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Primeiros comentários sobre “A ditadura revolucionária do proletariado”, de N. Moreno #3 (E. Mandel)



Primeiros comentários sobre “A ditadura revolucionária do proletariado”, de Nahuel Moreno

(junho, 1979)

Ernest Mandel

Tradução de Roberto F.


Índice

3 – Concessões teóricas sérias à burocracia


3 – Concessões teóricas sérias à burocracia


O livro do camarada Moreno é repleto de concessões teóricas à burocracia, concessões que combinam com o início de uma revisão programática para traçar um caminho particularmente perturbador para a batalha total lançada pela Fração Bolchevique à (resolução) Democracia Socialista e ditadura do proletariado.


Isso já fica aparente no vocabulário. Deixando de lado poucas exceções, o camarada Moreno confunde Estados operários com Estados operários burocratizados, ou seja, Estados em que o proletariado exerce o poder no sentido político e imediato do termo e Estados em que ele foi despojado do poder por uma casta burocrática privilegiada (ou onde ele nunca exerceu esse poder), como se essa distinção fosse somente um aspecto absolutamente menor do problema da ditadura do proletariado.


E, mesmo quando ele discute a quantidade insuficiente de democracia socialista em determinados Estados operários, ele o faz em termos realmente chocantes para um Trotskista. O que mais se pode dizer dessa seguinte passagem?


“A revolução dos trabalhadores chineses, apesar de ter sido liderada pela burocracia, representou uma expansão colossal de ‘democracia proletária’, não só em comparação com o regime de Chiang, mas também em relação com as mais avançadas democracias burguesas, que são baseadas na exploração totalitária e bárbara das nacionalidades oprimidas e dos povos coloniais. O proletariado é organizado em sindicatos, e os camponeses em comunas, que são legais e incluem milhões de trabalhadores. O mesmo se aplica em conexão com a oferta de jornais, de prensas para imprensa, rádios e salas de reunião. Elas (essas ferramentas — N.T) estavam, anteriormente, nas mãos da burguesia e do imperialismo; agora estão nas mãos da classe trabalhadora (sic) e do campesinato, mesmo que controlado (sic, de novo) pela burocracia” (p.73)”


E, de forma ainda mais abrangente (desta vez incluindo, explicitamente, a ditadura totalitária estalinista):


“Uma das tarefas mais importantes do trotskismo é, precisamente, educar a classe trabalhadora do mundo para o reconhecimento das ditaduras do proletariado existentes, demonstrando que elas são muito mais democráticas (sic) que qualquer democracia imperialista, (educar — N.T) sobre a inevitabilidade (sic, de novo) de guerras contrarrevolucionárias travadas pelos países capitalistas e imperialistas contra os Estados operários e (educar) sobre a defesa destes” (p.197)


Isso poderia ser retirado de diretamente de qualquer panfleto que faça apologia do estalinismo ou do maoísmo: pela mera nacionalização dos meios de produção, particularmente das prensas de imprensa, do rádio e das estações de televisão, a “democracia proletária” sofre uma colossal expansão tendo ou não o real proletariado (ou sua imensa maioria) acesso real às prensas, etc. Proferir tais coisas é negar, na prática, a ditadura totalitária da burocracia e a expropriação política dos proletariados soviético e chinês. Pedir que a IV Internacional repita tais mentiras para o proletariado do mundo é transformá-la em uma agência de propaganda estalinista, apagando cinquenta anos de luta impiedosa contra a ditadura burocrática.


Comparar a inexistente “democracia proletária” nos Estados operários burocratizados com as restrições e com o decaimento da democracia burguesa é, de novo, imitar os sofismas clássicos da propaganda estalinista. Nós temos perfeita familiaridade com o caráter majoritariamente formal (não completamente formal, entretanto) das liberdades democráticas sob o sistema capitalista de exploração, superexploração imperialista e propriedade privada. Porém a luta implacável da classe trabalhadora arrancou, da burguesia, “embriões da democracia proletária” dentro do Estado burguês. Esses embriões são chamados fortes sindicatos e organizações políticas e culturais do proletariado, tendo suas próprias sedes, imprensas e jornais. Longe de serem “formais”, essas liberdades e vitórias são armas contra a burguesia pelas quais milhares de trabalhadores deram suas vidas. E, do ponto de vista desses ganhos e liberdades do proletariado, existe um retrocesso, não um progresso, na URSS, hoje.


