A greve geral – questões estratégicas
Ernest Mandel
Tradução de Julia Palmberg
Revisão de Pedro Barbosa
Sumário
A origem da greve geral como modelo para a próxima revolução socialista
1) O que é uma greve geral?
O que é uma greve geral? Por que e como ela pode ser uma estratégia vencedora para derrotar o governo e ir mais longe no sentido de uma transformação revolucionária da sociedade?
Em um contexto de greve renovável e de luta prolongada contra a injusta reforma da previdência que Macron busca impor, Ernest Mandel – militante revolucionário e economista marxista – coloca aqui as grandes perguntas estratégicas associadas à greve geral. Após um retorno às primeiras reflexões marxistas acerca da greve geral, principalmente nos escritos de Rosa Luxemburgo depois da Revolução Russa de 1905, ele se pergunta sob quais condições uma greve geral pode não somente fazer o poder burguês recuar, mas iniciar uma sequência revolucionária de derrubada do capitalismo.
O texto a seguir é a transcrição de uma apresentação de Ernest Mandel durante uma atividade de formação (em uma data desconhecida).
Se nós tratamos da greve geral, é porque nós acreditamos que a greve geral é o modelo mais provável da revolução socialista nos países imperialistas. Evidentemente, não é o único modelo possível; este pressupõe um certo número de hipóteses iniciais confirmadas, a saber, a ausência de uma guerra mundial nos anos seguintes, a ausência de uma vitória do fascismo ou de uma ditadura militar semifascista nos países imperialistas, a manutenção em geral da relação de forças tal como estão atualmente estabelecidas entre os assalariados e o[s detentores do] Capital nesses países. Relações de forças que estão esmagadoramente a favor da classe trabalhadora como jamais vimos antes, ou seja, 80 a 85% – em alguns países até 90% – da população é composta de assalariados.
Estas hipóteses iniciais obviamente não podem ser sempre garantidas. Os camaradas sabem que, durante o Décimo Congresso Mundial [da IV Internacional (1974)], foi dito e adotado por nosso movimento, desde que nos mantenhamos dentro de um limite de tempo razoável, que nos próximos anos, para os quais nos preparamos, acreditamos que essas hipóteses serão provavelmente mantidas. E não se trata de uma especulação, mas um raciocínio, uma lógica interna na adoção dessas hipóteses iniciais: estamos convictos de que uma mudança qualitativa nos três domínios que indiquei acima só é possível se houver de antemão uma enorme derrota da classe trabalhadora.
Então, eis nosso raciocínio: essa derrota pressupõe que a atual ascensão que vai em direção a uma greve geral se encerre negativamente. E é, portanto, perfeitamente justificado analisar, ao contrário, quais são as possibilidades para que essa ascensão proletária, culminando em uma greve geral, se encerre em uma vitória, evitando tal derrota. E é também, portanto, perfeitamente justificado analisar as modificações das condições que permitem a transformação de uma greve geral em uma vitória das revoluções socialistas.
A origem da greve geral como modelo para a próxima revolução socialista
Não é a primeira vez na história do movimento operário que a questão da greve geral é colocada no centro do debate sobre o modelo da próxima revolução socialista. O primeiro debate sobre esse assunto aconteceu no fim do século XIX e foi introduzido pelas tendências anarquistas, principalmente anarco-sindicalistas (sindicalistas revolucionários), e isso em oposição deliberada à tática social-democrata – a luta eleitoral e parlamentar – adotada pela maior parte dos marxistas na época.
Naquele momento os marxistas fizeram uma crítica às teses anarco-sindicalistas que se mantém parcialmente verdadeira e que nós não estamos dispostos a abandonar. A parte essencial de verdade da crítica marxista a essa tese da greve geral sindicalista-revolucionária é que ela subestima o problema do poder político e crê que é suficiente para a classe operária parar o trabalho no plano econômico e retomar a direção das empresas sob seu próprio comando no nível da vida econômica para que a sociedade burguesa colapse. Há uma subestimação grave, catastrófica até, do problema do Estado, do problema do governo, do problema do armamento, da necessária transformação da greve geral em uma insurreição. Toda esta parte da crítica marxista à velha tese da greve geral continua, evidentemente, justa: uma greve geral não é suficiente para derrubar o sistema capitalista.
