Sexualidade Queer, trabalho e nação (Peter Drucker)
- Editor MRI
- 2 de dez. de 2019
- 8 min de leitura

Sexualidade Queer, trabalho e nação
(3 de novembro 2017)
Peter Drucker
Tradução de Thais Prado Ribeiro
Revisão de Pedro Barbosa
Discurso no “International Meeting Against Homophobia and Transphobia” (Encontro Internacional Contra Homofobia e Transfobia), em KAOS GL (Kaos Associação de Pesquisa e Solidariedade Cultural Gay e Lésbica), em Ankara, em 13/05/2017.
Obrigado por me convidarem. É uma honra estar aqui. E nestes tempos difíceis para o povo turco e especialmente para a comunidade turca LGBTQI, estou muito feliz por ter a chance de me solidarizar com vocês. Eu espero que o que eu tenho a dizer possa ser de alguma ajuda para vocês enfrentarem os principais desafios com que se deparam.
Eu venho aqui como alguém que viveu por 24 anos na Europa Ocidental. Ao mesmo tempo, eu acredito que o movimento LGBTQI deve ser um movimento internacionalista. Nossas situações em diferentes países são muito diferentes, mas eu acredito que nossos destinos estão interligados. Solidariedade internacional é crucial. E para mim, solidariedade internacional está fundada em uma identificação entre pessoas LGBTQI e todos os trabalhadores ao redor do mundo, uma identificação em comum com o movimento operário internacional.
Neste momento da história, ligar as lutas do movimento queer [1] e do movimento operário não é fácil ou automático, especialmente na Europa Ocidental. A última década do século XX e os primeiros anos do século XXI foram, especialmente em muitos países europeus, anos de progresso para as pessoas LGBTI em direção ao reconhecimento legal e social e a direitos. Ao mesmo tempo, esses anos foram o apogeu da ordem neoliberal global, que enfraqueceu o movimento operário global. Havia um senso de conexão entre homens gays em particular - menos para lésbicas, menos ainda para pessoas trans e intersexuais - e a subjetividade capitalista. As coisas que os homens gays compram e os negócios que patrocinamos têm sido uma grande parte do nosso senso de comunidade. Então, o teórico queer Michael Warner, por exemplo, escreveu que "os homens gays urbanos fedem a mercadoria". Ao mesmo tempo, houve uma dissociação entre as pessoas LGBTQI do movimento operário, grupo que muitas mulheres e queers perceberam como tendo tradicionalmente as marginalizado. E para ser sincero, essa percepção foi baseada na realidade. Houve e ainda existe muito sexismo e heteronormatividade no movimento operário tradicional, embora tenha havido progresso em muitos países nos últimos anos.
O início da crise financeira global em 2008 abalou e deslegitimou o neoliberalismo. Por poucos meses, por um ano ou dois, tornou-se possível em muitos países, mesmo na mídia tradicional, levantar questionamentos sobre o capitalismo global e suas fraquezas. E por uma boa razão.
É importante enfatizar duas coisas sobre o neoliberalismo. (1) O neoliberalismo não é apenas um conjunto de políticas adotadas, coincidentemente, por praticamente todos os governos do mundo. Está enraizado na crise de lucratividade iniciada no início dos anos 70, e foi e é uma resposta a essa crise, com o objetivo de restaurar a lucratividade. Nesse sentido, falar seriamente sobre neoliberalismo requer falar sobre capitalismo. (2) O neoliberalismo foi um fracasso em pelo menos um sentido: nos países capitalistas centrais, as políticas neoliberais não restauraram as taxas de crescimento e acumulação que prevaleceram nas décadas de 1950 e 1960. As políticas neoliberais também não se mostraram capazes de sustentar as altas taxas de crescimento que existiram em algumas 'economias emergentes' - os BRICS e alguns outros países como a Turquia - por um certo período. Pelo contrário, o neoliberalismo estava na raiz da crise que eclodiu em 2007-2008, primeiro nos EUA e na Europa Ocidental, e com um atraso de alguns anos na maior parte do resto do mundo também.
