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A lenda negra de Losurdo (Antonio Moscato)


A lenda negra de Losurdo

Antonio Moscato

Tradução de Pedro Barbosa




Domenico Losurdo insiste mais uma vez em sua ideia fixa: a de que Stálin foi vítima de uma campanha sistemática de denigração, de uma “lenda negra” (Domenico Losurdo, 2011, Stalin. Historia y crítica de una leyenda negra. Barcelona: El Viejo Topo).


A própria escolha do termo é discutível, mas, como veremos, nada casual: é o que se utilizou na Espanha para tentar negar o horror do extermínio dos povos indígenas da América, atribuindo-lhe a uma “lenda” criada por países hostis e que competiam com ela na conquista feroz do mundo extra-europeu. Mas não se trata unicamente do título.


Losurdo, como historiador, é uma ruína, mas como polêmico ele é ainda pior: ele escolhe como alvo autores mais do que discutíveis. Seu primeiro alvo é Kruschev, quem ele evidentemente conhece pouco. Dá por certo sobretudo o seu “anti-estalinismo” e pensa que ele foi acolhido com entusiasmo pelos trotskistas (cujas posições ele ignora por completo), os quais, pelo contrário, disseram de imediato que o sucessor de Stálin estava somente tentando se livrar de qualquer responsabilidade por sua longa e estreita colaboração com o ditador. Ernest Mandel escreveu um pequeno livro muito claro sobre todas as mentiras e meias verdades do relatório secreto, o qual, por outro lado, Losurdo insinua não ser confiável porque foi publicado “pela CIA”, ignorando que não só se sabe bem, há décadas, como o fizeram chegar ao Ocidente justamente os serviços secretos soviéticos, mas também que as acusações contra Stálin – insuficientes, mas desconcertantes para quem tinha querido olhar para outro lado – foram confirmadas com as mesmas palavras por Kruschev no relatório e nas conclusões do 22º Congresso do PCUS, ou seja, em um ato oficial.


A outra fonte escolhida polemizar facilmente é o famoso Livro Negro do Comunismo, ou melhor, sua questionável introdução por Stéphane Courtois, ignorando na realidade que a parte sobre a URSS, da qual se encarregou Nicolas Werth, não é tão fantasiosa e “ideológica”. Em geral, Losurdo ignora todos os testemunhos históricos não apologéticos e se centra em grande medida em alguns elogios a Stálin expressos por ilustres conservadores, sem se perguntar por que Stálin foi tão apreciado por esses senhores. Assim, menciona com entusiasmo o juízo positivo de Churchill (também poderia ter lembrado o de Von Ribbentrop...) ou o de De Gasperi, que exaltou Stálin como um gênio...


Quanto ao Gulag, Losurdo diz que não há razão para ficar horrorizar, dado que também no Ocidente havia campos de concentração para inimigos e estrangeiros. Isso é verdade, mas aonde isso nos leva? Para que serviu uma revolução se depois iria se fazer as mesmas coisas que os outros? Losurdo não se faz esta pergunta e poderia-se dizer que, apesar de algumas proclamações verbais, não é um revolucionário, mas antes um conservador. Além dos argumentos que justificam todo o ocorrido por considerá-lo inevitável, há tanta coisa no livro que range e é imprecisa que nem sequer valeria a pena comentá-la. Nós o fazemos apenas porque se trata de uma sistematização de um pensamento bastante difundido em alguns setores da esquerda, e não apenas na “extrema”. Um pensamento que nasce da nostalgia da “ordem” que reinava na URSS antes de seu colapso, sobre o que, aliás, Losurdo só se detém de passagem, insinuando que foi obra de vários “demolidores” a serviço do inimigo.


Losurdo ignora completamente a vasta literatura soviética sobre o Gulag (ele ignora Solzhenitsyn e Salamov, Grossman e Rybakov, Ginzburg e Mandelstam e centenas de outros que sofreram o stalinismo em sua própria carne e na de seus entes queridos), e por outro lado se baseia, por exemplo, em um panfleto juvenil de... Curzio Malaparte, para reduzir o terror stalinista a uma legítima resposta a uma tentativa de “golpe de estado das oposições”.