Mas uma greve geral pode ser o início de uma revolução socialista. Sobre este lado da tese sindicalista-revolucionária, a história do século XX nos países imperialistas deu um veredito que é hoje absolutamente conclusivo: a greve geral em um país industrializado pode ser e provavelmente será o começo de uma revolução socialista. E aquilo que os marxistas, sobretudo os futuros reformistas, disseram quanto a isso no fim do século XIX e que foi resumido na famosa fórmula dos sindicatos social-democratas alemães “a greve geral é a estupidez geral”, isto é, a tese segundo a qual uma greve geral seria impossível no regime capitalista, se demonstrou totalmente falsa. Toda esta parte do argumento clássico dos social-democratas se revelou absolutamente falsa no curso da história do movimento operário do século XX.
Qual foi o raciocínio, se é que houve um raciocínio e não apenas má-fé de pessoas já integradas no regime capitalista? Qual foi o raciocínio que estava por trás desta argumentação social-democrata?
Era uma visão absolutamente mecanicista da suposta simultaneidade de toda uma série de processos: eles diziam que para que uma greve geral tivesse sucesso todos os trabalhadores teriam de estar organizados, que já fossem socialistas; se todos os trabalhadores estão organizados e são socialistas, eles não precisarão de uma greve geral, eles serão a maioria no parlamento e no poder de Estado. Tal era o raciocínio. Evidentemente esta pretensa simultaneidade nos três processos de capacidade de luta, de organização e de consciência é totalmente falsa: uma classe operária que ainda está organizada em minoria e que ainda é socialista em uma minoria relativamente reduzida se mostrou historicamente capaz de fazer uma greve geral. Entre estes três fenômenos não há coincidência necessária.
O erro metodológico que é subjacente a esta concepção mecanicista é a subestimação extremamente decisiva da ação enquanto fonte de consciência. É a ideia de que se deve, antes de mais nada, convencer individualmente os operários por meio da propaganda individual para lhes tornar capazes de alcançar um certo nível de consciência, enquanto a experiência mostra que é exatamente através de grandes greves políticas de massas, através de greves gerais que toda uma fração da classe operária, que não pode ascender à consciência de classe pela via individual da educação e da propaganda, desperta ou se desperta para essa consciência de classe, e ascende e se torna extremamente combativa.
E o resultado desse erro é uma constante no debate entre a esquerda e a direita do movimento operário europeu desde o início do século [XX]. Debate este no qual Rosa Luxemburgo teve um papel decisivo, antes mesmo de Lenin ou Trotsky: ela compreendeu que a divisão da classe operária entre uma “avant-garde” [vanguarda] organizada e uma “arrière-garde” [retaguarda] desorganizada representa uma visão fortemente simplista e estreita da realidade. É verdade que existe uma “avant-garde” organizada e que há os proletários não-organizados, mas é necessário introduzir pelo menos um terceiro elemento nesta análise para entender a realidade: há esta parte de proletários não-organizados que, em uma luta de massa, podem ultrapassar toda uma fração da classe operária organizada que, em função da burocratização das organizações proletárias, terá uma tendência de seguir na luta as palavras de ordem da burocracia e deixará, assim, de estar na [ou fazer parte da] vanguarda na luta.
Essa hipótese de Rosa Luxemburgo foi mal interpretada como uma hipótese espontaneísta, o que não é inteiramente verdade; há um elemento de espontaneísmo mas somente um elemento, que é a compreensão do fato de que “organizado” não é necessariamente idêntico a “avançado” [na luta], o que é evidente até hoje, ninguém contestará. Rosa Luxemburgo não era nem um pouco hostil à organização. Ela era muito favorável à organização, à organização revolucionária. Ela simplesmente entendeu que não há necessariamente identidade entre organização e vanguarda em todos os momentos e sobretudo no momento de uma greve geral.
Lenin levou alguns anos para entendê-lo, mas o entendeu a partir de 1914. E é significativo que os social-democratas o tenham atacado após essa data dizendo “mas você destrói a organização, isto é a revisão de tudo o que defendeu durante vinte anos” e ele respondeu em um de seus polêmicos artigos contra a social-democracia internacional: “a partir de um certo estágio de degeneração, certas formas de organização burocratizadas podem efetivamente ser obstáculos, e os operários não-organizados podem atingir um nível de consciência mais elevado que o das pessoas que permanecem prisioneiras das organizações burocratizadas. É necessário, então, construir uma nova organização. A Segunda Internacional está morta, devemos construir a Terceira Internacional”. E Trotsky, depois de concluir que os partidos da Terceira Internacional haviam se tornado irreformáveis, após a vitória de Hitler, deu ênfases praticamente idênticas àquelas que Lenin utilizou depois de 1914 e que Rosa Luxemburgo já havia utilizado nos anos de 1905 a 1914 na Alemanha para defender a mesma tese.
