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O Podemos diante de si mesmo (Josep Maria Antentas)

Atualizado: 10 de out. de 2019


O Podemos diante de si mesmo: caminho de Vistalegre II

(janeiro 2017)

Josep Maria Antentas

Tradução de Luis Ypanaqué e Carla Koch

Revisão de Pedro Barbosa



O segundo congresso do Podemos, marcado para os dias 11 e 12 de fevereiro, como catarse interna e externa, condensa todos os debates estratégicos do partido que emergiram abruptamente após o colapso da sua equipe de direção em março de 2016. A ruptura na cúpula tornou visíveis discussões que até então estiveram presentes de forma latente e balbuciante e/ou colocadas exclusivamente pelas minorias críticas que sempre se opuseram ao modelo de partido e à estratégia codificada no primeiro congresso de Vistalegre, em outubro de 2014. Examinaremos neste artigo a natureza das opções internas em conflito (não tanto as suas propostas concretas para o congresso, mas sim suas posições políticas de fundo) e faremos um balanço do modelo de partido adotado em Vistalegre desde o ponto de vista organizativo.


As três almas do Podemos


No caminho muito midiático para o segundo [congresso de] Vistalegre, podem-se ver em ação as três almas do Podemos, personificadas por Iglesias, Errejón e Anticapitalistas. As duas primeiras, todo-poderosas. A terceira, tão pequena no seu poder institucional como consistente no político. Ao lado das três, coexistem, sem dúvida, outras sensibilidades, porém menos cristalizadas e de menor perfil, sem um projeto tão definido, ou de alcance apenas local ou regional.


As correntes de Pablo Iglesias e Íñigo Errejón compartilharam a liderança do projeto desde os primeiros momentos do grupo impulsor, lançado em janeiro de 2014, no qual marginalizaram rapidamente a Izquierda Anticapitalista (depois transformada em Anticapitalistas), até sua ruptura em março de 2016, ante suas diferenças táticas sobre como orientar o Podemos após as eleições gerais de 20 de dezembro e, acima de tudo, no meio de uma crise de confiança, devido a disputas de poder no seio do aparato central que enrigeceram as discussões. Esse foi o terreno fértil para que aflorassem subitamente as divergências existentes na equipe executiva do Podemos, até então soterradas ou pontuais.


O antigo precedente de tal situação foi o debate ocorrido na primavera de 2015 diante da inesperada emergência de um novo oponente, o Ciudadanos, o neoliberal “Podemos de direita”, que, durante boa parte de 2015, obscureceria as perspectivas da formação roxa. Como um torpedo à toda pretensão de “transversalidade”, a irrupção repentina dos de Albert Rivera foi o primeiro contratempo da hipótese estratégica aprovada em Vistalegre. Errejón apresentou então uma política de amabilidade para com o novo concorrente, o que, no fundo, equivaleu a uma sorte de cidadanização relativa do Podemos, como um reverso da vampiresca podemização relativa do Ciudadanos, que o partido de Rivera pretendia operar naquele momento, com o intuito de apropriar-se do impulso podemista e desviá-lo para um projeto neoliberal de regeneração democrática. Não sem hesitações e vaivéns, passos para frente e para trás, Iglesias acabou encabeçando uma política de confrontação com o Ciudadanos, ressaltando sua função de muleta e/ou substituição dos partidos do regime. Foi a primeira discussão relevante e a primeira tentativa de debate estratégico público na cúpula do partido, diante da constatação de que a avenida triunfal em direção à vitória eleitoral desenhada em Vistalegre teria surpresas imprevistas [1].


