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A greve geral – questões estratégicas #2 (Ernest Mandel)

Atualizado: 3 de jul. de 2020


A greve geral – questões estratégicas

Ernest Mandel

Tradução de Julia Palmberg

Revisão de Pedro Barbosa



Sumário

2) A greve geral passiva

3) A greve geral ativa

4) Greve geral autogerida ou dirigida pelas organizações operárias tradicionais

5) Dos comitês de greve aos conselhos operários

6) Dualidade de poder econômico e dualidade de poder político



2) A greve geral passiva


Existem alguns exemplos de greve geral passiva na história, e mesmo entre as mais brilhantes: a maior greve geral que já conhecemos na Europa Ocidental, a mais eficaz, foi a greve geral da classe operária alemã contra o golpe do general Kapp em 1920, que foi absolutamente total em sua eficácia e em seu efeito, que parou toda a vida econômica e pública, [e que] foi passiva: os operários não ocuparam as fábricas, eles permaneceram em casa, salvo em algumas regiões e alguns casos excepcionais.


É necessário distinguir bem uma greve geral amplamente passiva, na qual os operários se limitam a parar o trabalho, de uma greve geral com ocupação de fábricas, que é evidentemente um enorme passo adiante (deixarei de lado os aspectos econômicos e voltarei a eles em um instante) porque permite reunir a força da classe [trabalhadora]. Uma greve geral passiva é uma greve que dispersa a força da classe: cada trabalhador vai para sua casa. Não podemos mais lhes tocar, e nem lhes falar.


Uma greve geral com ocupação quer dizer centenas de milhares ou, de acordo com a dimensão do país, milhões de trabalhadores que estão reunidos nas empresas, a quem nós podemos falar o tempo todo, que têm uma força e uma coesão de classe que é evidentemente superior em termos qualitativos àquela de uma greve geral na qual cada um fica em sua casa.


A conclusão aqui é prática: nós propagamos de um modo sistemático, basta ler a nossa imprensa, a ideia da ocupação, e o modelo de greve geral do qual nós tentamos convencer a vanguarda é uma greve geral com ocupação de fábricas. Eu voltarei em seguida aos aspectos organizacionais extremamente importantes que decorrem da ocupação e que são os pilares decisivos para transformar uma greve geral com ocupação rumo a uma plataforma de partida para uma verdadeira revolução.


3) A greve geral ativa


A ideia da greve geral ativa é também uma ideia de origem anarco-sindicalista – temos de dar o que é devido àqueles que o merecem –, mas podemos dizer que os sindicalistas-revolucionários colocaram em prática pouquíssimas demonstrações de aplicação desta ideia, salvo, evidentemente, na Espanha durante a revolução de 1936.


O que quer dizer esta ideia? Os trabalhadores não se contentam em ocupar as fábricas fazendo festa, como foi feito na França em junho de 36 ou mais amplamente em maio de 68, isto é eles não fazem simplesmente sessões de discussões, de cinema ou de jogo de cartas – o que nós vimos quando chegamos à Cockerill [John Cockerill, tradicional metalúrgica belga] ocupada pelos empregados (pela primeira vez na história da Bélgica havia uma greve com ocupação dos empregados: de dezembro de 1971 a janeiro de 1972): eles acolheram uma delegação oficial da LRT [Liga Revolucionária dos Trabalhadores, organização marxista belga]; quando vimos esses trabalhadores jogar carteado, nós ficamos mesmo um pouco decepcionados. É bom ocupar, mas lá era evidente o nível mais elementar da ocupação.


Então o que quer dizer “greve ativa”? Os operários organizam eles mesmos a produção sob a sua própria direção. No passado, para além da experiência da revolução espanhola de 36, que não foi só uma greve geral, mas uma verdadeira revolução, há poucos exemplos. Há atualmente um giro extremamente importante na classe operária da Europa ocidental: LIP na França, Clyde na Inglaterra e Glaverbel na Bélgica mostram que os setores de vanguarda da classe operária começam a se abrir à ideia de que quando ocupamos uma fábrica, podemos fazer mais que animação cultural ou jogar cartas, que podemos organizar nós mesmos a direção. É um enorme passo adiante.


