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Sexo e a Revolução Russa (Peter Drucker)


Sexo e a Revolução Russa

Tradução Bruna dos Santos

Revisão de Pedro Barbosa


A grande questão em torno do centenário da Revolução de Outubro: este evento, ocorrido há cem anos, ainda é relevante para a esquerda hoje?


Há décadas tem havido uma batalha constante entre historiadores e ideólogos tradicionais nos dizendo que o legado de outubro foi, e merece estar, morto e enterrado. No entanto, algumas pessoas no campo da esquerda radical defendem uma recuperação crítica da herança de 1917. Eu acredito que esses argumentos são bem fundamentados. De muitas maneiras, os insights estratégicos que a Revolução de Outubro produziu ainda não foram superados ou, de certa forma, mesmo igualados.


Mas mesmo na extrema esquerda, receio, há muito mais pessoas que apreciam o que os bolcheviques têm a nos ensinar sobre o valor das instituições democráticas forjadas na luta, os perigos da burocracia, a possibilidade de um país subdesenvolvido romper com o capitalismo e a importância do internacionalismo, do que sobre política sexual.


De fato, havia também bolcheviques que tinham insights valiosos sobre política sexual. Acredito que também possamos recuperar a política sexual da Revolução de Outubro, como um passado relevante, um passado utilizável.


Esta é uma operação delicada, no entanto, porque um passado utilizável deve ser um passado historicamente preciso. E as condições da política sexual na Rússia em 1917 eram muito diferentes daquelas que encontramos hoje. Portanto, tirar lições de 1917 para 2017 deve ser feito com muito cuidado, fazendo um grande esforço para evitar anacronismos.


Eu acho que as lições estão lá. Mas elas têm tanto a ver com rupturas históricas quanto com continuidade.


Atualizando


Por que 1917 é importante para a política sexual? Porque a primeira década da Revolução de Outubro produziu uma riqueza extraordinária de reflexão e ativismo sobre questões de gênero e sexualidade.


O problema é que hoje quase ninguém sabe disso, ou mesmo acredita nisso quando lhe é contando. Tem havido um grande esforço para ocultar e negar o radicalismo sexual dos primeiros comunistas, por liberais à direita e tanto por stalinistas quanto por anarquistas à esquerda. Como resultado, a imagem dominante hoje é que os bolcheviques eram puritanos sexuais.


Os stalinistas propagaram essa imagem mencionando uma variedade de citações de Lênin. Muitas dessas citações vieram de memórias não comprovadas de pessoas como Clara Zetkin e Nadezhda Krupskaya [1], comunistas que fizeram parte de correntes de oposição anti-stalinistas por um tempo (a corrente de Paul Levi, no caso de Zetkin e de Grigory Zinoviev, no caso de Krupskaya) antes de capitularem à ortodoxia stalinista.


Outras citações foram tiradas de cartas que não foram escritas com o objetivo de publicação. E outras, dos escritos publicados de Lênin, foram retiradas de contexto.


Sem dúvida, Lênin tinha um lado sexualmente conservador. Mas é estranho depender de Lênin para criar uma imagem da política sexual bolchevique. Apesar das grandes contribuições de Lênin em outros campos, a política sexual nunca foi uma prioridade para ele. E ele desempenhou apenas um papel minoritário na definição das políticas sexuais soviéticas entre 1917 e sua morte.


Para se ter uma ideia da política sexual bolchevique nos primeiros anos após a revolução, os escritos de Alexandra Kollontai são muito mais úteis. Quando ela foi a primeira comissária bolchevique de questões sociais, suas ideias foram refletidas em decretos revolucionários. E seus decretos não se limitavam apenas ao papel; eles foram postos em prática.


É verdade que suas ideias rapidamente foram perdendo apoio depois disso, especialmente após ela ter se tornado líder da Oposição Operária no partido e sua corrente ter sido derrotada e marginalizada em 1920-21. Mas mesmo quando suas ideias sobre sexualidade eram ferozmente atacadas em congressos partidários – e às vezes cruelmente distorcidas – elas ainda estavam sendo debatidas. Ainda não era possível, no clima relativamente livre do bolchevismo no início dos anos 20, silenciar completamente suas ideias.