A quebra da equipe dirigente em março de 2016 abriu caminho a um período inédito de discussão semipública, tendo a militância fundamentalmente como espectadora, e sem muitos canais internos para nela intervir. As duas frações em conflito foram reformulando parcialmente seu projeto e entoaram uma certa autocrítica incompleta ⎼ forçada mais pelas circunstâncias que por convicção ⎼ da fórmula político-organizativa aprovada em Vistalegre, em busca de uma maior democratização da mesma. A principal consequência de tal ruptura foi a normalização, pela via dos fatos, do debate interno e da pluralidade, ainda que as formas de tal debate tenham sido prisioneiras da cultura política e da dinâmica organizativa do modelo de Vistalegre. Isso tem incluído também a regularização da existência do Anticapitalistas e o progressivo reconhecimento público, por parte do mesmo Iglesias, do papel que dirigentes anticapitalistas de destaque tiveram no nascimento do projeto. O colapso da direção deu a estocada quase final ao relato falsificado sobre a gênese do Podemos, difundido após as eleições europeias, no qual a Izquierda Anticapitalista foi apagada da narrativa oficial (relembrando, na forma de farsa, expurgos de sinistra memória) e no qual as e os membros da equipe dirigente embelezaram sua própria contribuição ao projeto (excetuando o próprio Iglesias, cuja centralidade no desenho do Podemos é conhecida e autoevidente) e sua clarividência histórica retrospectiva.


Iglesias personifica um populismo pragmático-instrumental mesclado com um eurocomunismo impaciente e acelerado (que, ao contrário do original, não tem medo de uma vitória eleitoral). Busca combinar uma retórica plebeia contestadora com uma perspectiva governamental moderada, cuja referência histórica mais explícita tem sido o compromisso histórico de Berlinguer. O abraço acrítico ao legado berlingueriano, combinado com a falta de qualquer balanço da experiência do Syriza, sintetizam as aporias estratégicas de seu projeto. Do compromisso histórico berlingueriano à capitulação histórica de Tsipras pode haver uma linha vermelha muito estreita. De certa forma, a proposta de Iglesias é “punch” na oposição e razão de Estado no governo. Ou seja, ele mantém o grosso da perspectiva estratégica que sustentou nos dois anos anteriores, mas chegou à conclusão de que o vigor do Podemos reside na sua capacidade para aparecer como uma força contestadora do establishment e de que sua normalização acabaria gerando uma desmobilização e insatisfação de sua base social potencial, mais presente nos estratos populares e trabalhadores que nas classes médias.


O eixo do trabalho político na proposta de Iglesias segue sendo o marco eleitoral-institucional, porém, diferentemente das teorizações de Vistalegre, onde a luta social estava ausente, esta tem agora um papel real no seu programa, ainda que secundário, como complemento da atividade eleitoral-institucional. A retórica contestadora de Iglesias e suas referências à “luta”, por mais restritas que fiquem quando são inseridas numa perspectiva de “compromisso histórico”, têm sem dúvidas contribuído para gerar, no seio do Podemos, um ambiente de debate mais favorável às propostas radicais, ativistas e movimentistas. De repente, aqueles que defendiam um horizonte que fosse além da tríade eleições/trabalho institucional/comunicação, viram como o secretário geral do Podemos também entoava parte dessa música. Uma mudança valiosa de atmosfera.


O projeto de Íñigo Errejón, que podemos denominar populismo construtivista profundo, representa a normalização permanente do Podemos e uma tentativa de homologação política do partido fazendo-o portador de uma proposta de mudança tranquila, cujo conteúdo real difere muito pouco de uma substituição dos velhos partidos esgotados, e que busca encarnar as aspirações geracionais de uma juventude frustrada e afundada pela crise e as da população de meia idade que não quer se resignar diante da alternância PP-PSOE.


Atrás de sua ideia-força de “transversalidade” se esconde um projeto voltado particularmente às classes médias, embora a partir de uma retórica pós-classista, com ênfase especial na meritocracia e em uma transição sem sobressaltos para um futuro melhor, quase que naturalmente. A preocupação pela transversalidade, impulsionada por Errejón e seus afins, tem se movimentado entre a discussão real e séria sobre como articular um novo bloco majoritário e como congregar grupos e setores sociais diversos, e o mero pretexto para se diluir toda aresta rupturista presente no Podemos na direção de um projeto cada vez mais superficial nas suas propostas. Dirige-se assim a um centro político-social amorfo, construído politicamente como o eixo gravitacional do “nós” e do “povo”. Sua ênfase “nos que faltam” [2], sempre apresentada como necessidade de chegar a setores ainda não convencidos de que o Podemos é um partido competente para governar o Estado espanhol, tem a debilidade fundamental de tomar como evidente a lealdade dos já convencidos, sem conceber que o preço para atrair “os que faltam” pode ser o de perder parte dos primeiros.