E damos tanta importância a esses exemplos não porque acreditamos na possibilidade de construir o socialismo dentro de uma única fábrica, mas porque acreditamos que esses exemplos, ainda hoje isolados, podem se espalhar e se generalizar em caso de greve geral. E uma greve geral em que os trabalhadores de todas as fábricas fazem aquilo que os trabalhadores da LIP ou Glaverbel fizeram se torna algo totalmente diferente! É um nível histórico qualitativamente superior a tudo o que conhecemos no passado como greve geral. Devemos, no entanto, desconfiar de todo raciocínio mecânico e se dar conta de que a passagem para a greve ativa parte de pontos de motivação ou de consciência muito diferentes. O melhor caso é aquele em que se exprime uma vontade mais ou menos consciente dos trabalhadores de tomar em mãos os meios de produção, ou seja, de destruir o capitalismo. Se isto se produz, ficamos evidentemente muito felizes.


Mas existem outras variantes possíveis. Eu gostaria de apresentar duas:


A. A passagem para a greve ativa pode ser o resultado daquilo que podemos chamar a lógica interna da greve geral, a simples vontade de melhor executar a greve geral. É uma motivação de método de combate, simplesmente para tornar a luta mais eficaz, independentemente de seus objetivos a longo prazo, que a greve ativa pode se tornar necessária. Cito alguns exemplos que reaparecem frequentemente nas apresentações e estão ligados à experiência de maio de 68 na França:


1. É óbvio que uma greve geral dos transportes, que é uma greve passiva, se torna em uma cidade muito grande um fator de desorganização da greve a partir de um certo momento: se os metrôs, ônibus e ferrovias metropolitanas param de funcionar em uma cidade como Londres, Paris ou Roma, isso significa que a classe operária não pode mais se reunir, que é impossível que as pessoas percorram 20, 30 ou 50 quilômetros para se reunir em uma manifestação. Então a ideia pode surgir, e deve ser defendido pelos revolucionários que se mantenha a greve geral dos transportes para desorganizar e paralisar a vida econômica burguesa; mas quando a classe operaria convoca uma manifestação central na cidade, deve-se fazer funcionar os transportes para levar os trabalhadores à manifestação e somente para esse fim, e sob o controle do comitê de greve que garante que os transportes não funcionem senão com esse objetivo.


2. Outro exemplo, superior na medida em que toca no santo dos santos da sociedade capitalista: uma greve geral dos bancos, caixas econômicos, etc. É um instrumento vital parar paralisar a vida econômica burguesa, mas se a greve se prolonga, uma tal greve passiva se volta contra os trabalhadores. De fato, um grande número de trabalhadores tem suas pequenas economias em um fundo, em caixas de depósitos de organizações operárias (sociedades mútuas, cooperativas) ou em contas correntes e, se não puderem ter acesso a esse dinheiro, sua capacidade de resistência financeira é reduzida. Em uma greve geral ativa, os empregados de organizações financeiras reabrem os guichês em certos momentos sob o controle de seu comitê de greve e dão uma certa quantia aos grevistas mediante a apresentação de um documento que prova que são grevistas. E é muito importante: isso quer dizer que os empregados começam a administrar o sistema bancário e financeiro.


B. Outra motivação para a greve ativa no contexto da greve geral deriva do que podemos chamar de lógica econômica da greve geral. Essa lógica paralisa toda a vida econômica. Mas toda a vida econômica paralisada durante muito tempo (alguns dias não são nada), causa problemas vitais, imediatos para os próprios grevistas. Tomando o exemplo mais bobo que sempre citamos: uma greve geral absolutamente total que dura uma semana significa que não haveria mais pão, que as pessoas não teriam nada para comer. Evidentemente, isso se torna completamente “contraproducente”, como se diz em italiano. É preciso que a partir de um determinado momento os mecanismos comecem a funcionar, admitindo, sob a direção dos trabalhadores, um mínimo de funcionamento para que a sobrevivência física da classe trabalhadora seja possível. Os exemplos marginais em que isto já foi aplicado são conhecidos e muito importantes: na Bélgica, os trabalhadores da Gazelco (gás, eletricidade), depois de muito tempo, aplicaram a regra que em caso de greve são eles quem controlam a distribuição de energia para cortar a corrente de empresas, de administrações públicas, bancos, etc. e evitar que a corrente seja cortada nas residências, pois isso arrisca dividir a classe operária, já que a greve será impopular em determinados setores da classe operária. Por outro lado, se há continuidade da produção, porém controlada pelos grevistas que garantem que o efeito de paralisia da economia seja mantido sem que o interesse da massa de consumidores seja perturbado demais, a eficácia da greve é aumentada.