A afinidade entre as ideias de Kollontai e a política sexual de feministas marxistas e de queers radicais hoje é extraordinária. Mesmo após o declínio do stalinismo, no entanto, a maioria dos marxistas negligenciou o rico legado da política sexual dos primeiros comunistas.


Nas décadas de 1960 e 1970, isso teve muito a ver com a simpatia de muitos membros da Nova Esquerda pela China, pelo Vietnã e por Cuba, que não possuíam uma política sexual libertadora naqueles anos (para colocar de maneira suave).


Os trotskistas tiveram um ponto de partida melhor, porque sempre condenaram a recriminalização stalinista do aborto e da homossexualidade. Mas eles também tiveram um problema: seu perfil social foi moldado nas décadas de 30 e 40 com uma orientação predominante para os trabalhadores industriais do sexo masculino, que eram frequentemente vistos como sexualmente conservadores.


Assim, mesmo os trotskistas não destacaram, num primeiro momento, o radicalismo sexual bolchevique inicial. Alguns, especialmente na Quarta Internacional, começaram a recuperá-lo após 1968. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. Eu gostaria de ajudar a continuar e acelerar essa recuperação.


Amor-camaradagem


Por que digo que as ideias de Kollontai têm uma afinidade extraordinária com a política sexual de feministas marxistas e queers radicais de hoje? Eu me baseio no argumento que ela apresentou em "Abram caminho para o Eros alado" [Make Way for Winged Eros], e especialmente em seu conceito de "amor-camaradagem".


O amor camaradagem era para Kollontai a forma de amor sexual apropriada à era da dominação proletária, da mesma forma como o amor cortês era ao feudalismo e o casamento burguês e a prostituição eram ao capitalismo. O amor camaradagem significava para ela, em contraste com a privatização do sexo e do amor na sociedade burguesa, a incorporação do amor sexual em uma coletividade socialista – na qual as mulheres eram totalmente iguais e independentes.


É claro que ela rejeitou a prostituição – mas era igualmente feroz na rejeição de casais sexuais de longo prazo nos quais uma mulher era dependente de um homem. É por isso que ela rejeitou a criminalização na luta contra a prostituição. Ela argumentou que, se os clientes das prostitutas deveriam ser presos, também deveriam ser "os maridos de muitas esposas legais" [2].


A libertação sexual das mulheres exigia aos seus olhos a completa socialização dos cuidados infantis – e ela foi muito longe. A maternidade, escreveu ela, "não significa que de modo algum que uma pessoa deva sozinha trocar as fraldas, lavar o bebê ou mesmo estar ao lado do berço" [3].


Ela defendeu o divórcio fácil e livre, o que era a política oficial. Mas ela também foi contra "quaisquer limites formais ao amor", qualquer julgamento de valor aos relacionamentos longos, em oposição aos de curto prazo, e qualquer imposição da monogamia como norma.


Ela afirmou "o valor da experimentação em... relacionamentos amorosos". Não apenas o amor, mas também a "paixão passageira" eram uma base legítima para um relacionamento sexual, ela argumentou; “cálculo, hábito ou mesmo afinidade intelectual” não eram. (Ainda hoje, penso, os comentários afiados de Kollontai ainda podem nos deixar desconfortáveis!). As chaves para ela eram "total liberdade, igualdade e amizade genuína" [4].


Relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo


Kollontai em seus escritos falava apenas sobre vínculos sexuais entre homens e mulheres, não sobre laços entre pessoas do mesmo sexo. Isso pode nos parecer estranho hoje. Eu acho que não é nenhuma surpresa.


Ao contrário da Alemanha no início do século 20, a Rússia não tinha um movimento de emancipação homossexual. Na Rússia, a comunidade e a identidade homossexual estavam desenvolvidas de forma muito mais frágil. Isso significava que a homossexualidade não era uma prioridade para o trabalho entre mulheres, que era o foco de Kollontai.


Isso torna ainda mais notável que as posições bolcheviques sobre a homossexualidade na década de 1920 tenham sido tão avançadas. Penso que isso se devia principalmente ao internacionalismo bolchevique, à experiência internacional de muitas lideranças bolcheviques no exílio antes de 1917, e especificamente ao excelente exemplo dado por August Bebel no Reichstag de 1898, argumentando pela descriminalização de atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo.


Quaisquer tenham sido as razões, na maior parte da década de 1920 na Rússia soviética, era comum um espírito positivo ao lidar com relações entre pessoas do mesmo sexo – principalmente relações lésbicas.