Passaremos agora à problemática da greve geral tal como ela se apresenta hoje. A princípio operaremos de maneira analítica, e não histórica. Tentaremos analisar o mecanismo de uma greve geral e observar uma dezena de elementos que permitem projetar idealmente sua progressão até, e incluindo, a vitória de uma revolução socialista. Em uma parte final da exposição, retomarei alguns grandes exemplos históricos, sobretudo do movimento operário belga, e observarei em cada caso os fatores que faltaram para que esse transcrescimento se operasse.
1) O que é uma greve geral?
O primeiro traço característico de uma greve geral, e talvez o mais difícil de definir de uma maneira totalmente precisa: o que distingue uma greve geral de uma simples greve ampla? É difícil, pois, de uma maneira puramente quantitativa, não podemos responder à questão. Uma greve geral não é, evidentemente, uma greve na qual participam todos os trabalhadores; isto nunca existiu e jamais existirá! E esperar que o último trabalhador participe da greve pra chamá-la de greve geral é absurdo. Falamos da greve geral na Bélgica em 1960, para todos os efeitos: digamos que houvesse um milhão de grevistas, é a cifra que alcançamos e que eu creio que é um pouco exagerada. Obviamente há mais de um milhão de trabalhadores na Bélgica, algo em torno de dois milhões e meio. Entretanto, o termo estava perfeitamente justificado.
Onde se separa uma greve geral de uma greve simplesmente ampla?
Algumas das principais características são:
1. Esta [a greve geral] é amplamente interprofissional, não apenas na participação, mas também nos objetivos.
2. Se estende muito além do setor privado, incluindo os elementos decisivos de todos os trabalhadores dos serviços públicos, de forma que ela não paralise apenas as fábricas, mas também toda uma série de instituições do Estado: ferrovias, abastecimento de gás, eletricidade, água, etc.
3. E que a atmosfera – é indescritível, mas é provavelmente o fator mais importante – que foi criada no país é uma atmosfera de confronto global entre as classes, ou seja, que não é um confronto entre um setor do patronato e um setor da classe operária, mas que todas as classes da sociedade tem a impressão de que é um confronto entre a burguesia como um todo e a classe operária como um todo, mesmo que a participação dos trabalhadores nessa greve não seja de 100% ou 90%.
É possível que tenham notado que deixei de fora uma outra característica que é muito comumente incluída pelos militantes e pelos teóricos marxistas que se ocupam desta questão. Eu não afirmei que uma greve só é geral se ela apresentar reivindicações políticas. Por que? Uma greve geral é objetivamente política, de forma que ela implica um confronto com a burguesia em seu conjunto e com o Estado burguês, mas não é necessário que ela possua consciência disso desde o início. Há um grande exemplo histórico na Europa, talvez o maior até Maio de 68, que comprova isso, que é o exemplo de Junho de 36, em que nenhuma reivindicação política foi apresentada, em que os operários ocuparam as fábricas e promoveram, aparentemente apenas, reivindicações de tipo econômico (redução das horas de trabalho, férias remuneradas, etc., beirando o “controle operário”), mas onde o próprio Trotsky e todos aqueles que, com um pouco de honestidade, examinaram esse movimento, se deram conta do fato de que esses trabalhadores exigiam, no fundo, infinitamente mais do que o que eram capazes de articular. E seria um erro bastante grave julgar a natureza de uma greve pela capacidade de expressão consciente daqueles que a realizam em um momento determinado.
Crer que uma greve só é geral se ela apresenta reivindicações políticas equivale a dizer “uma greve só é geral se aqueles que a dirigem e exprimem as reivindicações são conscientes de tudo o que ela implica”. Isso restringiria de uma forma muito perigosa a aplicação do conceito de greve geral. A conclusão a que se chega é que, desde o início do movimento, a vanguarda revolucionária se empenha em exprimir a natureza política, os objetivos que vão além dos objetivos econômicos ou específicos de um setor e que seu esforço de politização deve ser cotidiano.
(Continua...)
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