O esquema de Errejón consiste em manter uma polarização discursiva entre um “nós brando”, construído através de um discurso amável dirigido a um setor social intermediário e pouco politizado, e um “‘eles’ duro” [3]. A complexidade de tal operação reside no fato de que o caráter “brando” do “nós” e o discurso moderado no qual se baseia, apesar de ser acompanhado de uma forte carga simbólica, emotiva e identitária, dificulta, a longo prazo, a própria operação de polarização, sobretudo quando esta se sustenta fundamentalmente no terreno discursivo e está desconectada de uma atividade social mobilizadora que gere uma atmosfera favorável à divisão entre eles/nós. Em outros termos: polarizar com um discurso superficial é mais complexo que com uma retórica contestadora, e polarizar na passividade social é mais difícil que numa dinâmica de mobilização.


Errejón sempre negou que sua concepção estratégica fosse assimilável aos catch-all parties convencionais [partidos “captura-tudo”, sem perfil ideológico definido], alegando que sua proposta politiza, reivindica as paixões e enfatiza as fronteiras “nós-eles”, enquanto os primeiros se baseiam no marketing despolitizador e banalizador [4]. Na verdade, mais do que um modelo antagônico ao catch-all mainstream, a proposta de Errejón representa uma espécie de populismo-construtivista captura-tudo, e oferece um resultado final parecido ao primeiro, mas partindo de lugares distintos, o que implica portanto um trajeto e um método diferente. O ponto de partida do Podemos e de Errejón não é o mesmo que aquele do PSOE ou do Ciudadanos. Portanto, tampouco a forma de chegar a construir uma maioria de governo. Porém, sua estação de destino é parecida. Os partidos catch-all tradicionais são forças legitimadas que buscam ampliar sua base social e eleitoral para derrotar o oponente ritualizado. A lógica captura-tudo do populismo discursivo de Errejón tem, por sua vez, a dupla função de ampliação da sua base social e eleitoral e de normalização e homologação (se não absoluta, ao menos substancial) do partido.


Perante os limites do modelo “máquina de guerra eleitoral” e a necessidade de articular uma perspectiva em médio e longo prazo, a proposta errejoniana é a de passar a uma fase de “movimento popular”, em que este é entendido sobretudo em termos de um trabalho cultural e social complementar ao eleitoral [5]. O passo para essa nova etapa, na qual a metáfora da guerra relâmpago é substituída pela de cerco, sintetiza-se em quatro tarefas: dinamização do tecido social, cultural e de lazer; criação de uma identidade simbólica cultural forte; formação de quadros e técnicos; enraizamento territorial e inserção social potencializando os círculos [6]. A debilidade desta abordagem é dupla: primeiro, sua aplicação se vê limitada pelo tempo perdido devido à adoção do modelo de máquina de guerra eleitoral em 2014 – que expulsou muitos dos militantes que agora deveriam se implantar no território, esvaziou os círculos que teriam que se relacionar cotidianamente na sociedade, e gerou desconfianças entre uma sociedade civil organizada, com a qual teria agora de trabalhar mais estreitamente. Segundo, não existe entre a antiga maquinaria de guerra eleitoral e o novo movimento popular nenhum papel atribuído à mobilização social (sem mencionar a auto-organização). Aparece aqui uma das inconsistências estratégicas fundamentais do pensamento político de Errejón: se por um lado analisa acertadamente o significado do 15M e as possibilidades políticas que abriu, por outro não integra na sua perspectiva futura a necessidade de um novo empurrão social, de outro equivalente ao 15M e às Mareas [Marés, ondas] contra a austeridade, de um relançamento das lutas sociais, para poder completar a ruptura definitiva do sistema político tradicional [7]. A perspectiva errejoniana não exclui o conflito. Parasita o conflito real, as brechas abertas pelas mobilizações, para cavalgar sobre as mesmas mediante uma polarização discursiva artificial que não se corresponde à do conteúdo real superficial da sua proposta de mudança (substituição) [(re)cambio]. O conflito é concebido em termos fundamentalmente discursivos, comunicativos e eleitorais, despreocupando-se com a construção politizada do conflito social, no bairro, no território e no centro do trabalho produtivo.