Vamos pegar dois exemplos: primeiro, um sindicato. O camarada Moreno parece não saber que, por mais de uma década, durante e depois da Revolução Cultural, não existiam mais sindicatos em toda a República Popular da China. Eles só foram reorganizados nos últimos poucos anos. Ele parece não saber que, no ápice da Revolução Cultural, houve uma grande manifestação, em Shangai, da “força de trabalho da comuna” protestando contra o fato de estar sendo “alugada” às fábricas por salários baixos a ponto da inanição, bem abaixo das normas oficialmente existentes. Essa demonstração, além do mais, foi duramente reprimida. Ele parece não saber que na Polônia, bem recentemente, mais uma vez, o mero fato de estar em greve representou, automaticamente, a expulsão do sindicato e a demissão, sem que nem houvesse o direito ao seguro-desemprego. Ele parece não saber que, por décadas, os sindicatos soviéticos estiveram satisfeitos com o estabelecimento de um trabalho por peças generalizado, com a obediência cega às ordens do gestor e com uma “batalha pela produção” sem levar em consideração a saúde e a segurança dos trabalhadores, ou seja, em violação até mesmo da legislação oficialmente vigente. A situação melhorou um pouco desde então, mas o papel do sindicato não se alterou fundamentalmente.


O camarada Moreno terá a coragem sombria de dizer que, do ponto de vista dos direitos e dos poderes dos sindicatos, a “democracia proletária” é “muito mais avançada” na URSS e na China do que nos países em que o proletariado possui organizações sindicais fortes e independentes do Estado burguês e da burguesia?


Agora, o exemplo da imprensa. O camarada Trotsky expressou suas visões sobre o tema bem claramente. Ele escreveu em “A revolução traída”:


“Com certeza, o novo contrato “garante” aos cidadãos as chamadas ‘liberdades’ de discurso, de imprensa, de assembleia e de manifestações de rua. Mas, cada uma dessas garantias, tem a forma de uma pesada focinheira ou de algemas em mãos e pés. A liberdade de imprensa significa a continuação da feroz censura antecipada cujas correntes são seguradas pelo Secretariado de um Comitê Central que ninguém elegeu” (New York: Merit 1965, p.262)


O camarada Moreno não sabe que 99% dos trabalhadores soviéticos e chineses não tem acesso a nenhuma prensa de impressão? Ele não sabe que o mero fato de publicar um panfleto, para não dizer um jornal, para condenar uma injustiça feita a algum membro do proletariado, para condenar o trabalho por peças, para demandar a implementação de regras de segurança do trabalho ou mais igualdade de salários, leva à prisão, ao sentenciamento e envio para campos de trabalhos forçados por “agitação anti-soviética” ou até ao internamento em um hospital psiquiátrico? Ele vai ousar alegar que, do ponto de vista de ter capacidade de defender o seu próprio interesse de classe pela mídia, os trabalhadores soviéticos e chineses contam com muito mais liberdade proletária do que trabalhadores em países em que organizações proletárias poderosas independentes do Estado burguês e da burguesia ainda existem? Existe a possibilidade de o camarada Moreno ter a liberdade de publicar seu livro em tantas línguas — o que não é um direito garantido pela burguesia imperialista, mas uma vitória obtida sobre a classe capitalista pela luta persistente de milhões de trabalhadores à custa de enormes sacrifícios — na URSS ou na China?


