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A política profana de Daniel Bensaïd (Josep María Antentas)


A política profana de Daniel Bensaïd

Josep María Antentas

Tradução de Pedro Barbosa




Daniel Bensaïd (1946-2010) foi um nome chave da cena político-intelectual francesa dos anos 90 e da primeira década de nosso milênio. Ele foi um dos fundadores da Jeunesse Communiste Révolutionnaire (JCR) em 1966 e da Ligue Communiste (LC) em 1969 (renomeada Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR) em 1973, após a LC ser legalmente proibida). Em sua juventude, foi líder em maio de 68 do Mouvement du 22 Mars e permaneceu fiel a seu compromisso revolucionário até o fim de sua vida. A despeito das dimensões teórica e militante frequentemente terem se cruzado durante sua carreira, foi apenas nas duas últimas décadas de sua vida que Bensaïd se tornou um pensador amadurecido.

Neste artigo, irei focar em um tema central que atravessa o conjunto de sua obra: a defesa e a busca de uma política profana, uma questão relacionada com a virada messiânica que sua obra sofreu sob a influência de Walter Benjamin.


Razão messiânica

A vocação intelectual de Bensaïd deslanchou quando as grandes esperanças revolucionárias evaporaram. “Nosso universo de pensamento não se esgotou. No entanto, ele foi duramente colocado à prova. A crise foi tripla: crise teórica do marxismo, crise estratégica do projeto revolucionário e crise social do sujeito de emancipação universal”, ele escreve em suas memórias [1]. Bensaïd respondeu a estas crises tentando oferecer uma reconstrução intelectual do pensamento político e estratégico emancipatório. Ele abriu seu período mais produtivo com uma trilogia sobre a história e a memória composta por Moi, la Révolution (1989), Walter Benjamin, sentinelle messianique (1990) e Jeanne de guerre lasse (1991). O segundo volume foi o mais importante e foi o eixo de um giro benjaminiano inspirado por uma leitura política de Sobre o conceito de história. Em busca por um Benjamin político, e até mesmo estratégico (algo que porém foi excessivamente forçado, como Enzo Traverso observou [2], pois Benjamin carece de pensamento estratégico), Bensaïd desenvolveu o que ele viria a chamar “a razão messiânica”. Apoiando-se também em Charles Péguy e Auguste Blanqui, a razão messiânica de Bensaïd se fundamentava em uma concepção da história como um processo aberto, dando atenção preferencial a suas descontinuidades e momentos de ruptura, e em uma concepção não mecânica de causalidade.

O messianismo político é a forma que Bensaïd encontrou para dar um novo significado às frustradas expectativas revolucionárias de sua juventude, em um contexto em que havia poucas razões para manter acesa a chama revolucionária. Ele manteve assim um compromisso revolucionário tenaz, sempre atento às possibilidades da situação política presente e às surpresas da história, mas de um modo que era compatível com grande fraqueza do existente. A razão messiânica de Bensaïd permaneceu firmemente convicta de que “a história não acabou e a eternidade não é deste mundo” [3].


Em busca de uma política profana

O messianismo político bensaïdiano usa referências secularizadas que vêm do imaginário religioso e se dedica ao que ele chamou “a política profana” ⎼ um tópico recorrente ao longo de sua obra e que constitui o tema central de seu último livro importante, Éloge de la politique profane [4]. Ele frequentemente usa o adjetivo em um duplo sentido: como uma crítica da política identitária e do retorno do sagrado na esfera pública e como uma crítica das visões teleológicas da história [5]. O termo “profana” se refere não apenas à política, mas a toda uma constelação de conceitos-chave de seu pensamento tais como revolução, messianismo ou história. O uso do termo, surpreendente à primeira vista, é inspirado no próprio Marx, começando com sua famosa declaração no Manifesto Comunista: “Tudo o que é sagrado é profanado… e o homem é enfim levado a encarar com sobriedade suas condições reais de vida e suas relações com a humanidade” [6]. Se o messianismo político é a via para fornecer um novo significado ao engajamento revolucionário, o trabalho de Bensaïd sobre a política profana é a busca por novos caminhos estratégicos.