O mesmo raciocínio foi aplicado durante maio de 68 em pequena escala, sobretudo em Nantes – não se pode subestimar a importância desses pequenos exemplos –, quando os comitês de greve e os grupos de trabalhadores de vanguarda quiseram organizar o abastecimento de grevistas garantindo uma troca de produtos com os camponeses, o que implicou a retomada ou a manutenção da produção, o escoamento do estoque existente, todo tipo de atividades econômicas, sob a direção dos grevistas, para ter o suficiente para comer.


Podemos citar ainda outro caso marginal que não tem tanta importância para o desenrolar de grandes lutas operárias, mas que para o futuro, visto a tendência geral da evolução econômica, pode se tornar cada vez mais importante; é o que está acontecendo hoje na Inglaterra com a greve dos enfermeiros. É uma greve muito delicada porque é uma greve da área de saúde e os doentes poderiam ser prejudicados ou morrer: o que seria extremamente impopular aos olhos do grande público poderia ser usado pela burguesia na sua campanha contra o direito de greve, os sindicatos, a militância proletária. Os enfermeiros, portanto, tiveram de buscar maneiras de fazer greve que evitassem prejudicar os doentes e que, ao mesmo tempo, mostrasse sua capacidade de greve ao Ministério da Saúde. Uma das soluções encontradas (já houve outros casos do mesmo gênero) foi fazer greve de pagamento, isto é, tratar todos, mas sem registrar nada, nem manter a contabilidade ou cobrar qualquer pessoa. Uma medida extremamente popular! Tudo isso possuindo a eficácia financeira e a desorganização administrativa exigidas! Um outro aspecto, ainda mais avançado, é que em certas cidades inglesas os grupos de trabalhadores, entre outros, os metalúrgicos e os do ramo de transportes, apoiaram esta greve e propuseram aos operários fazer uma greve pela causa dos enfermeiros. Mais um passo adiante muito importante para a solidariedade de classe!


Qual é a importância de tudo isso? Por que destaquei estas anedotas? Não pela importância delas em si, não acreditamos no avanço da consciência comunista em um hospital, na organização do socialismo em uma única fábrica, mas porque acreditamos que a multiplicação destes exemplos e sua popularização criam as condições que preparam a sua generalização em uma greve geral.


Temos de notar que ainda não vimos uma única greve geral na Europa na qual tais exemplos estivessem efetivamente generalizados e que isso seria uma mudança total: é necessário fazer um esforço de imaginação para visualizar o que seria uma greve geral mais ou menos total como aquela de maio de 68 e na qual a maior parte dos setores da classe trabalhadora, no sentido mais amplo do termo, aplicariam todas essas técnicas: isto seria o início de uma revolução social. E é por isso que apresento todos esses exemplos bastante anedóticos, fragmentários. A importância não está na fragmentação e na anedota, mas na popularização do exemplo para atingir um certo estado de espírito. Uma vez que os setores, cada vez mais numerosos, da classe operária compreendam essa problemática, algo de totalmente novo pode nascer e é a isso que estamos nos dedicando.


4) Greve geral autogerida ou dirigida pelas organizações operárias tradicionais


Nova problemática: é preciso uma greve geral dirigida de uma maneira mais ou menos burocrática pelas organizações operárias tradicionais ou uma greve geral autogerida, que alargue a autonomia operária pela aparição de organismos na base que dirijam a greve? Não insisto porque os camaradas conhecem esta problemática e não cessamos de desenvolvê-la em nossa propaganda e mesmo na nossa agitação cotidiana. É preciso insistir muito sobre um fato: essa não é uma posição sectária que tomamos. Se agimos a favor da greve geral (e de toda greve, no geral) dirigida pelos próprios trabalhadores, não é porque não gostamos dos dirigentes da FGTB [Federação Geral do Trabalho da Bélgica] ou da CSC [Confederação dos Sindicatos Cristãos]. Ainda que a direção da CGT [Confederação Geral do Trabalho] ou da FGTB fosse composta exclusivamente por membros da Quarta Internacional, nós ainda seríamos a favor de formas autogeridas de greve, porque acreditamos que é apenas criando comitês de greve eleitos nas empresas e associando o máximo de trabalhadores à gestão da greve que uma greve geral pode ser bem sucedida.