O proletariado dos Estados operários burocratizados tem profundo conhecimento de sua expropriação política por parte da burocracia totalitária — que não haja dúvida sobre “expropriação política” significar perda de poderes e direitos políticos. Ela se revolta contra essa expropriação. Ela está se preparando para corrigir a situação por meio de uma revolução política. Ao tentar transformar a IV Internacional em uma máquina de propaganda se desculpando pela ditadura burocrática, o camarada Moreno não só tira isso do proletariado dos Estados operários burocratizados. Caso ele seja bem sucedido — o que é, felizmente, improvável — ele terminaria com uma profunda divisão entre o proletariado que luta pela revolução socialista e o proletariado que luta pela revolução política. Pelo contrário, a posição da IV Internacional ajuda a manter e a fortalecer a unidade do proletariado mundial, a unidade da luta dos trabalhadores ao redor do mundo, que só pode culminar no exercício do poder pelos sovietes democraticamente eleitos em todos os países.


Stalin e a burocracia soviética implementaram duas teorias fundamentais para apoiar o fortalecimento, na prática, do aparato repressivo contra os trabalhadores e camponeses de seu próprio país, que já haviam, de um jeito ou de outro, “construído o socialismo”, ou seja, para justificar a manutenção e o fortalecimento da ditadura da burocracia. A primeira consistiu no cerco imperialista e nas ameaças permanentes de guerra. A segunda foi a teoria de que a “luta de classes se agudiza” (implicando que a restauração capitalista se torna um perigo cada vez maior) conforme a construção do socialismo e, de fato, do comunismo vai adiante.


E, agora, aqui está o camarada Moreno fazendo flagrantes concessões a essas teorias… enquanto as atribui a Trotsky! De a cordo com ele, não só uma guerra contrarrevolucionária de intervenção imperialista é inevitável em cada caso de vitória da revolução, mas também é necessário concluir que esse perigo aumenta conforme a revolução vitoriosa se estende internacionalmente, conforme o número de Estados operários aumenta.


Nós estamos, obviamente, lidando com uma enorme subestimação das possibilidades de solidariedade e de extensão internacional fornecida pelas revoluções socialistas vitoriosas e com uma colossal superestimação do grau de controle que a burguesia imperialista tem sobre a população de seu próprio país. O camarada Moreno não parece ter aprendido nada com o movimento antiguerra dos EUA, ou com as consequências políticas vinculadas a ele. Ele não parece entender o tremendo apelo que uma direção revolucionária genuinamente internacionalista que comande um Estado operário em um país industrializado teria para o proletariado mundial. No fundo, ele está cético em relação à revolução mundial.


Apesar disso, o camarada Trotsky afirmou, explicitamente, o oposto:


“Se a revolução espanhola tivesse sido vitoriosa, teria dado um forte ímpeto ao movimento revolucionário na França e nos outros países. Nesse caso, nós poderíamos ter esperado, com confiança que o movimento socialista vitorioso seria bem sucedido em prevenir a guerra imperialista, tornando-a sem sentido, fútil”. (Trotsky, La revolution espagnole)


“Por antecipação, é possível estabelecer a seguinte lei: quanto mais haja países onde o sistema capitalista é quebrado, mais fraco será a resistência oferecida pelas classes dominantes em outros países, menos agudo será o caráter assumido pela revolução socialista, menos violenta será a forma que a ditadura do proletariado terá, menor ela será…


“O socialismo não teria valor se ele não trouxesse consigo, não só a inviolabilidade jurídica, mas também a completa salvaguarda de todos os interesses da personalidade humana. A humanidade não toleraria uma abominação totalitária do tipo do Kremlin” (Escritos de Leon Trotsky)


O camarada Moreno cita este último texto de Trotsky (mas omite a passagem final. Desde então, entretanto, o número de países em que o capitalismo foi esmagado aumentou de um para dezesseis. A resolução do SU está centrada na hipótese de que essa cifra ainda aumentará no futuro não-tão-distante e incluirá, pela primeira vez, alguns países com um proletariado qualitativamente mais poderoso que o da URSS em 1917, que o da China em 1949 ou que o de Cuba em 1960. Porém, mesmo citando esse texto, o camarada Moreno tem a coragem de tirar uma conclusão oposta à de Trotsky: guerras civis mais longas; uma ditadura mais severa e mais violenta; nada além de relinchos sobre a inviolabilidade jurídica; a inevitabilidade de guerras imperialistas de intervenção em larga escala. Até o presente, Posadas teve o triste monopólio desse tipo de “Trotskismo” (incluindo aquele da inevitabilidade de uma guerra nuclear mundial). Não estaria nosso “novo Lenin” mais para um “novo Posadas”?


