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Sobre Pierre Bourdieu (Daniel Bensaïd)



A seguir, duas entrevistas com Daniel Bensaïd, nas quais comenta a obra de Pierre Bourdieu. As entrevistas estão colocadas em ordem cronológica, sendo que a segunda data do ano e mês de morte de Pierre Bourdieu (1930-2002).


"Bourdieu é um revelador"

(março de 1999)

Daniel Bensaïd

Tradução de Thiago Lopes de Amorim

Revisão de Giulia Molossi Carneiro



Politis: Você se tornou na mídia o defensor reconhecido de Bourdieu!

Daniel Bensaïd: Mais do que um mestre a estudar, Bourdieu é um revelador. Ele é contra a Europa liberal de Maastricht e Amsterdã; ele não é contra a Europa. Ele é contra as formas comerciais de globalização; e ele reivindica um novo internacionalismo. A crítica do capital do Estado é uma parte importante de sua obra; e, ao mesmo tempo, ele toma uma posição pela defesa do serviço público e contra a desregulamentação. Posições como essas o colocam no fogo cruzado entre direita liberal e a esquerda, instaladas no poder e instaladas no gerenciamento. Sinto-me, portanto, muito à vontade quando me pedem para defender Bourdieu, mesmo que eu não seja o que chamam de discípulo.


Politis: Como, desde 1995, a figura de Bourdieu se impôs de forma tão proeminente no movimento social?

Daniel Bensaïd: Paradoxalmente, isso pode ser uma reversão dos efeitos da mídia. A mídia sempre teve clichês sobre o "silêncio dos intelectuais", que é apenas parcialmente, senão realmente verdadeiro. Com isso, procurava explicar o desaparecimento de grandes figuras emblemáticas dos intelectuais. Mas há, antes, uma mutação do status do intelectual, cuja função foi consideravelmente ampliada e difundida. O trabalho intelectual é mais molecular, menos representado por figuras tutelares como Sartre e Camus. Há provavelmente, na mídia, uma nostalgia por esses grandes porta-vozes. Mas acima de tudo, esse novo alívio do intelectual crítico está ligado a um momento de crise dos corpos políticos. A autoridade moral dos partidos de esquerda foi muito enfraquecida depois do Mitterrandismo. Acrescente a isso uma nova relação do intelectual com o renascimento do movimento social, que se cristalizou em torno de um evento: o movimento social de 1995. A clivagem da intelligentsia apareceu então da maneira mais visível possível em duas petições, a de Esprit, social mais liberal, e a petição de apoio aos grevistas, onde Bourdieu era certamente o intelectual mais “titulado”.


Politis: Qual é a articulação entre seu trabalho e seu compromisso político?

Daniel Bensaïd: Há, em Bourdieu, uma verdadeira sociologia crítica da dominação. A descrição da relação dominante/dominado nas relações sexuais, culturais, nas relações com o Estado, fundamenta uma análise crítica das formas de dominação. Mas é simplesmente uma justaposição das diferentes formas de opressão ou elas são articuladas em relações de dominação de classe que podem unificá-las? A análise da multiplicidade de capital também é muito relevante. Há capital cultural, capital simbólico, capital do Estado. Mas quais são as ligações entre diferentes formas de capital? Em geral, há uma contribuição genuína, que tendemos hoje a minimizar, da sociologia de Bourdieu e do dispositivo conceitual que ele forjou. Bourdieu influenciou e formou muitas pessoas. Em um período de desgraça das teorias inspiradas em Marx, a sociologia de Bourdieu tornou-se um ponto de referência, um ponto de vista crítico, que inspirou muitos estudantes das ciências sociais.


Bourdieu é criticado por uma análise da dominação autodeterminada e determinista. Uma vez inscrito o habitus, os dominados seriam condenados a sofrer a reprodução da dominação. Muitos discípulos ou companheiros se afastaram dele por causa da incapacidade de compreender as formas de resistência que permitem escapar do círculo vicioso da dominação. Lá, Bourdieu encontra uma dificuldade que também existe em Marx. Como encontrar os recursos da emancipação durante a exploração, o fetichismo da mercadoria, a mutilação mental e física cotidiana da relação de trabalho? É um grande enigma!


Entrevista concedida a Naïri Nahapétian

Politis nº 540, 18 de março de 1999


* * *


O desaparecimento de Pierre Bourdieu: "A tentação mandarim"

(janeiro de 2002)

Daniel Bensaïd

Tradução de Thiago Lopes de Amorim

Revisão de Giulia Molossi Carneiro



Le Figaro: De que forma o pensamento de Bourdieu revolucionou a sociologia?

Daniel Bensaïd: Revolucionou? Eu realmente não sei o que é a revolução e tenho cuidado com o uso desse termo. De toda forma ["en revanche"], Bourdieu marcou inegavelmente a sociologia. Ao fazer isso, ele combinou uma herança tripla, muito clássica quando você pensa sobre isso, entre uma crítica do ser social de Marx, uma inscrição na tradição sociológica francesa de Durkheim e empréstimos de Max Weber. [Mas] Não se contentou [apenas] em somar essas três contribuições. Devemos, portanto, acolher uma parte real da inovação [consistente] nas ferramentas conceituais com as quais ele construiu o social. Ainda que sejam o objeto de uma apropriação um pouco vagabunda por causa de seu sucesso, os conceitos de Bordieu permanecem operativos para refinar as diferenciações e a crítica do social. O que talvez dê um caráter revolucionário a sua obra é a maneira telescópica com a qual realizou seu trabalho como sociólogo, a cientificidade de que se valeu e seu compromisso político que tem vigorado, essencialmente, nos últimos dez anos [de 1992 a 2002, ano de sua morte].