A ideia de uma greve geral dirigida por um pequeno aparelho, um pequeno estado-maior no comando, apertando os botões, mesmo se ele é composto pelas melhores pessoas do mundo do ponto de vista político, não é somente uma ideia utópica, mas é também uma ideia profundamente errada do ponto de vista político e social: não corresponde a uma compreensão do que são a classe trabalhadora e a sociedade burguesa; no fundo ela pressupõe a mesma confusão mecânica dos social-democratas dos anos 1900 da qual falei anteriormente, uma simultaneidade de todos os tipos de processos que não corresponde à realidade.


Para que uma greve de 10 milhões de trabalhadores na França pudesse ser realmente bem sucedida, não é suficiente que haja um estado-maior de 15 ou 20 líderes brilhantes no topo. É necessário também que haja uma associação máxima do maior número de combatentes na direção desta greve, e em todos os níveis; é desta forma que vemos surgir os organismos de dualidade de poder e, assim, a possibilidade de uma vitória da revolução socialista quebrando a divisão do trabalho entre os chefes e a massa, que a burocracia reintroduziu da sociedade burguesa no movimento operário, e recuperando a ideia da organização soviética – a essência do pensamento de Lenin em “O Estado e a revolução” sobre a organização soviética –, isto é uma organização na qual o máximo de trabalhadores, de pessoas do povo, está imediata e diretamente associada, sem divisão do trabalho, à gestão cotidiana de seus negócios.


Vocês conhecem o modelo ideal que propomos:


1. Eleição de um comitê de greve por uma assembleia geral de grevistas


2. A reunião regular desta assembleia geral que tem o direito e a possibilidade de revogar cada membro do comitê de greve


3. Eleição de toda uma série de comissões pelo comitê de greve, mais amplas que seus membros, para associar a todo tipo de função o maior número de militantes que comparecem à Assembleia Geral: propaganda, abastecimento, finanças, informações, animação cultural, etc. Estas são coisas das quais já falamos muito.


No entanto, é preciso desconfiar do “esquema ultimatista”: provavelmente não chegaremos a realizar esse modelo ideal em todos os lugares ao mesmo tempo, [pois] ele pressupõe a presença de militantes revolucionários e um nível de consciência bastante elevado para que desta maneira ideal o modelo seja aplicado. Já estaríamos bem contentes se, em um grande número de empresas, haja eleição do comitê de greve. Já seria um passo adiante qualitativo.


Já dissemos muitas vezes: se em maio de 68, tivesse havido eleições de comitês de greve – e sua federação – em todas as empresas, teria se dado o início de uma revolução, teria se dado uma mudança qualitativa da situação. Se estamos impulsionando em direção ao modelo ideal, é porque as vantagens desse modelo são, de fato, evidentes: ele representa as condições ideais para a organização, a auto-organização e a associação do máximo de trabalhadores à direção da greve e para a eclosão de uma situação revolucionária nas melhores condições para a classe operária.


Compreenderemos também a ligação íntima entre o impulso em direção à greve ativa e a auto-organização da greve. É evidente que uma greve ativa não pode mais ser dirigida por um secretariado sindical ou um [líder] permanente: uma ou duas pessoas não podem e não sabem organizar em uma fábrica a produção, o reabastecimento, o vínculo com as empresas fornecedoras de matérias-primas, etc. É impossível: assim que se passa à greve ativa se torna obrigatório associar um grande número de trabalhadores à direção da greve e a toda uma série de decisões de autoridade. A greve ativa por si só é um estimulante muito poderoso da auto-organização da greve, como mostram os exemplos da LIP, Glaverbel-Gilly e muitos outros durante os últimos meses.


5) Dos comitês de greve aos conselhos operários


O comitê de greve – mesmo o comitê central de greve, voltarei a isso porque esta foi a polêmica com os camaradas lambertistas [corrente ligada a Pierre Lambert, dirigente da IV Internacional, trotskista] no maio de 68 na França – ainda não vai além do domínio de uma greve, ou seja, de uma contestação potencial, e ainda não real, do poder político (de Estado) da burguesia.