O resultado final da reorientação proposta para a nova etapa é que mudam as tarefas e os eixos de intervenção, preparando assim uma batalha de maior duração, mas prossegue invariável a via para a normalização política do Podemos traçada em Vistalegre e a acelerada auto-redução de suas ambições de mudança social e política. Os anseios de vitória eleitoral são proporcionais ao pouco alcance de suas propostas para o dia seguinte. A vontade de poder é muito maior que a de transformar o mundo. Por isso, o que no seu esquema vem após a vitória eleitoral é uma imprecisa e incerta “guerra de posições” no interior do Estado, cujos objetivos finais não passam de uma genérica vontade redistributiva e regeneradora, e que esvazia da discussão a questão decisiva de como evitar que o (limitado) ímpeto inicial do processo de transformação acabe se afogando pela própria maquinaria do Estado que se pretendia transformar. Nisso reside um dos paradoxos da política de Errejón: por um lado, foi o mais estratégico dos dirigentes políticos do Podemos, mas, por outro, sua proposta reduz e rebaixa a estratégia a um mero debate sobre como ganhar as eleições e não a uma discussão sobre como mudar a sociedade. Foi, além disso, o principal artífice de um modelo de partido baseado na estratégia sem debate estratégico, no qual esta era dada unilateralmente pela direção, sem feed-back algum por parte da militância.


Finalmente, os projetos de Iglesias e Errejón se diferenciam também no seu grau de constância e seus fundamentos ideológicos. Iglesias tem um pensamento muito mais eclético e um marco teórico-estratégico mais impreciso, acompanhado de permanentes oscilações discursivas que trouxeram consequências negativas à sua credibilidade. Essas deixam entrever uma tensão entre sua vertente populista e sua vertente herdeira da tradição (euro)comunista e do movimento operário. Uma tensão que se desdobra também entre sua alma governista e “real-politiqueira” [realpolitiquera] e sua alma (menor e mais episódica, mas presente) rupturista. Errejón, por sua parte, sustentou uma perspectiva estratégica muito mais homogênea teoricamente (sua referência em Laclau é conhecida), mais constante politicamente e internamente mais coerente. Seu principal limite, no entanto, foi a auto-incapacidade para emendar e corrigir sua própria hipótese de trabalho. Ao contrário, quando teve que fazer viradas bruscas, como passar da defesa de um modelo de partido homogêneo e centralista em todo o Estado à improvisação de alianças e confluências em Catalunha, Galícia e País Valência no caminho das eleições gerais de 20 de dezembro, o fez sempre como se não houvesse giro algum e como se cada nova virada já estivesse na verdade inscrita no código-fonte da hipótese de Vistalegre [8]. A combinação de uma prática política que teve viradas inevitáveis com a petrificação das hipóteses estratégicas, em vez de seu reajuste consciente além da suposição de que é preciso preparar-se também para uma batalha de longo prazo, deu como resultado um roque [jogada especial no xadrez] teórico-estratégico-político que minou a operatividade das suas propostas. Estratégica e teoricamente na ofensiva no auge da máquina de guerra, passou a uma posição mais defensiva e reafirmativa após sua ruptura com Iglesias.


Uma das sínteses metafóricas para conceitualizar as diferenças entre Iglesias e Errejón que mais teve sucesso no debate dos meses passados, foi a do rapper, ensaísta e partidário de Iglesias, Ricardo Romero, Nega, ao afirmar (no twitter em 9 de setembro) que: “Existem dois Podemos (sempre existiram), um que quer ser amável como Coldplay e outro que quer ser como Bruce Springsteen. Sejamos como o #Boss”. A comparação, de evidente atrativo visual e grande força evocadora, é útil se interpretada como duas propostas de conteúdo diferente. No entanto, o símile musical facilita que a comparação entre o Boss e os de Parachutes seja concebida como uma diferença apenas de formas e de estilo e que a discussão seja feita em torno dessas questões. Porém, o debate sobre o futuro do Podemos é sobre projeto estratégico, conteúdo, e estação de destino e, também, sobre a relação com a sociedade e a forma de articular uma maioria. Este último [a forma de articular uma maioria] não faz sentido em si mesmo se não fica claro para que é feito e com qual objetivo. Não é o estilo do partido, mas o conteúdo de seu projeto o ponto de partida para a discussão. A analogia musical pecava também, ao menos um pouco, por autocomplacência. Ninguém duvida das qualidades comunicativas e discursivas de Iglesias. Mas daí a apontar para o Boss...


