História sem rugas
Daniel Bensaïd
Tradução de Pedro Barbosa
Revisão de Bruna Ianni
Prefácio ao livro "Memórias de um comunista crítico: por uma história da Quarta Internacional" [“Memoirs of a critical communist: towards a history of the Fourth International”], de Livio Maitan (1923-2004).
Fonte: http://www.iire.org/node/862
A contribuição de Livio Maitan para uma história da Quarta Internacional é ao mesmo tempo um relato de uma testemunha ocular e a transmissão de um legado.
De fato, ele está entre os últimos capazes de realizar essa tarefa, um dos últimos moicanos de uma geração de homens e mulheres que, ao final da guerra e contra a corrente de euforia criada pela gloriosa lenda de Stalingrado, desvelaram os “crimes de Stalin” sem esperar pelas revelações de Kruschev, o gulag de Solzhenitsyn ou o macabro registro d’O Livro Negro do Comunismo. Poucos ousaram “ir à contrapelo na história”. Talvez, a fim de resistir à irracionalidade do período, um certo heroísmo da razão era requerido, uma vontade indomável, para compreender o incompreensível, decifrar os hieróglifos da história e desenrolar a meada de causa e efeito.
O livro de Livio presta um testemunho a esses esforços perseguidos incansavelmente ao longo de mais de cinquenta anos. Ela faz justiça, ao mesmo tempo em que evita um sentimentalismo sem sentido, àquele punhado de homens e mulheres irredutíveis que se recusaram a escolher um “campo”, de acordo com a retórica binária exageradamente simples do “quem não estiver comigo, está contra mim”, e que lutaram em dois frontes, contra o inimigo principal (a ditadura imperial do capital) e um inimigo considerado secundário mas não menos assustador (despotismo burocrático).
Pense nas vaias e ridicularizações sofridas por esses militantes, frequentemente expostos à dupla repressão do inimigo declarado de um lado e, moralmente ainda mais inaceitável, daqueles que deveriam ter sido seus camaradas de luta. Foram necessários toda a sua convicção e todo seu senso de justiça para resgatar da grande mentira histórica as vítimas dos expurgos e julgamentos de Stalin: Andrés Nin, assassinado no campo em Alcalá de Henares, Ignace Reiss, Rudolf Klement, Ta Thu Tao, Kristian Rakovsky, o próprio Leon Trótski e muitos outros cujos nomes são desconhecidos para nós, todos eliminados desta forma. À meia-noite no século, uma “nova moralidade política” veio bater à porta da nova era, que em vários sentidos lembrava a era da Renascença, “mesmo excedendo-a na extensão e profundidade de suas crueldades e bestialidades: (...) Nenhuma época do passado foi tão cruel, tão impiedosa, tão cínica, como a nossa época”. Escrevendo estas linhas na introdução de seu trabalho não finalizado, Stalin, Trótski ainda não podia saber do genocídio das câmaras de gás e do extermínio nuclear de Hiroshima. Mas ele já tinha experienciado a “grande fábrica de mentiras” que o regime burocrático do Kremlin havia se tornado.
Nos julgamentos stalinistas, “somente os trotskistas não confessavam”, de acordo com a homenagem feita então pelo chefe da Orquestra Vermelha, Leopold Trepper, em suas memórias. Não é uma questão, ao menos não predominantemente uma questão, de psicologia ou força da mente, mas de convicção e compreensão do que está em jogo, o que sozinho permitiu com que eles mantivessem suas cabeças e escapassem à loucura da era do crepúsculo. Como pode alguém não sucumbir à decepção, à desilusão, ao ressentimento ou à indiferença resignada? Decepção é uma coisa insignificante, escreveu David Rousset, um sobrevivente dos campos de concentração nazistas e seu lúcido analista, “ao invés, devemos compreender”. Os decepcionados, as vítimas do ressentimento, os desiludidos, não explicam nada, pois endossam o oposto do que era antes suportado pela “mesma autoridade inabalável”. Quantos antigos stalinistas arrependidos, antigos maoístas desiludidos, fanáticos convertidos e crentes desiludidos nasceram deste diagnóstico!
É precisamente a estas capitulações e espetaculares conversões que era importante resistir: “Decepção é um luxo que não podemos ter. O dilema é simples, mas imperativo. Ou se submeter ao mero acaso ou então compreender e agir. A ação nem sempre é possível. Mas você sempre pode alcançar a compreensão. Se a história não segue o curso que esperamos, não é culpa do cínico e trapaceador destino”. Escrevendo estas linhas, David Rousset permaneceu, a despeito de seus erros, leal a um certo espírito do trotskismo de sua juventude.