Como passar dos comitês de greve aos conselhos operários? Qual é a distinção qualitativa entre eles, considerando que o conselho operário nasce dos comitês de greve em 99% das vezes, como por exemplo o primeiro soviete de Petrogrado? Há dois elementos que, até agora, sobre a base da experiência histórica – e devemos ser prudentes porque a experiência futura pode ser mais rica que as do passado –, parecem determinantes nessa transformação:


1. A federação, isto é, romper o fracionamento do germe do poder operário que nasce no nível de uma fábrica: o caso da LIP não é a contestação da economia burguesa ou do Estado burguês como um todo. Mas 50 LIPs que se unem em federação, que se estendem a dois ou três ramos industriais já é algo qualitativamente diferente! Sobretudo se implica, em parte, o sistema bancário, a eletricidade, os transportes públicos, etc. A federação horizontal ou vertical, ou seja, em uma cidade ou em um ramo industrial – sendo a cidade mais importante que o ramo porque ela tende a acentuar o caráter contestatório –, implica pela sua lógica uma transformação de seus comitês de greve em órgãos de dualidade de poder se essa federação ultrapassar certo nível.


2. O segundo elemento, que está simplesmente contido como possibilidade na federação, mas ainda não foi realizado, também é indispensável: esses órgãos de federação dos comitês de greve assumem poderes que ultrapassam os poderes de gestão da greve.


Um comitê central de greve que se limita a organizar a greve, distribuir o dinheiro ou o reabastecimento aos grevistas e a editar um jornal de agitação de greve pode, a rigor, ainda ser compatível com um poder não divido da burguesia. É difícil, é um caso limítrofe, mas ainda se pode imaginar. Mas um comitê central de greve que assume poderes para além da organização exclusiva da greve, que começa a organizar a produção, a organizar a distribuição de crédito ou de financiamentos dos bancos, a organizar o transporte público, a distribuição de eletricidade, que assume – em uma palavra – os poderes de fato, deixa de ser apenas um comitê de greve e se torna um conselho operário, um órgão de poder que começa a funcionar.


O nascimento de um organismo de dualidade de poder se manifesta pelo fato de que os poderes que, na sociedade burguesa, são normalmente executados ou pela burguesia e seus instrumentos, como o sistema bancário, ou pelo Estado burguês, começam a ser assumidos por esses órgãos. Isto pode ser mínimo; todo mundo conhece a anedota que lutei para espalhar pela Europa, senão pelo mundo, e pela qual os camaradas de Liège gostam muito de mim: a administração de Liège da FGTB [Federação Geral do Trabalho Belga] que, nas duas greves gerais de 1950 e 1960, organizou a circulação de automóveis na cidade e interditou o tráfego de carros e caminhões sem o selo da FGTB, assumiu de fato um poder público. Os caminhoneiros reconheceram então um poder público de origem operária que é totalmente diferente do poder do Estado burguês. Isso é extremamente embrionário, mas real.


Mais uma vez, a anedota pouco importa; o que é importante é transmitir exemplos semelhantes na memória e na imaginação coletiva da classe trabalhadora, é fazer uma dobra na estrutura mental, porque esse tipo de exemplo pode ser multiplicado, generalizado na próxima greve geral e terá uma importância prática colossal para realmente fazer surgir os conselhos operários, órgãos de poder da classe trabalhadora opostos aos órgãos de poder da burguesia.


6) Dualidade de poder econômico e dualidade de poder político


Tradicionalmente, o conceito de dualidade de poder foi considerado – e a escola “zinovievo-stalinista” exerceu uma grande influência a este respeito dentro do movimento operário – exclusivamente como um conceito político. Os camaradas maoístas são hoje o produto caricatural disto. Eles têm um esquema simplista e absolutamente transparente: “os trotskistas não entenderam que os sovietes existem somente em uma situação revolucionária e que eles são os órgãos do poder revolucionário. Atualmente não há mais uma situação revolucionária, então bradar hoje pelo controle operário, pela dualidade de poder, é falar no vazio, ou pior ainda, é ser reformista”, etc.


Achamos que esse pensamento é obsoleto: ele esvazia totalmente a situação mais característica de uma luta operária que está se expandindo e se generalizando, a saber, uma situação revolucionária, e a maneira pela qual os revolucionários podem e devem intervir em uma situação pré-revolucionária. Por trás do conceito maoísta, há na verdade a velha tradição fatalista, mecânica, kautskiana e anti-leninista de uma situação revolucionária que cai do céu, que é determinada pelas condições objetivas sobre as quais a ação da vanguarda trabalhadora não pode ter nenhum efeito.