Para além de Springsteen e Coldplay, o Podemos tem, como mínimo, outra alma importante, representada fundamentalmente pelo Anticapitalistas, que é hoje a principal animadora da candidatura Podemos en Movimiento para o próximo congresso. Ator chave na gênese do partido roxo, a proposta estratégica do Anticapitalistas foi desde o começo articular um espaço político que desenvolvesse o potencial aberto após o 15M, tanto do ponto de vista da janela de oportunidade eleitoral existente, como do ponto de vista das possibilidades de empreender um caminho de ruptura com o atual regime político e as políticas de austeridade. Sua proposta representa uma síntese, nem sempre fácil, entre ambição de radicalidade e vocação majoritária. O modelo de partido apresentado para veicular tal proposta foi o de partido-movimento, uma fórmula em contraposição com a máquina de guerra eleitoral e que tentava metamorfosear politicamente o legado do 15M. Seu modelo organizativo enfatizava a democracia interna, sua prática apontava para a sociedade (mais além da comunicação) e não para dentro, e sua perspectiva estratégica tentou forjar uma definição da vitória, do significado de “ganhar”, como uma síntese dialética entre auto-organização/mobilização/eleições/instituições. Consubstancial a esta proposta foi a ênfase no debate programático, na abordagem das questões decisivas sem as quais é impossível pensar uma política séria de transformação (banco, dívida…), e na necessidade de extrair as lições pertinentes do fiasco de Syriza, cuja desconsideração por parte da direção do Podemos lança uma sombra sinistra para o futuro.


Na contracorrente desde o começo, a existência de uma sensibilidade política como essa, apesar do seu reduzido poder institucional e da perseguição sofrida após a eclosão do Podemos nas eleições europeias de 25 de maio de 2014, foi decisiva na história do partido. Sem ela, as insatisfações militantes nos círculos teriam sido ainda maiores, os contrapesos democráticos e movimentistas à equipe dirigente praticamente inexistentes, e as tentativas de organizar a militância de baixo para cima, para dar-lhe outra perspectiva de futuro, impossíveis. É por isso que, mesmo fora do foco midiático do duelo de titãs entre Iglesias e Errejón, o grau de apoio que o Podemos en Movimiento venha obter será determinante para o futuro do partido, como garantia de que, em qualquer circunstância, incluindo a mais adversa, a chama da transformação social real e não epidérmica, a ruptura com a austeridade e o regime, e a democracia interna continuarão vivas dentro do Podemos.


A máquina por dentro


Apresentadas brevemente as principais opções em disputa para o segundo congresso do Podemos, farei neste ponto um balanço retrospectivo do modelo de máquina de guerra eleitoral aprovado em Vistalegre, não tanto do ponto de vista da estratégia política como do do modelo organizativo e de partido construído.


Perante a clara evidência de seus inumeráveis limites, tanto Iglesias como Errejón admitiram a necessidade de operar mudanças organizativas e de dinâmica política num sentido democratizador. O primeiro propõe reformas organizativas limitadas que supõem uma democratização parcial e seletiva do projeto. O segundo, ciente de que sua proposta parte, a princípio, de uma desvantagem diante do secretário geral, sustentou interessadamente, e de forma pouco crível, a bandeira da democracia interna e o respeito ao pluralismo, que tão pouca consideração mereceram quando ele era de fato o dirigente central do aparato.


Em ambos os casos, para justificar seu apoio no primeiro congresso de Vistalegre em 2014 a um modelo de partido que se revelou desastroso, tenderam a apresentar a “máquina de guerra eleitoral” como um mal necessário, uma fase inevitável própria de uma situação extraordinária na qual conseguir a vitória eleitoral passava por cima de qualquer outra consideração. Por trás desta argumentação subjazem dois problemas: primeiro, justifica-se como uma escolha forçada pela conjuntura o que foi uma aposta estratégica que refletia a concepção da política e a cultura política do núcleo dirigente do Podemos. Nem o eleitoralismo, nem o verticalismo, nem a falta de democracia eram medidas transitórias de “exceção”, mas sim uma tentativa de articular um modelo de partido oligárquico sob o férreo controle de sua burocracia dirigente; segundo, não há nenhuma evidência sólida que demonstre que a fórmula de Vistalegre contribuiu para melhorar os resultados eleitorais, que teriam sido conseguidos com outro modelo e outra estratégia. Há mais suspeitas do contrário, pois é razoável imaginar que um partido mais participativo, com mais militância ativa, no qual os melhores quadros não fossem marginalizados quando não eram fiéis à direção, um partido com mais ênfase na implantação social e no qual os dirigentes não se desgastassem tanto empregando procedimentos anti-democráticos, não teria tido um resultado pior nas urnas, mas sim igual ou melhor.