Havia mulheres em posições de comando no Exército Vermelho que mantinham relações sexuais com outras mulheres, vistas como “lésbicas felizes e bem ajustadas”. Em Moscou, na década de 1920, o círculo de artes privadas Antinoi realizou leituras de poesia e apresentações musicais e de balé sabidamente homossexuais. E houve vários casos na década de 1920 quando os tribunais soviéticos reconheceram como legal o casamento entre pessoas do mesmo sexo [5].


O fato de isso continuar a ser novidade, mesmo para pessoas que conhecem razoavelmente bem a história da Revolução Russa, mostra quanto trabalho ainda precisa ser feito para recuperar o legado radical das primeiras políticas sexuais bolcheviques.


Política questionada


É importante ressaltar, porém, que nenhuma dessas posições radicais jamais esteve livre de questionamento na Rússia bolchevique. Esses posicionamentos perderam apoio em meados da década de 1920, mesmo antes da vitória definitiva do stalinismo – antes da recriminalização do aborto e da homossexualidade na década de 1930.


A visão de Kollontai de uma sexualidade totalmente livre pressupunha uma extensa infra-estrutura socializada para libertar as mulheres dos trabalhos domésticos. Isso nunca existiu na Rússia na década de 1920. Então sua visão era em grande parte utópica – assim como muitas das primeiras ideias bolcheviques.


Os romances de Victor Serge capturaram os terríveis paradoxos daqueles anos: pessoas passando fome e congelando em cidades em ruínas e quase abandonadas, enquanto desenhavam seus projetos para a verdadeira cultura proletária e o glorioso futuro socialista.


Essa tendência utópica ajuda a explicar as derrotas de Kollontai nos debates bolcheviques, como a derrota de sua forte tentativa de incluir o "enfraquecimento [withering away] da família" no programa do partido. Isso a levou a advertir que "o modo de vida pequeno-burguês e sua ideologia estão nos inundando" [6].


A legislação familiar libertária adotada em 1922, que ela apoiou, levou a efeitos colaterais não desejados, principalmente o abandono maciço de mulheres e crianças e o aprofundamento de sua pobreza. Esse foi um motivo para a sua emenda em uma direção mais conservadora em 1926.


Além disso, mesmo a política sexual bolchevique mais radical tinha suas limitações. Por exemplo, não tenho conhecimento de nenhum bolchevique que defendesse o direito de auto-organização independente para mulheres ou minorias sexuais.


Havia organizações de mulheres bolcheviques na Rússia soviética, e conferências de mulheres bolcheviques, que lutaram pela emancipação das mulheres e se tornaram um modelo para organizações de mulheres comunistas em outros países. Mas a tarefa que lhes foi designada era desenvolver o bolchevismo entre mulheres não bolcheviques e organizar o trabalho do partido entre as mulheres.


Elas não deveriam combater coletivamente os preconceitos e privilégios dos homens da classe trabalhadora dentro do partido. Isso limitou sua capacidade para resistir à reação conservadora no partido quando ela começou.


Outra restrição foi a confiança acrítica dos bolcheviques na ciência. Para os marxistas no início do século 20, a religião era vista como a principal fonte de preconceito sexual, e a ciência um aliado contra ele.


Por vários anos, a posição anticlerical libertária dos bolcheviques e seu impulso pela modernização científica pareciam andar naturalmente juntos. Mas, em algum momento, como no entusiasmo de Lênin pelas técnicas de gestão tayloristas, divergiram.


A posição geralmente favorável da esquerda em relação à eugenia era um sintoma do mesmo problema. Ainda havia pouca compreensão do papel que um crescente estabelecimento científico poderia desempenhar no fortalecimento da autoridade burocrática, tanto em questões sexuais quanto em outras, e na limitação da auto-atividade.


Lições e um novo começo


Que lições podemos tirar de tudo isso hoje? Positivamente, podemos destacar para ativistas feministas e queers a forte afinidade entre a visão de Kollontai sobre a autonomia sexual das mulheres e o amor camaradagem e um ideal queer contemporâneo como o poliamor.


Hoje, com muita freqüência, à medida que a palavra "poliamor" se manifesta na mídia tradicional, ela está sendo usada apenas para significar "não-monogamia". Mas originalmente para queers radicais significava muito mais do que isso. Assim como o “amor camaradagem” para Kollontai, o poliamor implicava uma valorização da amizade e um compromisso compartilhado, ao invés de uma mera busca consumista por orgasmos.