Pelo contrário, pretendemos que ao impulsionar [em direção às] experiências de controle operário, generalizando o controle operário, generalizando a transformação dos comitês de greve em conselhos operários, transformamos, por meio desta intervenção, uma situação pré-revolucionária em situação revolucionária. Nós servimos de fator de cristalização, de catalisador para o nascimento de uma situação revolucionária. E Trotsky tinha, a respeito da Alemanha no começo da grande crise econômica, um pensamento mais audacioso e mais renovador: “Devemos evitar identificar a dualidade de poder e os órgãos da dualidade de poder com os sovietes de tipo clássico que são resultados da revolução de 1917. Não se exclui que, na situação concreta da Alemanha de 1930, os conselhos de empresas (órgãos legais no quadro da constituição burguesa de Weimar – E.M.) dominados pelos sindicatos, possam se tornar objetivamente um órgão de dualidade de poder”.


No momento, devemos ter o espírito bastante aberto a essa proposição. É certo que a identificação da dualidade de poder com os órgãos soviéticos exatamente do mesmo tipo daqueles da Revolução Russa ou da Revolução Alemã seria um erro que não podemos cometer. Houve pelo menos um exemplo histórico em grande escala: os comitês de milícia na Espanha em julho de 36, que eram órgãos de dualidade de poder absolutamente evidentes e de uma outra origem, outra posição, relativamente aos sovietes. E, dou o exemplo mais provável, não podemos excluir que na Grã-Bretanha, dada a particularidade da estrutura do movimento operário inglês, órgãos de um tipo bastante diferente dos sovietes clássicos possam desempenhar o papel de órgãos de dualidade de poder.


Nossos camaradas ingleses apoiam-se naquilo que está se tornando uma constante hoje em dia, pelo menos no plano local, na Inglaterra: toda vez que há uma situação de luta muito tensa no nível local, nascem organismos de frente única “ad hoc”, que reúnem os delegados de fábricas mais combativos, não necessariamente todos, que reúnem as seções sindicais mais combativas da localidade, não necessariamente todas, que reúnem às vezes seções locais do partido trabalhista, não necessariamente todas, e que reúnem representantes de organizações revolucionárias localmente implantadas e influentes.


Na prova do pudim, como se diz na Inglaterra, é comendo que se vence. Se tal órgão é capaz de mobilizar toda a classe trabalhadora da localidade, ele corresponde à mesma coisa que um soviete local. Se se trata simplesmente de um órgão que reúne a vanguarda e que mobiliza de 10 a 15% da classe trabalhadora, é uma frente única de esquerda (anticapitalista, como diríamos na Bélgica). Não devemos excluir a aparição de órgãos desse tipo em países onde a imensa maioria da classe trabalhadora se encontra ainda, de uma maneira ou de outra, enquadrada nas organizações tradicionais; isso é evidentemente a condição para que um tipo de movimento desse gênero possa de fato desempenhar o mesmo papel que o de uma estrutura soviética.


Gostaria de sublinhar o fato de ter dito “organizado”, que neste caso é bastante excepcional na Europa. Acredito que fora da Inglaterra – talvez a Suécia, que conheço mal – não exista; na França, certamente não é o caso. Se juntarmos tudo aquilo que acabei de mencionar acima, na maioria das cidades francesas, isso representaria um terço ou um quarto da classe trabalhadora. Idem para a Itália e a Bélgica. Isso pressupõe um nível de organização e de enquadramento da classe operária – não de lhe fazer votar, mas de lhe fazer se organizar e seguir o chamado de... – que é bastante excepcional na Inglaterra: na maior parte dos centros industriais podemos dizer que praticamente toda a classe operária, sob uma forma ou sob outra, está organizada nos sindicatos e no partido trabalhista, na medida em que os sindicatos são deste partido. E mesmo para a Inglaterra, se vou ao fundo do meu pensamento, penso que na presença de uma greve geral haverá comitês de greve eleitos que surgirão no lugar de organizações desse tipo. Mas não podemos excluir totalmente uma eventualidade dessas, pois ela se encontra dentro de uma certa lógica do movimento operário inglês.