Os problemas político-organizativos que enfrentou o Podemos desde sua fundação (dificuldade para consolidar uma estrutura, conflitos, falta de quadros, arrivismo e carreirismo…) não podem ser atribuídos ao modelo “máquina de guerra eleitoral”. São contratempos que qualquer novo partido experimenta e que teriam se dado de qualquer modo. Mas o modelo adotado pela direção do Podemos contribuiu para ampliá-los até extremos inauditos. Talvez a questão mais visível disso tenha a ver com o esvaziamento das estruturas de base e a queda drástica da militância nos círculos (em contraste com a participação pontual pela internet, que se mantém, nos momentos de auge, em um nível considerável e sem equivalente).


A participação militante tem traços espasmódicos e, em todo processo político ou social, após as primeiras afluências massivas de pessoas a reuniões e assembleias, costuma haver um descenso, pelo cansaço, falta de interesse ou delegação implícita aos que ficam. A militância líquida, reciclando o termo popularizado por Bauman, isto é, à la carte e instável, é a tradução político-organizativa de uma sociedade fragmentada, individualizada e com biografias instáveis. O déficit do modelo Vistalegre não é não ter conseguido articular de baixo para cima, de forma duradoura, uma camada ampla de ativistas com vocação de implantar-se socialmente. O principal problema é que o modelo de máquina de guerra eleitoral-comunicativa populista renunciou a fazê-lo e, em muitos casos, fez todo o possível para desmobilizar alguns círculos cujo ímpeto inicial foi sempre visto com suspeita e com temor burocrático.


Em um processo de oligarquização interna, cuja rapidez e profundidade teriam nocauteado intelectualmente o próprio Robert Michels, o partido se concebeu como uma emanação linear da orientação política do grupo dirigente, no qual aqueles que não comungavam com ela apareciam como intrusos num projeto partidário patrimonializado pela direção. O medo da democracia presidiu a gênese do modelo Vistalegre e sua gestão posterior. A direção do Podemos, estranhamente, sempre se sentiu muito pouco segura de si mesma e recusou confrontações democráticas com outras propostas dentro e fora do partido, desgastando-se muitas vezes desnecessariamente com manobras de aparato que, com procedimentos mais democráticos, possivelmente as teria levado adiante de qualquer modo.

Ao contrário, resguardou-se por trás de uma estrutura política desenhada para evitar a capacidade real das bases de influir nas decisões da direção e na marcha do partido, mas que acabou sendo, em muitas ocasiões, esclerosada para os próprios fins da direção, que se viu, muitas vezes, encabeçando uma gelatina mole que não resistia na base, nem em seus níveis intermediários, a nenhuma investida, requerendo uma sustentação artificial desde a cúpula. Paradoxalmente, embora Gramsci figure de modo onipresente entre as referências intelectuais das duas famílias da direção do Podemos, na verdade sua concepção de política tem sido muito pouco gramsciana no terreno organizativo, diferentemente do terreno discursivo e comunicativo, onde tem demonstrado grandes qualidades para gerar contra-hegemonia. No que diz respeito à estrutura organizativa, a busca da hegemonia foi relegada à dominação de aparato na sua forma mais pura e dura. A vencer, sem necessariamente convencer.