Com certeza, enquanto o imperialismo sobreviver em um país principal, ele nunca se resignará quanto à existência de Estados operários. Ele sempre se esforçará para minar suas estruturas sócio-econômicas. Ele organizará subversão política contrarrevolucionária. Ele continuará a se armar para tentar reintroduzir o domínio capitalista por meio de uma agressão militar. Contudo, existe uma enorme diferença entre esses objetivos históricos de uma classe social em declínio, e o que ela pode alcançar na prática — determinada, por exemplo, pela correlação de forças mundialmente, pelas tendências da revolução (e contrarrevolução) mundial e pela situação doméstica nos próprios países imperialistas. O camarada Moreno não profere uma palavra sobre nada disso. Ele reduz tudo somente à ameaça militar permanente que o imperialismo implica sobre os Estados operários. Ao fazer isso, ele revisa a teoria trotskista de que, sem uma derrota de grande escala do proletariado mundial, uma guerra nuclear mundial é, se não impossível, ao menos, extremamente improvável.


Sua abordagem ao aspecto econômico do problema é ainda pior. Ela contém as seguintes tolices:


“O perigo da contrarrevolução não deriva de sentimentos restauracionistas, mas da dominação (?) da economia mundial por parte do imperialismo… Nós devemos ter um terrível medo do grave perigo representado pelas enormes tendências burguesas de direita produzidas pelo desenvolvimento econômico sob a ditadura do proletariado nessas condições. É uma questão de um processo inevitável (sic), de crescentes contradições, dadas as fronteiras nacionais dos Estados operários burocratizados, a dominação imperialista do mercado mundial e, até agora, ao relativo atraso dos Estados operários. Por essas razões, o desenvolvimento econômico produz fortes tendências capitalistas …” ***


“Trotsky estabeleceu a seguinte lei: quanto mais a economia se desenvolve, maior será o perigo de restauração; o imperialismo tentará trazer os Estados operários de volta à sua órbita via comércio, investimentos e mercado negro. O plano Carter está no processo de conseguir isso.”


Trotsky explicou que a fraca URSS da década de 1920 ser levada rumo ao capitalismo justamente por causa do desenvolvimento das forças produtivas caso ela se mantivesse isolada. Ele explicou que a Grã-Bretanha tinha mais independência no mercado mundial que a Índia ou outro país atrasado. Porém, Trotsky nunca tirou disso a conclusão de que poderia existir uma restauração do capitalismo simplesmente por meio do comércio. (Nesse caso, o que significaria a fórmula “Estado operário, apesar de burocratizado” se esse Estado não se opusesse a uma restauração, se ele não tivesse que ser, primeiramente, derrubado por uma contrarrevolução social para restaurar o capitalismo?). Menos ainda houve uma formulação, por parte de Trotsky, da absurda teoria de que, quanto mais a economia se desenvolve, qualquer que seja o nível que esse desenvolvimento alcance, maior é a chance de restauração.


Em 1926, a URSS representava menos de 5% da produção mundial. Em 1940, já representava 15%. O perigo restauracionista era maior em 1941 que em 1926? A história já respondeu a essa questão. Apesar dos crimes da ditadura estalinista, a indústria soviética muito mais poderosa conseguiu usar mais tanques, canhões e aviões contra os nazistas do que eles mesmos poderiam produzir. Além disso, Trotsky já havia previsto isso. Portanto — e por causa da feroz e heroica resistência do proletariado soviético quando o caráter bárbaro do fascismo foi compreendido, assim como da ascensão da revolução internacional, apesar de limitada e distorcida — a URSS foi capaz de vencer, não perder, a guerra contra o imperialismo nazista.


Hoje, todos os Estados operários burocratizados já representam mais de 35% da produção industrial mundial. É possível alguém alegar seriamente que o perigo de restauração capitalista é mais forte nesses Estados que em 1919, 1927, 1932 ou até 1941? Qual é a direção geral da evolução da correlação de forças? O imperialismo está mais forte ou mais fraco do que era em 1941? Mais forte ou mais fraco que em 1956? Uma correlação de forças importantemente deteriorada para o imperialismo deveria aumentar o perigo de restauração do capitalismo na União Soviética?