A distinção, então, é muito importante entre os órgãos – que, sejam eles eleitos ou não, não é este o ponto decisivo – cujo papel é de assegurar certos poderes econômicos e fazer passar à contestação do poder do Estado burguês. Por que esse problema é tão decisivo e difícil? Porque nos deparamos com a distinção entre uma tendência objetiva e um certo salto qualitativo na consciência. Podemos dizer que pela força das coisas, quase que imperceptivelmente, pela simples lógica interna do movimento, os trabalhadores social-democratas ou educados no kruschevismo podem ser arrastados, apesar de si próprios, a fazer toda uma série de coisas que descrevi anteriormente (pontos 1 a 4), incluindo a greve ativa, incluindo a reabertura dos bancos para pagar os grevistas. Mas há um ponto onde isso se torna difícil, senão impossível: logo é necessário tomar uma decisão deliberada e consciente de se confrontar, de negar as instituições da democracia burguesa. É o que causou a ruína de todas as revoluções até hoje na Europa ocidental.


Há um exemplo clássico, é o mais conhecido pois é também no país onde se fazem as coisas com mais brutalidade: é o caso da Inglaterra. No momento onde o movimento operário inglês teve sua maior força, logo depois da Primeira Guerra Mundial, em 1921, bem quando havia a famosa tríplice aliança entre os três maiores sindicatos que decidiram fazer uma greve em comum (metalúrgicos, mineradores e transportes) – que resultou em uma greve geral infinitamente mais poderosa que aquela de 1926, em um contexto histórico totalmente diferente – no momento onde o movimento dos “shop-steward” [delegados sindicais, comissões de trabalhadores] (de tipo semi-soviético) era largamente difundido nas fábricas inglesas, Lloyd Georges, o dirigente mais inteligente da burguesia inglesa, chamou os três principais dirigentes dos sindicatos da “tríplice aliança” em sua casa e lhes disse: “sabemos que vocês são capazes de paralisar todo o país, sabemos que vocês são muito mais fortes que nós, e sabemos ainda que não poderíamos usar armas contra vocês pois a maior parte dos soldados se recusariam a marchar, mas vocês devem fazer uma escolha: eu represento a maioria da nação, do parlamento; se vocês estão prontos para fazerem uma greve geral contra a maioria da nação e do parlamento, vocês só devem fazê-la se estiverem prontos para substituí-los e criar um outro poder, uma outra estrutura de Estado, que não aquela do parlamento e do sufrágio universal. Vocês estão prontos para fazer isso?”. Não preciso fazer um desenho daquilo que os burocratas sindicais responderam, todo mundo já compreendeu.


A tradução mais trágica (na Inglaterra podemos dizer que é uma tragicomédia, porque nada aconteceu – era o que Lloyd Georges queria) dessa mesma lógica é o caso da Alemanha, onde havia conselhos operários em praticamente todas as fábricas e todas as cidades, onde havia um quase colapso do aparelho de Estado burguês (ou seja, onde o poder estava de fato nas mãos da classe operária) e onde a maioria social-democrata nesses conselhos operários decidiu deliberadamente convocar eleições gerais para um parlamento burguês, e transferir o poder que ela tinha a esse parlamento burguês. Não somente criminoso, mas estúpido! Pois estavam convictos de que teriam a maioria nessas eleições parlamentares. Eles não tiveram nem mesmo 44% dos votos. Eles sequer transmitiram o poder dos conselhos operários a um governo social-democrata, mas aos partidos burgueses.


Foi assim que, em três meses, a revolução alemã foi liquidada (de novembro de 1918 a fevereiro de 1919): após a convocação da assembleia constituinte de Weimar, não havia mais sovietes. Esse ponto de não retorno, transformar os conselhos operários que começam a assumir um certo número de poderes econômicos em órgãos que deliberadamente contestam o poder das instituições parlamentares democrático burguesas do Estado burguês, isso exige um salto qualitativo da consciência; não podemos levar a maioria dos operários a fazer a revolução socialista sem que eles perceba; isto é uma ilusão total.


Portanto, é necessário que haja uma transformação decisiva do nível de consciência da maioria da classe operária, partindo de um nível reformista para um nível revolucionário ou semi-revolucionário. Há uma série de condições propícias para isso:


1. Aceleração geral da experiência da consciência dos acontecimentos durante um período revolucionário – o que não é uma tarefa fácil. Todo mundo conhece as formulas de Lenin e Trotsky: “Durante uma revolução, os operários aprendem mais em um dia do que durante um ou cinco anos de um período não revolucionário”. Eles aprendem mais porque há mais atividades de massa – evidentemente, é o que caracteriza um período revolucionário.