Supõe-se assim que teria sido um golpe de estado a tentativa desesperada de imprimir com mimeógrafo as teses da Oposição de Esquerda em 1927 e de desfilar com bandeiras contra a burocracia no 20º aniversário da Revolução de Outubro. Losurdo está tão ofuscado que nem sequer cita a carta de Gramsci de 1926, na qual criticava a expulsão de Trótski e outros do partido e que foi interceptada por Togliatti e Bukharin, enquanto recorre a várias frases obscura dos Quaderni para contrapor o suposto internacionalismo de Stálin ao “cosmopolitismo” de Trótski. Na URSS stalinista, esta acusação aludia a suas origens judaicas, mas Losurdo não admite isto: assim, chega a dizer que o “complô dos médicos” desmentiu o antissemitismo de Stálin, já que, depois de tudo, ele colocou sua saúde nas mãos de médicos judeus.


Não continuemos, então, com Losurdo. Vale notar que o ensaio de Luciano Canfora no final do livro parece mais uma tomada de distância do que um resumo. Canfora foi durante anos a inspiração de Losurdo, mas é mais inteligente e relativamente mais culto e domina o ofício de historiador, mesmo que no passado ele nem sempre o tenha aplicado à história contemporânea; nesta ocasião fez melhor uso dele e deixou de lado muitas das teses que sustentava em um passado não distante, como a do “relatório secreto” manipulado pela CIA ou a que afirmava a inevitabilidade e acerto do pacto russo-germânico de 1939.


Neste sentido, por exemplo, Canfora diz: “Os motivos aduzidos posteriormente, segundo os quais o pacto foi fechado para ‘se preparar’ melhor, para ganhar tempo em relação a um ataque alemão posterior, são provavelmente razões concebidas em retrospectiva: não está de forma alguma demonstrado que Stálin realmente considerava inevitável o ataque alemão contra a URSS; assim, a falta de preparação que a ‘operação Barbarossa’ encontrou nas linhas soviéticas induz a pensar o contrário”. Isto não é pouca coisa, e sobretudo é justamente o contrário do que ele sustentava há alguns anos.


Entretanto, que ninguém se engane, pois o ensaio de Canfora segue contendo numerosos erros de vulto (sobre a interpretação do papel de Stálin na revolução espanhola, ou sobre a inexistência de uma revolução na Alemanha e na Áustria durante as negociações de Brest Litovsk). Mesmo assim, se apreciam traços de uma evolução inesperada após décadas de um tenaz “justificacionismo”.


Isto parece se refletir no novo livro de Canfora sobre falsificações na história, mesmo sabendo que em parte ele reciclou artigos publicados sobretudo no Corriere della sera (Luciano Canfora, 2008, La storia falsa. Milão: Rizzoli), mas a surpresa é que abandona alguns de seus cavalos de batalha, como por exemplo a suposta falsificação do relatório secreto e o caso muito mais importante das manipulações do “testamento de Lênin”.


Canfora gosta de se apresentar como uma espécie de Sherlock Holmes da filologia. Às vezes acerta, como no caso da carta de Ruggero Grieco que tanto indignou Gramsci no cárcere [1] e que havia sido alterada pela polícia fascista, assim como também no caso do suposto “papiro de Artemidoro”, ao qual Canfora dedicou nada menos que dois livros (mas não vou me deter nisso, já que por um lado não conheço bem o assunto e por outro também não me apaixona muito...). Mas às vezes também se engana.


A novidade é que se alguém que ele estima advertir o erro e lhe fornecer uma documentação que o conteste, também sabe dar um passo para trás e inclusive expressar um reconhecimento indireto a seu mentor, incluindo-o em uma longa lista daqueles que “contribuíram generosamente para o nascimento deste livro”.


A maior parte do livro está dedicada ao tema, já repetidamente discutido, da carta de Grieco a Gramsci, com uma polêmica não dissimulada com Spriano; é um pouco pedante e, portanto, pesada. Mas a primeira parte, que é dedicada ao “Testamento de Lênin” [2], merece alguma atenção. Anos atrás eu já lia, sem concordar, o que Canfora escreveu a respeito, mas decidi relê-lo por causa de uma nota que dizia, de um modo bastante elíptico: “As dúvidas que expressei anos atrás (Pensare la rivoluzione russa, 1995, Teti: Milano, p. 25) não parecem legítimas”.