Em vez de buscar a substância ou a essência da política, Bensaïd entendia a política através de sua relação com a economia, a estrutura social e as instituições estatais [7]. Ele a definia como a “arte estratégica da conjuntura e do momento propício”, uma fórmula inspirada em Françoise Proust, para quem a política é a “arte do presente e do contratempo” [8]. Ele considera a política profana especificamente como sendo uma “arte de fundar ou transformar um mundo, de produzir um futuro livre dos decretos implacáveis do oráculo antigo” [9]. Ele a opõe à toda sacralização da política e à toda subordinação aos imperativos do mercado. Em outras palavras, sua política profana está baseada no “primado não negociável dos princípios sobre a tática” [10]; seu papel é, para colocar em termos benjaminianos, evitar a catástrofe e tornar o necessário possível.

O ponto de partida da reflexão de Bensaïd é a preocupação com a crise estrutural da política profana sob o impacto da mundialização do capital. De um lado, a mercantilização generalizada do mundo e das relações sociais visa a acabar com a política em prol de uma administração tecnocrática pró-mercado. De outro, ela gera um movimento de dessecularização, um renascimento das crises de identidade e guerras santas.

Em sua busca da política profana, ele embarcou em um percurso quadruplamente entrelaçado: reafirmar o horizonte revolucionário em um contexto em que o imaginário revolucionário havia esvanecido; salvar o comunismo do stalinismo; não abandonar a luta política em prol do ativismo nos movimentos sociais; e não cair em um radicalismo estético ou filosófico politicamente estéril.

Revolução e comunismo vão de mãos dadas em sua tentativa de reformulá-los em um sentido profano. Concebida como uma interrupção messiânica do continuum da história, para Bensaïd a revolução “sem imagem nem maiúscula permanece então necessária enquanto ideia indeterminada desta mudança e bússola de uma vontade” [11]. A revolução, destituída de todo fetichismo e sacralização, opera como uma “hipótese estratégica e horizonte regulador” [12] da mudança social. Bensaïd também utiliza o conceito de “horizonte regulador” para se referir à própria ideia do comunismo, que ele tenta resgatar dos julgamentos sumários ao qual ela foi submetida nos anos 90 por autores como François Furet e Stéphane Courtois [13]. Isso significa distinguir o comunismo do stalinismo e das experiências burocráticas que foram a sua sinistra caricatura: “Ceder à identificação do comunismo com a ditadura totalitária stalinista seria capitular diante dos vencedores provisórios, confundir a revolução com a contrarrevolução burocrática”, ele escreve no último de seus artigos, “Forças do comunismo” [14]. Renunciar a um horizonte não capitalista significaria, além disso, seguindo a noção benjaminiana de redenção, “cometer uma injustiça irreparável para com os vencidos, todos eles e elas, anônimos ou não, que viveram apaixonadamente a ideia comunista” [15].

Na compreensão bensaïdiana da revolução e do comunismo, não há espaço para um sujeito mitificado da emancipação universal. Ele frisa a necessidade de “laicizar a concepção de classes” [16] e se pergunta: “Sujeito, a classe? Se se quiser, sim, mas então sujeito turbulento, contraditório, esquizóide” [17]. De fato, “é suficiente pensar o devir real de uma pluralidade de formas emergentes, de atores e de agenciamentos sem grande sujeito” [18]. Sua proposta estratégica é a articulação de um bloco plural de resistências e movimentos cuja causa comum é a rejeição da mercantilização generalizada do mundo.

O terceiro aspecto de sua busca da política profana é a defesa da perspectiva política, pontuando os limites do simples ativismo de movimento. Enquanto um apoiador do movimento de justiça global (ou anti-globalização), que estava em ascensão no começo do novo milênio, Bensaïd no entanto observou as limitações das concepções estratégicas mais em voga em seu interior. Dialogou em particular com Negri e Hardt e seus livros Empire (2000) e Multitude (2004), e com John Holloway e seu Change the World Without Taking Power (2002) [19]. Para Bensaïd, muitas das ideias do movimento anti-globalização representavam uma “ilusão social”, baseada na crença da auto suficiência dos movimentos sociais, na dissolução do político no social e em uma negligência da questão do poder. Ele usava o termo ilusão social como uma referência invertida à “ilusão política” que Marx criticava nos jovens hegelianos que reduziram a emancipação humana à emancipação cívica [20].