Ao mesmo tempo, devemos enfatizar a base material e o conteúdo de classe do programa de Kollontai, especialmente quanto à necessidade de ampla socialização do trabalho doméstico e do cuidado com as crianças como uma pré-condição para a libertação sexual. E devemos enfatizar a pré-condição que os bolcheviques não viram: a auto-organização independente das vítimas da opressão de gênero e sexual, dentro dos movimentos operários e socialistas, bem como em todo o mundo.


Tudo isso, eu diria, é a parte mais fácil. A parte difícil é adaptar a política sexual bolchevique às diferentes classes e ambientes sociais de hoje.


De certa forma, sofremos do problema oposto ao que os radicais sexuais tiveram que enfrentar na década de 1920. Naquela época, a política de classe corria o risco de exterminar a política sexual. Hoje, nos meios feministas e queer, é a política de classe que tem dificuldade de ser ouvida.


Na Rússia, em 1917, e por anos depois, milhões de pessoas da classe trabalhadora se identificaram fortemente como classe trabalhadora. Os bolcheviques não precisaram inventar a cultura da classe trabalhadora; eles nasceram como parte disso. Eles tinham isso como pressuposto.


Isso ainda era verdade na Europa Ocidental nas primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial e, em menor grau, nos Estados Unidos. Quando a segunda onda do feminismo e a libertação de lésbicas e gays decolou, boa parte de seus ativistas eram jovens que, mesmo que não desempenhassem, necessariamente, trabalhos de classe trabalhadora, vinham de origens na classe trabalhadora e estavam interessados em estabelecer vínculos com o movimento da classe trabalhadora.


Hoje, em contraste, após a fragmentação e desorganização da classe trabalhadora por 40 anos de neoliberalismo, uma proporção muito grande de pessoas objetivamente pertencentes à classe trabalhadora não tem mais essa forte identidade de classe.


Na minha experiência, os jovens de hoje que chegam ao feminismo ou ao ativismo queer não costumam se radicalizar espontaneamente com base em questões de classe. Isso não significa que, frequente e conscientemente, não tenham boas coisas a dizer sobre o capitalismo. Mas, inconscientemente, muitas vezes, parecem toma-lo como algo dado de qualquer modo.


Isso não significa que o anticapitalismo seja objetivamente menos necessário. Em 2017, como em 1917, a lógica é inevitável: não pode haver verdadeira libertação sexual sem derrubar os fundamentos capitalistas da vida doméstica e pessoal.


Mas em 1917, o anticapitalismo foi o ponto de partida, e a libertação sexual veio depois. Hoje, às vezes, temos que lidar com as coisas no sentido oposto.


É mais difícil hoje os jovens se radicalizarem nas batalhas da classe trabalhadora, porque as batalhas da classe trabalhadora estão dispersas e na defensiva. Portanto, é uma sorte para a esquerda que muitos jovens estejam se radicalizando em torno de questões de gênero e sexualidade, assim como na luta contra o racismo.


Mas conquistar jovens feministas e queers radicais para o marxismo não é fácil. Francamente, não acho que muitos jovens por aí hoje vejam espontaneamente o socialismo como sexy. Mas penso que recuperar o legado perdido do radicalismo sexual bolchevique pode ajudar a convencê-los de que ele era e ainda é.


Notas

[1] Clara Zetkin, Lenin on the Women’s Question, https://www.marxists.org/archive/zetkin/1920/lenin/zetkin1.htm; Nadezhda Krupskaya, Reminiscences of Lenin, Chicago: Haymarket, 1917. Veja também Alexandra Kollontai, Selected Writings, traduzido por Alex Holt, Westport, CT: Lawrence Hill and Co., 1978, 202-3.

[2] Kollontai, op.cit., 271-2.

[3] Ibid., 142.

[4] Ibid., 289, 288; Dan Healey, Homosexual Desire in Revolutionary Russia: The Regulation of Sexual and Gender Dissent, Chicago: University of Chicago Press, 110-1; Kollontai, op.cit., 230, 259, 229.

[5] Healey, op.cit., 61-2, 143-4, 47, 68.

[6] Kollontai, op.cit., 301.

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