Seus comentários talvez possam ser um epitáfio ao livro de Livio Maitan. Acima de tudo, compreender! Compreender por que a Segunda Guerra Mundial não terminou com a derrubada da burocracia soviética e uma nova onda revolucionária. Compreender o novo dinamismo de um capitalismo que ontem estava em agonia. Compreender as contradições das sociedades que emergiram dessas convulsões, suas formas sem precedentes, seja a revolução iugoslava, a revolução chinesa, ou o estabelecimento de uma “cortina de ferro” através do leste europeu. Compreender as primeiras revoltas anti-burocráticas na Berlim oriental em 1953 e em Budapeste em 1956, decifrar os enigmas da revolução cultural chinesa, provou que se trata de “compreender para agir”, mesmo de um modo limitado, mesmo com escassos meios, para manter o frágil, tenso, elo, esticado quase ao ponto de rompimento, entre teoria e prática.
Bem-pensantes adotam um tom de ironia a respeito destes trotskistas, especialistas em separar fios de cabelo, e suas constantes divisões. Sim, quando a arena da experiência é reduzida, quando o contato com as massas se enfraquece, há uma tendência a exagerar divergências teóricas, a obter conclusões precipitadas, a dramatizar diferenças que são em última análise ridículas ou temporárias. É o preço de uma trágica desproporção entre o lirismo das ideias e os prosaicos limites da realidade. Essa dinâmica pode ser ainda mais destrutiva quando estamos convencidos de que “a crise da humanidade é a de sua direção revolucionária”, e nós aspiramos resolvê-la: uma missão redentora ditada pelo esmagador senso de responsabilidade que nos leva a nos doar à história e que pode acabar como uma megalomania patológica.
Livio tinha um senso de humor grande demais e uma auto-ironia para sucumbir a isso. Uma olhada em passagens relembrando congressos da Quarta Internacional, repletos de divisões e reconciliações, consultando os documentos amarelados, é claro que as polêmicas, quanto mais teatrais, mais elas eram realizadas em salas vazias (i.e., em contraste com um pano de fundo de total indiferença por parte das massas), referentes a problemas candentes do momento: o significado do stalinismo e o papel mundial da União Soviética, as dinâmicas das lutas de libertação e as revoluções coloniais, o lugar da China no mundo, a análise das revoluções cubana e algeriana, as transformações das classes sociais na época do capitalismo tardio, e assim por diante.
Jogando sua mente através desses cinquenta anos de luta, majoritariamente contra a corrente, Maitan não reivindica estar escrevendo a história da Quarta Internacional. Isso será um trabalho de historiadores, com a preciosa contribuição que eles são capazes de fazer, mesmo com a adoção de uma subjetividade declarada. Então, os comentários sobre as controvérsias a respeito da luta armada na América Latina podem parecer incompletos e parciais para muitos de nós. Nós podemos contestá-los, mas não é nada para se preocupar, por ser um livro partidário, não sobre, mas no coração da disputa. O manuscrito foi brutalmente interrompido em 1995, com o relatório do XIII Congresso da Quarta Internacional e com as notas de trabalho relativas à morte de Ernest Mandel naquele mesmo ano. Esta interrupção e a morte de Mandel possuem um valor simbólico. É uma época e uma geração que chegam ao fim com o capítulo final sobre a “nova ordem mundial”. Livio Maitan foi, junto com Mandel e seu mentor Pierre Frank, um dos barqueiros que transmitiram esse legado para nós.
Mas, como Jacques Derrida disse arrependida e claramente, “legados não são bens, uma forma de riqueza que é recebida e depositada no banco”, são “uma afirmação ativa” -- não uma propriedade, mas um devir que é incessantemente renovado.
Para concluir, eu gostaria de acrescentar algumas poucas palavras pessoais de despedida, e para expressar meu carinho por Livio. Eu o conheci em 1967, quando a experiência da esquerda italiana era um modelo para todos nós (um modelo discutível, olhando em retrospectiva). Eu me recordo dele durante meus encontros diários no escritório da Internacional e nas dependências da Inprecor ao longo da década de 1980, irritado pelas ociosas conversas e reuniões que começavam tarde, depois de acordar de uma breve, sacrossanta, siesta com sobrancelhas combativas levantadas e os mais vivos olhos de sempre. Não há dúvidas, no entanto, de que ele então sofreu uma certa forma de exílio e de solidão, mesmo que, em seus sessenta anos, ele continuasse com suas escapadas de domingo para jogar futebol com seus camaradas de Rouge, todos muito mais jovens do que ele. De novo em 2002, na ocasião do Segundo Fórum Social Mundial em Porto Alegre, quando os camaradas brasileiros lhe prestaram um tocante tributo, ele brilhou com brincadeiras e bom humor. Como se, apesar das várias feridas e cicatrizes que davam testemunho a uma longa vida militante mais acostumada com noites de derrota do que com manhãs de vitória, e a frustração de ter cumprido obscuras e ingratas tarefas sem o conforto de notoriedade, esse jovem, pugnaz, velho homem esteve sempre livre de rugas.
Daniel Bensaïd
* Publicado inicialmente em abril de 2019: https://www.comunapsol.org
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