O quarto aspecto da busca profana de Bensaïd é o seu debate com aqueles autores que, deparados com o súbito declínio da política profana, caíram no que ele considerava tentações escapistas. Dadas as dificuldades de se pensar outro tipo de política, para Bensaïd muitos autores que compartilhavam com ele uma perspectiva anticapitalista haviam se enclausurado em refúgios estéticos, filosóficos ou éticos. Esta é, por exemplo, a crítica que faz a Alain Badiou, que ele acusa de estar tentado a “renunciar à política em vez de assumir as suas contradições” [21], ao se refugiar em um radicalismo filosófico distante de qualquer política concreta. Para Bensaïd, em Badiou há uma fetichização do acontecimento, que se torna política e historicamente descontextualizado. O acontecimento revolucionário aparece como uma espécie de milagre, descolado da política e da história ⎼ o exato oposto da leitura estratégica da história e da política que está no coração de seu próprio pensamento.


A aposta melancólica

A ameaça de desaparecimento da política profana não implica, no entanto, a teorização de seu declínio inexorável nas mãos da dominação capitalista absoluta. Bensaïd insiste na necessidade e possibilidade de “quebrar o círculo vicioso do capital e do fetichismo absoluto da mercadoria” [22]. A proposta bensaïdiana para encontrar uma saída é clara: “trabalhar a contradição” [23] ⎼ buscar as fissuras que às vezes parecem não existir, olhando para as possibilidades ainda por vir.

A concepção profana da história e da política culminam em sua obra com a definição do engajamento político como uma “aposta melancólica”. Em Le Pari mélancolique (1997), ele reviveu a interpretação marxista feita por Lucien Goldmann, nos anos 60, da aposta pascaliana na existência de Deus, à qual Bensaïd acrescentou o adjetivo “melancólica”, devido à divergência entre “o necessário e o possível” [24].

Uma vez que a urgência e a expectativa revolucionárias de sua juventude haviam esvanecido, Bensaïd e seus companheiros de viagem tiveram de aprender a “necessária lentidão revolucionária” e a “arte da espera”, uma espera que, no entanto, era ativa e perseverante [25]. Se em sua juventude Bensaïd havia evocado o sentimento de iminência da revolução com a frase “a história nos morde a nuca”, o Bensaïd maduro toma como seu leitmotif a expressão “uma lenta impaciência” [26], de George Steiner, usando-a como título de sua autobiografia publicada em 2004. Em termos políticos e teóricos, o caminho entre as duas formulações representa a passagem de um esquerdismo juvenil voluntarista e subjetivista marcado por uma certa leitura de Lukács (e exemplificada em sua dissertação de mestrado de 1968, orientada por Henri Lefebvre, intitulada La notion de crise révolutionnaire chez Lénine) [27] a um messianismo político e uma política profana com uma marca benjaminiana.

A aposta melancólica de Daniel Bensaïd, então, torna-se a via para combinar a incerteza inerente ao seu compromisso revolucionário profano e suas inabaláveis convicções. Um teórico e prático da política profana, Bensaïd conclui seu Éloge de la politique profane como um sentinela messiânico, se retomarmos a imagem gráfica que ele utiliza para se referir a Benjamin, que cuidadosamente, fervorosamente e pacientemente examina as “rachaduras da dominação de onde pode surgir uma possibilidade intempestiva” [28].


* Josep María Antenas (Universitat Autònoma de Barcelona). Publicado em French Studies Bulletin, v. 42, n. 160, 2021.



Notas

1. Daniel Bensaïd, Une lente impatience (Paris: Stock, 2004), p. 278; ver também Darren Roso, “Confronting the Triple Crisis of the Radical Left”, Historical Materialism, 26 (1) (2018), 37–67.