2. O papel do partido revolucionário é, sem dúvidas, decisivo nessas circunstâncias. É inconcebível – e não há precedente – a maioria da classe operária adquirir uma consciência anticapitalista e revolucionária sem o papel ativo e dirigente do partido revolucionário. E ainda, em um período revolucionário, o partido revolucionário pode se transformar e crescer em um ritmo infinitamente mais rápido que em um período de relativa calma.


3. Mas, por mais bizarro que possa parecer, direi de qualquer forma que em todo esse processo o papel decisivo reside em um terceiro fator: o que vem do inimigo.


A única situação que será extremamente difícil é aquela na qual o inimigo não faz nada. Há um exemplo histórico: aquele da burguesia italiana quando os operários do norte da Itália ocuparam todas as grandes fábricas da região: a famosa grande greve de novembro de 1920. E Giolitti, o primeiro ministro italiano à época, que como Lloyd Georges era um dos dirigentes mais astuciosos da burguesia italiana, disse: “Os operários ocuparam as fábricas, eles estão armados (pelo menos aqueles de Turim): é uma ameaça para a sobrevivência do Estado. A única coisa útil que podemos fazer, é não fazer nada”. É preciso esperar, em outros termos, que eles próprios não saibam tomar as iniciativas decisivas para dar um passo adiante decisivo. Foi exatamente o que aconteceu: houve reuniões durante um, dois, cinco, seis dias entre as direções dos sindicatos, entre a direção do partido socialista – os comunistas ainda estavam no interior do partido socialista –, entre os conselhos operários: se discutiu sobre o que se iria enfatizar: controle operário ou não, o que exigir dos patrões, do governo, etc. E o movimento se consumiu em discussões internas, desgastes, paralisia, incapacidade de tomar uma iniciativa decisiva para realizar a transformação que descrevi mais acima.


Se a burguesia italiana cometesse o erro de lançar sobre as fábricas as gangues fascistas naquele momento, ou de começar uma repressão militar, é quase certo que teria havido uma revolução: os operários estavam armados, eles tinham a força material para tomar o poder, para retaliar não importa qual fosse a provocação vinda do outro lado. Mas tomar eles mesmos a iniciativa, sem provocação, romper eles mesmos com as instituições da democracia burguesa, eles não tinham nem a consciência, nem a vontade e nem a direção [necessárias para isso].


Precisamos tirar uma conclusão muito importante, contestada, mas extraída de toda a experiência de greves gerais na Europa ocidental: é decisivo garantir que os órgãos de poder operário nasçam da greve geral subsistente, que haja uma estrutura de dualidade de poder que subsista e que haja um período de dualidade de poder que se abra. Porque a partir do momento em que conseguimos mantê-lo, é quase inevitável que o adversário seja obrigado a atacá-lo, cedo ou tarde, e que as iniciativas necessárias para a resposta possam ser preparadas, centralizadas de uma forma muito mais eficaz do que ao se reclamar de que esses trabalhadores, que deveriam dar um salto organizacional adiante colossal, compreender imediatamente, assim, todas as implicações políticas e revolucionárias de sua decisão, coisa que é pouco provável, pelo menos na maioria dos países onde a classe operária está sob a influência reformista ou neo-reformista.


Em outros termos, a variante mais provável é uma verdadeira dualidade de poder; quer dizer que existirão lado a lado durante um período transitório, os conselhos operários – embrião de poder soviético – e o parlamento e as instituições burguesas. E será uma questão de saber quando, sob qual forma e sob qual pretexto levaremos a maioria dos trabalhadores a romper deliberada e conscientemente com os segundos, para se apoiarem sobre os primeiros.


Tudo isso se aplica se os trabalhadores estão, em sua maioria, ainda sob a influência da ideologia reformista ou neo-reformista. Se a maioria dos trabalhadores já é comunista, anticapitalista, trotskista, revolucionária, maoísta, etc. antes mesmo do nascimento da dualidade de poder, nada disso se aplica; os trabalhadores transformarão seus conselhos operários abertamente em sovietes e eles partirão para a conquista do poder. Mas esta é uma eventualidade extremamente improvável na quase totalidade dos países europeus, com a possível exceção da Espanha, e, ainda assim, é necessário ser muito prudente.


(Continua...)

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