Entretanto, toda a nossa resolução não está preocupada com uma situação “estável”. Ela concerne a possibilidade de estender a revolução proletária a países-chave nos próximos anos. Nós lemos, anteriormente, que Trotsky escreveu em 1933 sobre as consequências de uma vitória da revolução proletária na Alemanha àquele tempo (com a URSS fraca como era à época). O camarada Moreno afirmaria seriamente que uma vitória da revolução proletária na França, na Itália, no Brasil ou, de fato, ao longo da Europa capitalista “aumentaria o perigo restauracionista na URSS em função do desenvolvimento das forças produtivas”? Na verdade, cada nova vitória da revolução em um país importante nos levaria ao limite de uma situação em que a economia capitalista mundial cairia abaixo de 50% da produção industrial mundial, em que ela estaria superada até mesmo na área de produtividade do trabalho em relação a um número-chave de bens de consumo vendidos no mercado mundial. Como ela manteria sua dominação nessas condições?


O ceticismo do camarada Moreno acerca da revolução mundial só encontra semelhança com seu ceticismo acerca da revolução política, acerca do proletariado dos Estados operários burocratizados, o que complementa muito bem seu ceticismo em relação aos sovietes. O camarada Moreno conseguiu o feito de escrever 249 páginas sobre o tema da democracia socialista e da ditadura do proletariado sem dedicar algumas linhas à revolução política. Onde ele vê os grandes sucessos do “plano Carter”, nós vemos, por outro lado, as enormes possibilidades para a revolução política, dado que o proletariado soviético supere a sua despolitização. Mas, precisamente, para esse objetivo, a criação de uma ou mais “ditaduras do proletariado” de acordo com as nossas “normas programáticas” teria um papel decisivo. Essa relação, obviamente, escapou ao nosso grande dialeta.


No caminho, o camarada Moreno faz outra considerável concessão ideológica à burocracia estalinista, que sempre alegou que, no debate entre os que defendem o “socialismo em um só país” ou a “teoria da revolução permanente”, estes queriam subordinar o desenvolvimento industrial, econômico, social e cultural da URSS às necessidades da revolução mundial. O camarada Moreno, agora, apoia Stalin, ao corajosamente afirmar que haverá duas fazes durante o período da ditadura do proletariado: uma inicial, em que tudo deve ser subordinado à vitória da revolução mundial, e uma secundária, que começa somente após a vitória da revolução mundial, quando a construção do socialismo, meramente, começará.


Essa é uma falsificação caricatural das teorias de Trotsky e da Oposição de Esquerda, mais uma vez, retirada diretamente dos livros-texto estalinistas. O camarada Moreno esqueceu que, ao mesmo tempo em que Trotsky se opôs à teoria do socialismo em um só país, ele defendeu uma industrialização acelerada e planificada da economia soviética. Isso foi somente feito por propósitos militares ou para avançar rumo ao socialismo? O debate Stalin-Trotsky tinha a ver com começar a construir o socialismo em um só país ou com a possibilidade de completar essa construção? Como um Estado operário pode se defender sem fortalecer a posição econômica e social do proletariado? Como isso seria possível sem avançar rumo ao socialismo? A dialética entre o fortalecimento do peso do proletariado domesticamente e internacionalmente — e vice-versa, suas derrotas nacionais e internacionais — se mantém um mistério para o camarada Moreno, como era para os mais ingênuos apologistas da burocracia (os mais cínicos estavam interessados somente nas mansões e no monopólio do poder para garanti-las, não nas ideias).