Eliminar o problema da militância se converteu no objetivo fundacional do projeto aprovado em Vistalegre. A fórmula para consegui-lo se sustentou em três pilares. O primeiro, a adoção de uma estrutura de decisão online que, longe de ser uma experiência criativa para facilitar a implicação de pessoas com pouco tempo ou menor compromisso, tornou-se um estratagema para curto-circuitar permanentemente a militância de base ativa e legitimar por plebiscito as decisões da direção do partido e, frequentemente, eleger direções regionais/locais e listas eleitorais que careciam do apoio da militância real. O segundo, um sistema majoritário de eleição no qual quase sempre “o vencedor leva tudo”, sistema que permitiu que os órgãos de direção se convertessem de fato em instrumentos da facção ou grupo majoritário em cada lugar e não em espaços de integração e síntese política, excluindo as outras sensibilidades de toda relação orgânica real com o partido. O terceiro, um esquema ultracentralista no qual uma autonomizada direção central do partido era onipresente, reduzindo as direções regionais a meros apêndices daquela, sem legitimidade política real nem recursos organizativos e financeiros próprios e, por debilidade, vulneráveis a crises internas endêmicas.


Neste contexto, os círculos não se converteram nem em espaços de discussão política nem em âmbitos de intervenção para o exterior, planejando campanhas de sensibilização próprias ou inserindo o partido no tecido social. Carentes de função definida na marcha triunfal para a vitória eleitoral, acabaram relegados a um marco, cada vez mais vazio, de confrontação sem rumo, brigas locais e falta de horizonte para além das próprias eleições internas aos cargos do partido ou das listas eleitorais.


Desenhou-se assim um modelo de partido eleitoral-profissional baseado em uma contraditória participação plebiscitária sem democracia e projetado para sobrepor e desarmar a militância da organização. Esta foi vista não como um recurso cujo potencial teria que se desenvolver e como a base primária constitutiva do projeto, mas sim como um inimigo interior dos interesses de uma burocracia dirigente em gestação, portadora de uma cultura interna schmittiana baseada na distinção “amigo-inimigo” [9]. Este último, representado por todo aquele que discordava da direção, tomou sempre uma dupla forma: um caráter anônimo e abstrato expressando o medo burocrático atávico à militância e um caráter concreto encarnado por Anticapitalistas.


A máquina comunicativa referendo-plebiscitária centralista se converteu no correlato organizativo da máquina de guerra eleitoral e em uma verdadeira máquina de triturar militantes, sonhos e entusiasmos. Levado ao extremo, o modelo de partido codificado em Vistalegre encarnava a impossível utopia do partido sem militantes, equivalente político-burocrático da utopia capitalista da fábrica sem trabalhadores que as sucessivas ondas de automatização e robotização fizeram aparecer recorrentemente ao longo da história. Uma utopia político-burocrática (e, portanto, distopia para todo projeto emancipador) não tão distinta da fantasia conservadora da “democracia sem povo” que o próprio Errejón critica acertadamente [10].


Durante um período, a máquina de guerra eleitoral, como um encerramento abrupto de qualquer pretensão de experimentação político-organizativa, pareceu esgotar em si mesma todo o horizonte político, condensando a ritmo vertiginoso todos os problemas clássicos que têm experimentado as forças políticas emancipatórias (burocratização, oligarquização interna, institucionalização, adaptação…). Por um tempo, foi mais fácil imaginar o fim do Podemos que o fim da máquina de guerra. Era mais crível imaginar que o establishment derrubaria o recém-chegado do que a possibilidade deste ser corrigido em um sentido democrático. Só algumas vozes outsiders tentaram manter, em meio a uma realidade distópica, a tocha de um outro Podemos possível.


Hoje, desgastado por suas próprias aporias, o modelo político-organizativo do primeiro Vistalegre será sem dúvida revisado no iminente segundo congresso. Mas só a partir de uma crítica real àquele, e não a partir de sua apologia como método de exceção, é possível pensar em um futuro partidário distinto e não em um simulacro de mudança. Este é o sentido das propostas do Podemos en Movimiento, que reúne os que nunca fizeram apologia do indefensável.


No entanto, desandar o andado não é possível. O primeiro Podemos, aquele da auto-organização espontânea na fase prévia às eleições europeias e da ilusão transbordante após as mesmas, não voltará. Com ele se foram milhares de militantes e vontades. Os erros políticos não podem simplesmente rebobinar-se para retomar o caminho correto de onde um dia se optou pela via equivocada. As bifurcações passadas já aconteceram e não podem ser desfeitas. Mas sua lembrança é útil para buscar uma via própria de refundação e relançamento, social e militante que, sem nostalgia, devolva ao projeto seu frescor confiscado burocraticamente. Para isso, três elementos são cruciais: um funcionamento democrático, uma prática diária voltada para a intervenção social e uma boa discussão estratégica permanente.