A formulação é cautelosa, mas a correção do rumo é total. Em 1995, Canfora, que havia folheado apressadamente o material que apareceu nos últimos anos da URSS e pouco depois do colapso, sustentou naquele livro que, se alguma mudança tivesse sido feita no texto original, isso teria sido feito por uma das secretárias, Lidiya Fotieva, que ele insinuou simpatizar com Trótski. Assim, apesar de ter tido em suas mãos uma descrição minuciosa de como a falsificação havia sido produzida, Canfora concluiu: “Há algo de obscuro nesta narrativa, que aparentemente visa apenas lançar uma luz negativa sobre as atitudes de Stálin”. Uma acusação grave...


Agora alguém lhe fez chegar o texto de algumas entrevistas realizadas pelo historiador soviético Alexandr Bek em 1967 com duas secretárias de Lênin, Lidiya Fotieva e Mariya Volodícheva, que haviam admitido que tinham entregue primeiro a Stálin a parte do texto ditada pelo semi-paralisado Lenin, na qual este emitia duros juízos sobre os principais dirigentes do partido. Stálin, sobre quem o juízo de Lênin era mais severo, teria ordenado que a folha fosse queimada, mas uma cópia foi salva, embora retocada com a inclusão de uma nota pouco verossímil, contendo um juízo igualmente negativo sobre Trótski. Canfora cita toda a documentação no apêndice: Fotieva, que segundo Canfora em 1995 tinha sido simpatizante de Trótski, tentou negar tudo, desacreditando a colega; pressionada por Bek, no entanto, ela acabou admitindo o episódio, dizendo que não podia fazer outra coisa porque considerava Stálin um “grande homem”, um “gênio” (ou melhor, em 1967 ela esperava que o juízo oficial sobre Stálin voltasse a ser positivo...).


Assim, Canfora tem que admitir secamente que “do conjunto destes dados se depreende que Fotieva era uma pessoa que trabalhava para Stálin. Sua carreira perfeita, com promoções contínuas até sua aposentadoria em 1956, parece confirmar isto”.


Entretanto, a conclusão mais geral é ainda mais explícita e surpreendente: “Stálin ganhou, na época, a difícil disputa política também graças a essa minúscula adição na Carta ao Congresso: ‘assim como o não-bolchevismo a Trotsky’ [a frase incorporada - Nota do Autor]. Mas ele também ganhou, em seu país, o jogo historiográfico; ele superou até mesmo as armadilhas do XX e XXII Congresso; ele ganhou fazendo Lênin ‘falar’ de um modo totalmente incongruente, mas agora já anacrônico depois da união de Trótski com os bolcheviques muito antes da revolução”.


Esperamos que, depois deste primeiro passo, Canfora reveja com o mesmo rigor algumas de suas outras conclusões precipitadas e “justificadoras” sobre o stalinismo e seu principal intérprete italiano, Palmiro Togliatti [3].


Antonio Moscato (Roma, 1938-) foi professor de História do movimento operário e História contemporânea na Universidade de Lecce (Itália). É autor de vários livros, muitos deles sobre o “socialismo real”. Sua página na internet é: http://antoniomoscato.altervista.org/


Notas


[1] Gramsci acreditou que esta carta de seu camarada poderia contribuir para aumentar sua condenação e isto o fez suspeitar de uma traição. A conclusão de Canfora pode ser lida no final da entrevista publicada em:


[2] Se conhece como Testamento de Lênin a Carta ao Congresso (o XIII Congresso do PCUS), ditada quando Lênin estava muito doente, entre 23 de dezembro de 1922 e 4 de janeiro de 1923. Foi lida na época para as delegações do Congresso, mas não foi publicada até 1956, depois do XX Congresso.


[3] Luciano Canfora as expôs sobretudo em seu livro Togliatti e i dilemmi della politica (Laterza, 1989), ao que respondi com um longo escrito de mesmo título, publicado no número 4 da revista A sinistra, de maio de 1989. A revista hoje em dia não se encontra, é claro, mas o texto está na internet.

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