A conclusão mais séria — uma verdadeira justificativa “objetivista” para a ditadura burocrática — é que, em função da sobrevivência do imperialismo, a ditadura, em outras palavras, a coerção, deve aumentar em todos os Estados operários, burocratizados ou não. De acordo com o camarada Moreno, para todo o presente estágio histórico, incluindo as revoluções vitoriosas em países novos, existe


“uma lei que pode ser contrarrestada, mas não anulada: ao longo de todo estágio presente da ditadura do proletariado, de contenda final contra o imperialismo, em que as fronteiras nacionais continuarão a existir, o fortalecimento da ditadura dos trabalhadores e do Estado proletário é inevitável” (p.212 — nosso grifo)


Para botar os pingos nos “i”s, o camarada Moreno adiciona:


“Como consequência (da dominação imperialista em escala mundial) a classe trabalhadora também sofre opressão direta, como o preço da necessidade de defender o Estado dos trabalhadores… Nesse estágio, a sobrevivência das normas burguesas de distribuição é conectada a uma opressão baseada em razões políticas, funcionais…” (p. 221)


Moreno não está fazendo apologia ao estalinismo, ele não faria isso. Ele só está dizendo que, mesmo que exista uma “ditadura revolucionária do proletariado”, e não uma “ditadura burocrática do proletariado”, a opressão do proletariado continuará, porque ela tem raízes objetivas… no cerco capitalista. Trotsky = Stálin: a teoria é comum entre sovietólogos burgueses, pequeno-burgueses e social-democratas. Aqui está um imprevisto aliado para reforçar seu campo.


É realmente difícil refutar esses absurdos? Por que a necessidade de defender a URSS contra a ameaça imperialista militar deveria implicar uma opressão inevitável ao proletariado? Por que o proletariado deve produzir um excedente para manter um exército poderoso? Mas, mesmo se deixarmos de lado considerações políticas — por que não foi necessário oprimir o proletariado em 1918–1919; por que ele estava pronto para se sacrificar em defesa da revolução sem nenhuma grande coerção, apesar de ser infinitamente menor e mais fraco do que hoje? — o argumento não se sustenta num ponto de vista econômico ou social. Porque o reforço das “normas de distribuição burguesas” (sic, p. 63), o reforço da desigualdade, não dependem principalmente do quanto se deduz da produção atual para propósitos militares, mas sim do tamanho da produção total, do tamanho do quanto se mantém disponível para a distribuição e da forma pela qual ela se dá. A URSS, hoje, (para não mencionar uma revolução vitoriosa na Europa ocidental ou em países como Brasil ou Argentina) é dez vezes mais rica que em 1927 ou 1933. Mesmo com um exército regular muito caro, o padrão de vida dos trabalhadores poderia ser igual àquele dos italianos ou britânicos. O motivo pelo qual isso não se dá é o desperdício e os privilégios da burocracia, não o cerco capitalista. Esses privilégios podem ser mantidos somente por meio de um monopólio político, ou seja, de uma ditadura da burocracia. Inclusas nisso, e não nas “necessidades de defender o Estado” ou na sobrevivência do imperialismo, estão 99% das causas imediatas da opressão sofrida pelos trabalhadores soviéticos e o aumento da desigualdade. Ao varrer essa opressão, a revolução política vai aumentar tanto a capacidade do Estado dos trabalhadores de se defender contra o imperialismo quanto a riqueza produzida, que permitirá um aumento radical na igualdade. A opressão continuada e a desigualdade aumentada, ao descreditar o socialismo, ao desmoralizar e despolitizar a classe trabalhadora, minam, por sua vez, sua defesa. Ainda assim, esse é mais um aspecto da “dialética” que o nosso mestre dialeta deixou passar.


Na mesma linha, está a teoria de que: “uma distribuição desigual que aumenta em igualdade conforme a produção aumenta é inevitável.” (p.63)


Isso não é nada mais, nada menos, que uma justificativa “objetivista” da inevitabilidade da degeneração burocrática — mesmo para revoluções futuras. Já que a desigualdade aumenta com o desenvolvimento das forças produtivas, o tamanho da polícia e de seus poderes — ou seja, o poder da burocracia — também aumentará.


Por trás de uma lógica como essa só pode estar a teoria estalinista das “necessidades cada vez maiores” da população operária, plagiada, por sua vez, pelos defensores do capitalismo que querem demonstrar a impossibilidade do socialismo (o desaparecimento categorias das trocas comerciais) por meio de uma eterna escassez.