O início da crise em 2008 pareceu um momento promissor para a esquerda, incluindo a esquerda queer. Antes da crise, o movimento tradicional de lésbicas / gays adotara amplamente uma agenda de integração das pessoas lésbicas / gays mais prósperas e respeitáveis nas sociedades neoliberais, ao permitir que se casassem e adotassem crianças e seguissem carreiras de classe média. A crise levantou a possibilidade de ir além disso, de aprofundar uma agenda de libertação queer, em aliança com o movimento operário e a esquerda. Isso poderia significar desenvolver as iniciativas queer mais promissoras do século XXI. Como a Campanha de Ação para Tratamento [Treatment Action Campaign] na África do Sul, que desafiou com sucesso não apenas o governo sul-africano, mas também a Organização Mundial do Comércio, em sua luta para obter tratamento para pessoas vivendo com HIV e AIDS. Como o Queers por Justiça Econômica em Nova York, que lutava por moradia para os sem-teto queer. Como os crescentes movimentos de pessoas trans e intersexuais e de gênero queers.
Infelizmente, esse período de esperança não durou muito tempo. Tornou-se claro que, apesar de seus fracassos econômicos, o neoliberalismo teve sucesso em outros sentidos. Por exemplo, na fragmentação dos operários, colocando os trabalhadores mais bem-pagos contra os mais mal-pagos e os trabalhadores com contratos estáveis contra os com contratos precários ou do setor informal. Além disso, ao colocar classes trabalhadoras de diferentes regiões e continentes em concorrência direta entre si, a reestruturação econômica neoliberal global enfraqueceu as unidades básicas de organização dos trabalhadores, a solidariedade internacional dos trabalhadores e o senso de identidade de classe dos trabalhadores. Como resultado, o movimento operário e as forças políticas baseadas no movimento operário estiveram mal equipadas para tirar proveito da crise, a fim de desafiar as políticas neoliberais e desafiar o capitalismo de maneira mais geral.
Ainda assim, as políticas neoliberais estão amplamente descredibilizadas, assim como os partidos de centro-direita e de centro-esquerda que vêm implementando políticas neoliberais. Portanto, essas políticas e partidos estão sob crescente ataque. Mas os ataques têm vindo cada vez mais, não do movimento operário ou da esquerda radical, mas da direita nacionalista e populista. As consequências para as comunidades LGBTQI foram variadas. Nos países do Norte, a direita está dividida entre o que Jasbir Puar chamou de “homonacionalismo” (instrumentalizando os direitos LGBTI a serviço da nação imperial) e formas mais tradicionais de heterossexismo de direita. Vemos isso na política sexual contraditória de Trump nos Estados Unidos, de Le Pen na França e da extrema direita na Holanda, o país em que moro. Enquanto isso, nos países do Sul, a direita tem frequentemente atacado a comunidade LGBTI em nome da defesa de culturas nacionais ameaçadas, frequentemente ligadas à religião.
Vindo do hemisfério Norte, sinto que é importante dizer que a heteronormatividade não é apenas um problema do hemisfério Sul. Na Holanda, onde eu moro, as forças de extrema direita e reacionárias da sociedade hoje culpam os imigrantes por atitudes anti-LGBTI. Elas disfarçam seu racismo anti-imigrante como particularmente uma crítica ao Islã. Agora, direitistas de diferentes países podem ter atitudes mais ou menos reacionárias em relação às pessoas LGBTQI. Eles vão desde aqueles que dizem que só querem revogar a igualdade de casamento, como Trump, até os que punem a homossexualidade jogando pessoas de prédios altos, como o Daesh. Mas, para ser claro, visto de uma perspectiva histórica ampla, ideologias sexualmente repressivas pregadas em nome do cristianismo ou judaísmo não são essencialmente melhores nesse aspecto do que ideologias de direita pregadas em nome do Islã. Todas as principais religiões monoteístas tradicionalmente tiveram uma visão da sexualidade baseada na perpetuação de uma família dominada por homens. A emancipação sexual não virá de uma crítica da religião de alguém. Requer lutar por uma política democrática secular, que insiste que as políticas públicas não devem se basear em nenhuma religião. Para as pessoas LGBTQI, isso é vital; pode ser uma questão de vida e morte.
