiva dos imperialistas europeus no mercado mundial; dadas as sucessivas ondas de crises políticas e sociais multifacetadas, é óbvio que as “pré-condições” objetivas para o proletariado europeu se tornar “maduro” para a ditadura do proletariado ainda requererá uma ou mais décadas.


Até lá, nenhuma ditadura do proletariado está na agenda.


E o camarada Moreno não hesita em especular sobre o que acontecerá “se a revolução mundial não avançar, ou se ela avançar objetivamente por vitórias nacionais que se mantém congeladas nessas fronteiras” (p.213). Essa foi a “tendência dos últimos sessenta anos”. Prudentemente, o camarada Moreno não comenta a tendência futura. Mas, implicitamente, ele continua a acreditar que o imperialismo continuará a dominar em toda a sua fortaleza nas próximas décadas, o que quer dizer que a revolução proletária é impossível por razões objetivas em países imperialistas.


Em outras palavras: para o camarada Moreno, toda a discussão no presente não tem a intenção de armar a Quarta Internacional para uma luta política real que acontecerá agora ou que começará em um futuro relativamente previsível. É meramente voltada a manter o programa intacto enquanto esperamos por dias melhores. Essa é a concepção “refrigeracionista” do programa, oposta à concepção funcional dele (com a refrigeração, além disso, produz-se uma boa quantidade de podres revisionistas, como nós mostramos).


Vamos imaginar uma reunião, digamos, da direção das comissões de trabalhadores de Setúbal em 1975 (o ponto mais perto de uma organização pré-soviética alcançado pela revolução portuguesa). O camarada Moreno levanta e diz solenemente: “camaradas, nós devemos lutar pela ditadura violenta e revolucionária do proletariado. Mas, por favor, sem ilusões. Assim que vocês ganharem, as tropas alemãs, o exército espanhol, as forças expedicionárias americanas ou as forças expedicionárias do Pacto de Varsóvia vão atacar vocês. Vocês devem se preparar para anos de guerra civil e internacional, milhões de mortes, sacrifícios sem limites e pobreza, pior que a dos russos, dos chineses e dos vietnamitas”. Aplausos mudos (e risadinhas) dos social-democratas e dos estalinistas. O resultado da votação é determinado logo depois (é verdade que o camarada Moreno liga pouco para votações, que são fenômenos do “individualismo pequeno-burguês” e das “ilusões burgueses democráticas” em um período revolucionário).


Na verdade, durante todas as revoluções proletárias que ocorreram até agora, a impossibilidade de evitar guerras contrarrevolucionárias sangrentas por meio da solidariedade internacional e da extensão da revolução sempre foi o argumento principal dos oponentes reformistas da socialização do poder pelo proletariado e da ditadura do proletariado. Foi o argumento principal dos mencheviques na Rússia antes de Outubro, foi o argumento principal utilizado pelos socialistas e pelos estalinistas espanhóis (não sem alguma ajuda dos líderes anarquistas) em 1936–1937. O camarada Moreno anda com companhias bem estranhas, para dizer o mínimo.


Esse é o motivo pelo qual sua acusação de que fazemos concessões aos “preconceitos democráticos” do proletariado europeu (ou melhor, ao cada vez mais claro avanço na consciência anti-burocrática por parte do proletariado de todos os grandes centros industriais do mundo, seja em Barcelona, Turim, Detroit, São Francisco, Córdoba ou São Paulo, Osaka ou Bombaim, Praga ou Leningrado) parece mais um elogio para nós. Contudo, para um revolucionário, é melhor dirigir uma revolução proletária, apesar do preço das “concessões aos preconceitos democráticos dos trabalhadores” do que continuar cético acerca da possibilidade da revolução, acerca do potencial revolucionário do proletariado e do poder dos sovietes, é melhor do que se satisfazer com a defesa de uma “pureza programática” sob o capitalismo e, assim, fazer mais uma pequena contribuição para a derrota de revoluções possíveis.


15 de junho de 1979


* A resolução citada no texto "Democracia socialista e ditadura do proletariado", objeto da polêmica desenvolvida no presente texto, pode ser lida em português neste link: https://www.marxists.org/portugues/tematica/1985/01/dsdp.pdf

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