Uma vez que esse disparate é rejeitado, não existe “lógica econômica” que torne “inevitável” a desigualdade na produção de relógios quando sua produção aumentou de 2 milhões para 30 milhões por ano (como foi o caso na URSS). O aumento da desigualdade na URSS, nessas condições, não é, de jeito algum, “inevitável”: é atribuível aos interesses materiais da casta burocrática. Quando essa casta for eliminada por uma revolução política, a igualdade poderá dar largos passos adiante.


Agora fica mais fácil compreender a cadeia de argumentos que buscam justificar a verdadeira cadeia de eventos vinculada ao proletariado soviético. O cerco capitalista é tornado igual à ameaça de guerras contrarrevolucionárias, sem se levar em consideração o surgimento da revolução mundial. Uma guerra civil potencial é, por sua vez, identificada com uma verdadeira guerra civil, sem levar em consideração nem a correlação social de forças ou a consolidação da ditadura do proletariado. Isso completa o truque: a coerção contra uma parte, de fato a maioria, do proletariado é apresentada como inevitável por meio século, quer dizer, por um século. Justo porque o proletariado é muito “subdesenvolvido” para se defender contra seus ditos todo-poderosos inimigos.


Nada demonstra melhor o ceticismo do camarada Moreno acerca do proletariado soviético (igualmente àquele dos burocratas da década de 1920) que a passagem em que ele descreve o cenário para a possível restauração do capitalismo na URSS. Nós escrevêramos que seria improvável que os trabalhadores, tendo tomado as fábricas, devolvessem-nas aos capitalistas sob a influência de uma propaganda “contrarrevolucionária”. “Você acha que os capitalistas são mais burros do que eles são”, responde o camarada Moreno. “Eles não vão puxar a palavra de ordem ‘devolvam as fábricas aos patrões!’ Eles vão puxar ‘as fábricas aos trabalhadores!’ Isso quer dizer a destruição da propriedade estatal, a competição entre as cooperativas de trabalhadores, o que nos levará de volta ao capitalismo” (p.62)


Nós podemos achar que os patrões são mais burros do que de fato são, mas o camarada Moreno, decididamente, toma os trabalhadores como imbecis. “As fábricas aos trabalhadores” é uma palavra de ordem que já foi ouvida. Ela foi puxada pelo Partido Comunista Iugoslavo em 1950. Àquele tempo, Stalin e os estalinistas afirmaram, como Moreno faz hoje, que isso levaria ao restabelecimento do capitalismo. Trinta anos de história desmentem essa calúnia.


Nós criticamos severamente e continuaremos a criticar a combinação híbrida de autogestão dos trabalhadores com “socialismo de mercado” de um lado e o sistema de partido único (isto é, a ausência de poder político exercido diretamente pela classe trabalhadora iugoslava) por outro. Mas acreditar que os trabalhadores que experienciaram uma expansão considerável de seus direitos e poderes nas fábricas — Iugoslávia é o único país no mundo onde os trabalhadores podem mandar embora os gestores, em vez do contrário — vão facilitar uma restauração do capitalismo, em vez de se opor a ela com uma lucidez cada vez maior do que nos Estados operários onde eles são mais oprimidos, é subestimar seriamente a sua inteligência e consciência de classe!


É porque o camarada Moreno é cético, no fundo, acerca da capacidade do proletariado de defender seus próprios ganhos e seu Estado contra o imperialismo que ele dedica todo um capítulo de seu livro às Duas ditaduras proletárias: a burocrático-reformista e a revolucionária (p.187), sem uma única menção ao fato de que aquela é resultado da derrota política do proletariado da vitória de uma contrarrevolução política. Se, no contexto de cerco capitalista, e apesar da correlação de forças, apesar até mesmo de vitórias da revolução mundial “as condições objetivas fazem a opressão necessária”, então essa contrarrevolução política — isto é, o estalinismo — é só uma variante de uma “necessidade de ferro”, isto é, tudo que se pode esperar preservar nas circunstâncias atuais. Um “trotskismo” arrependido, de fato!

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