A ofensiva global de direita coloca as comunidades LGBTI diante de novos desafios. Sugere a necessidade de reconsiderar a relação das queers com o trabalho e a nação. Em um documento fundador do moderno movimento socialista, Karl Marx e Friedrich Engels adotaram uma atitude muito complexa e dialética em relação à nacionalidade. A declaração mais famosa sobre o assunto foi: 'Os trabalhadores não têm país'. Mas, na mesma passagem no mesmo documento, eles declararam: 'Como o proletariado... deve ascender para ser a classe dirigente da nação, deve constituir ele próprio a nação, ele é, até então, nacional'. Eles concluíram: "Na proporção em que a exploração de um indivíduo por outro será encerrada, a exploração de uma nação por outro também será encerrada".
Esta é uma passagem com várias nuances e complicada. Ele fornece uma base para a defesa da soberania nacional contra a dominação pelo capital estrangeiro e para a defesa daqueles - trabalhadores e povos minoritários, e até mulheres e queers - que a nação capitalista tende a subordinar.
Se me permite, gostaria de ilustrar isso com algumas palavras usando a Turquia como exemplo. Como todos sabem, é claro, a cidade em que nos encontramos hoje começou sua história moderna como a capital da resistência nacional turca contra uma empreitada imperial da Europa Ocidental, uma tentativa de dividir e subjugar o Império Otomano. E a ala mais radical do movimento socialista internacional daqueles anos apoiou a revolução turca contra tal empreitada imperial. Mais uma vez, como alguém que vem da Europa Ocidental, acho importante dizer que ainda hoje, queers, trabalhadores e progressistas geralmente devem defender a Turquia contra atitudes na Europa Ocidental que são retrocessos na direção da velha arrogância imperial. Hoje, por exemplo, a direita da Europa Ocidental, que sempre se opôs a tentar integrar na União Europeia dezenas de milhões de muçulmanos com padrões de vida mais baixos, está aproveitando a repressão na Turquia como prova de que estavam certos. Em um confronto entre o nacionalismo dos ricos possuidores e o nacionalismo dos pobres não possuidores, os internacionalistas precisam rejeitar claramente o nacionalismo dos ricos. E precisamos deixar claro que nossa defesa da democracia e dos direitos humanos não tem nada em comum com o discurso hipócrita da direita da Europa Ocidental.
Ao mesmo tempo, defender soberania e dignidade nacional de forma alguma implica aceitar as limitações de um projeto nacional específico. Não está claro para mim, por exemplo, que a transição do Império Otomano para a República Turca foi um ganho para a libertação sexual. A ordem de gênero otomana era, obviamente, profundamente patriarcal, e a república trouxe alguns ganhos para as mulheres, mesmo que rejeitasse uma perspectiva verdadeiramente feminista da auto-emancipação das mulheres. Mas, ao adotar modelos da Europa Ocidental para sua legislação sexual, a república pode, em alguns sentidos, ter se mostrado menos tolerante com a diversidade sexual, pelo menos entre os homens, do que o império. E, ao se definir como um estado etnicamente homogêneo, a república mostrou-se menos tolerante com a diversidade linguística e cultural. Minorias sexuais e minorias nacionais deveriam ser aliadas naturais na luta por uma república que se defina ela própria, não sobre bases étnicas, mas sobre a base de valores universais, sociais e humanos. E, para mim, é o movimento operário e socialista - se ele puder se abrir totalmente à diversidade sexual, cultural e humana daqueles que o constituem - que fornece o melhor fundamento e o mais forte cimento para a defesa desses valores universais.
O que estou propondo é uma agenda dupla: por um lado, “queerizar” o movimento operário e o socialismo; por outro lado, reviver a política de classe e o socialismo entre as queers. Acredito que isso poderia ajudar a tornar possível tanto uma nova relação da comunidade queer com a nação como um novo internacionalismo queer.
Obrigado.
Peter Drucker é um ativista gay residente na Holanda. Originalmente dos EEUU, ele foi Co-diretor de 1993 até 2006 do “International Institute for Research and Education” (Instituto Internacional para Pesquisa e Educação) em Amsterdam. Escreveu livros e artigos sobre o movimento mundial LGBT. Editou e introduziu no mercado uma coleção pioneira sobre a comunidade gay do “Terceiro Mundo” e a esquerda, chamado “Different Rainbows”. É autor de “Warped: Gay Normality and Queer Anti-Capitalism”.
Nota da tradução
1 - Termo usado para designar pessoas que não seguem o padrão da heterossexualidade ou do binarismo de gênero.
Comments