2. Enzo Traverso, Mélancolie de gauche (Paris: La Découverte, 2016), cap. 5.

3. Daniel Bensaïd, Le Sourire du spectre (Paris: Michalon, 2000), p. 230.

4. Daniel Bensaïd, Éloge de la politique profane (Paris: Albin Michel, 2008).

5. Antoine Artous, “Daniel Bensaïd ou la politique comme art stratégique”, Contretemps, 7 (2010), 82–92. [Nota do tradutor: há versão em português, publicada pelo Blog Marxismo Revolucionário Internacional - MRI: <https://teoriamarxista.wixsite.com/blog-mri/post/daniel-bensaid-politica-arte-estrategica-antoine-artous>]

6. Karl Marx, Manifesto of the Communist Party, 1848, disponível em: <https://www.marxists.org/archive/marx/works/download/pdf/Manifesto.pdf> [acessado em 06.01.2020].

7. Daniel Bensaïd, Éloge de la résistance à l’air du temps (Paris: Textuel, 1999).

8. Daniel Bensaïd, Penser agir (Paris: Lignes, 2008), p. 271; Françoise Proust, De la Résistance (Paris: Le Cerf, 1997).

9. Bensaïd, Éloge de la politique profane, p. 347.

10. Daniel Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique (Paris: Les Prairies ordinaires, 2010 [1990]), p. 241.

11. Daniel Bensaïd, Le Pari mélancolique (Paris: Fayard, 1997), p. 290.

12. Ibid.

13. François Furet, Le Passé d’une illusion: Essai sur l'idée communiste au XXe siècle (Paris: Calmann-Lévy, 1995); Stéphane Courtois, Le Livre noir du communisme: Crimes, terreur, répression (Paris: Robert Laffont, 1997).

14. Daniel Bensaïd, “Puissances du communisme”, Contretemps (2014), disponível em: <https://www.contretemps.eu/puissances-communisme/> [acessado em 06.01.2020]. [Nota do tradutor: há versão em português, publicada pelo Blog da Boitempo: <https://blogdaboitempo.com.br/2018/01/12/bensaid-forcas-do-comunismo/>]

15. Ibid.

16. Daniel Bensaïd, La Discordance des temps (Paris: Éditions de la Passion, 1995), p. 263.

17. Daniel Bensaïd, Marx l’intempestif (Paris: Fayard, 1995), p. 303. [Nota do tradutor: há versão em português, publicada pela Civilização Brasileira em 1999].

18. Daniel Bensaïd, Le Spectacle, stade ultime du fétichisme de la marchandise (Paris: Lignes, 2011), p. 86.

19. Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2000); Michael Hardt e Antonio Negri, Multitude: War and Democracy in the Age of Empire (Harmondsworth: Penguin, 2004); John Holloway, Change the World Without Taking Power (London: Pluto Press, 2002).

20. Bensaïd, Penser agir, pp. 163–64.

21. Bensaïd, Éloge de la politique profane, p. 351. Ver também Daniel Bensaïd, Résistances (Paris: Fayard, 2001).

22. Bensaïd, Éloge de la politique profane, pp. 356 and 357.

23. Bensaïd, Le Spectacle, stade ultime du fétichisme de la marchandise, p. 42.

24. Lucien Goldmann, Recherches dialectiques (Paris: Gallimard, 1967); Bensaïd, Une lente impatience, p. 454. Para uma análise detalhada desta questão, ver Josep María Antentas, “Daniel Bensaïd, Melancholic Strategist”, Historical Materialism, 24 (4) (2016), 51–106.

25. Bensaïd, Une lente impatience, pp. 30 e 31.

26. George Steiner, Épreuves (Paris: Gallimard, 1993).

27. Daniel Bensaïd, La notion de crise révolutionnaire chez Lénine, 1968, disponível online em: <http://danielbensaid.org/La-notion-de-crise-revolutionnaire-chez-Lenine?lang¼fr> [acessado em 06.01.2020]. Para uma análise detalhada, ver Patrick King, “Crisis and Strategy: On Daniel Bensaïd’s ‘The Notion of the Revolutionary Crisis in Lenin’”, Viewpoint Magazine (2014), <https://viewpointmag.com/2014/09/04/crisis-and-strategy-on-daniel-bensaids-the-notion-of-the-revolutionary-crisis-in-lenin/> [acessado em 15.08.2020].

28. Bensaïd, Éloge de la politique profane, p. 357.

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