Le Figaro: Não seria o pensamento de Bourdieu uma variante hiperdeterminista do marxismo, que remove da cultura qualquer função emancipatória?

Daniel Bensaïd: Nós podemos nos perguntar sobre isso. É claro que você está certo, Bourdieu não atribui função emancipatória à cultura, e isso dá a impressão de ter[mos] que lidar com um sistema de dominação totalmente bloqueado. Mas essa característica de seu pensamento talvez decorra, em grande parte, também do efeito de uma era, a dos anos de chumbo que foram os anos oitenta. Mas, para além desse contexto específico, podemos dizer que o problema do determinismo é levantado em Marx e não está bem resolvido.


Le Figaro: Bourdieu concede um lugar menos importante à liberdade que Marx?

Daniel Bensaïd: Podemos perceber que ele não escreve sobre a emancipação das mulheres, mas sobre a dominação masculina! Isso nos coloca no caminho. A dominação é da ordem do dado, é total e brutal e, a partir daí, parece-me que a única brecha nesse dispositivo encaracolado da reprodução ["dispositif bouclé de la reproduction"] é a reflexividade do próprio processo científico.


Le Figaro: Daí uma sacralização da abstração ideológica?

Daniel Bensaïd: Digamos que essa atitude realmente atribua um papel muito privilegiado aos intelectuais, sem que eles se tornem agentes ou atores revolucionários.


Le Figaro: Exatamente, o clero negligencia, mas não intervém ...

Daniel Bensaïd: A concepção que ele tem da sociologia, pelo menos, confirma uma predileção pelo trabalho intelectual, e sua reserva atesta o poder da herança weberiana que requer um distanciamento do compromisso político. Até os últimos anos, Bourdieu manteve esse espírito de distanciamento. Ele achava que não poderia fazer parte da luta sob pena de derrogar sua ética...


Le Figaro: E você se arrepende desse "olhar distante"?

Daniel Bensaïd: Digamos, em todo caso, que essa atitude não foi isenta de riscos, o sociólogo opôs-se ao homem de opinião, o cientista desafiando o homem de opinião ["du doxologue"], é a porta aberta a uma exclusão pela filosofia de tudo isso que não é ela ...


Le Figaro: E à exclusão do mundo, a um curto-circuito da cultura como forma de acesso ao mundo e como instrumento de emancipação?

Daniel Bensaïd: Digamos pelo menos que, até a Miséria do Mundo [livro escrito por Bourdieu em 1993], este modo de santificar a reflexividade do processo científico reitere a luta implacável do filósofo contra o sofista, renova um ethos segundo o qual o discurso da verdade científica se oporia ao inferno das opiniões. E, por sua vez, esse "ou ... ou", esse dualismo dividido em hostilidade à doxa (que opera na crítica à mídia), em última análise deixa pouco espaço para uma ação política específica, inscrita precisamente na tensão permanente entre a verdade e os efeitos da opinião. Os sofistas sabiam disso e não inventaram por acaso a democracia, o que Platão reprova neles...


Le Figaro: Quando escreve na televisão, Bourdieu não é vítima de sua oscilação intelectual?

Daniel Bensaïd: Acho que podemos ver os efeitos. O pequeno livro que teve um grande sucesso de vendas não é uma tese científica, é uma intervenção no registro do panfleto. Mas impulsionado pela análise da reprodução, Bourdieu, ao invés de analisar o campo da mídia usando seu vocabulário, não entra nas contradições dessa prática social dissecando sua articulação à produção de mercado. Mas ele permanece prisioneiro da pura "reprodução". Se os jornalistas forem reduzidos ao estado de "cães de guarda", não será mais uma questão de discutir o conteúdo, apenas de "colaboração" com uma instituição demonizada.


Le Figaro: Nos últimos anos de sua vida, ele desenvolveu uma leitura severa da globalização. Você reconhece isso?

Daniel Bensaïd: Durante os últimos anos de sua vida, ele tentou ser o arquiteto de um movimento social europeu, sem sucesso imediato. Na verdade, ele não entrou diretamente no campo político, mas através de suas posições (as greves de 1995, les sans-papiers [1], o apoio aos desempregados, a intervenção da OTAN nos Bálcãs ... Mas ele teve dificuldade em superar a clivagem entre o conhecimento sociológico e a ideia de servir ao povo, entre a posição do intelectual que superava o social e a do intelectual a serviço do social. Entre um populismo crítico e uma tentação mandarim. Dito isso, ele tem sido um importante companheiro de luta em nossa mobilização contra o ultraliberalismo planetário.


Le Figaro, 25 de janeiro de 2002, entrevista a Alexis Lacroix.


Nota da tradução


[1] Os “sem-documentos” ou “indocumentados”; refere-se a manifestações de protestos de imigrantes ocorridas nos anos 90 na França e na Espanha, principalmente, que requeriam os mesmos tratamentos dispensados aos cidadãos nacionais.

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