Escola superior de estratégia


Ser uma escola superior de estratégia revolucionária (retomando uma expressão empregada por Trotsky [11] quanto ao terceiro Congresso da III Internacional em 1921) ou, se preferir, uma escola superior de estratégia para a ruptura, que contribua para elevar permanentemente a capacidade política de seus militantes, é precisamente ao que deveria aspirar toda força política emancipatória. Nada mais distante do que tem sido o Podemos até hoje com seus debates-express, os apressados encerramentos plebiscitários das controvérsias políticas, a redução de toda discussão a como ganhar as eleições, e a lógica internista de sua atividade. Escola superior de estratégia e máquina de guerra eleitoral-comunicativa são, sem dúvida, projetos antitéticos. Não à toa, foi o colapso da equipe dirigente que teceu o modelo de Vistalegre o que permitiu pela primeira vez um debate estratégico real, ainda que com todos os vícios herdados daquele.


Assim colocado, o que está em jogo no segundo Vistalegre é o grau de ruptura ou de continuidade que ele representa com relação ao primeiro e, com isso, o grau de solidez estratégica e de profundidade de seu projeto de transformação social. As três opções sobre a mesa são claras: a corrente encabeçada por Miguel Urbán representa a ruptura cristalina com um pesadelo político-organizativo que jamais deveria ter sido produzido; Pablo Iglesias encarna a continuidade fundamental do modelo com reajustes democráticos parciais e a ratificação de uma retórica contestadora compatível com um horizonte de transformação autolimitado; e Íñigo Errejón implica a reafirmação do legado político de Vistalegre, combinada com reformas democráticas interessadas, como alavanca para dar outro passo (definitivo?) na homologação do Podemos como um partido que veicule o mal-estar e o descontentamento social na direção de caminhos inofensivos diante do poder.


29/01/2017

Josep María Antentas é professor de Sociologia da Universitat Autònoma de Barcelona e membro do Conselho Assessor de VIENTO SUR


Notas:


[1] Antentas, Josep M. (2015). "Ciudadanos, Podemos y la centralidad deseada", Público, 2 de maio. Disponível em: http://blogs.publico.es/dominiopublico/13227/ciudadanos-podemos-y-la-centralidad-deseada/ ; Antentas, Josep M. (2015). "Ciudadanos: el cambio falaz", Público, 7 de abril. Disponível em: http://blogs.publico.es/dominiopublico/13026/ciudadanos-el-cambio-falaz/


[2] Errejón, I. (2016). "Del asalto al cerco: Podemos en la nueva fase", El diario.es 17 de julho. Disponível em: http://www.eldiario.es/tribunaabierta/asalto-cerco-Podemos-nueva-fase_6_538306170.html


[3] Errejón, Íñigo. (2016) “Podemos a mitad de camino.” Ctxt, 20 abril. Disponível em: http://ctxt.es/es/20160420/Firmas/5562/Podemos-transformacion-identidad-poder-cambio.htm


[4] Errejón, Íñigo. (2016) “Podemos a mitad de camino.” Ctxt, 20 abril. Disponível em: http://ctxt.es/es/20160420/Firmas/5562/Podemos-transformacion-identidad-poder-cambio.htm


[5] Errejón, Íñigo. (2016) “Podemos a mitad de camino.” Ctxt, 20 abril. Disponível em: http://ctxt.es/es/20160420/Firmas/5562/Podemos-transformacion-identidad-poder-cambio.htm


[6] Errejón, I. (2016). "Del asalto al cerco: Podemos en la nueva fase", El diario.es 17 de julho. Disponível em: http://www.eldiario.es/tribunaabierta/asalto-cerco-Podemos-nueva-fase_6_538306170.html


[7] Desenvolvi um pouco mais essa questão em: Antentas, Josep Maria. (2016). “El desconcierto de una noche de verano.” Público, June 29. http://blogs.publico.es/tiempo-roto/2016/06/29/el-desconcierto-de-una-noche-de-verano/; e, Antentas, Josep Maria. (2016). "Hace cinco años empezó el futuro. #Globaldebout", Viento Sur, 15 de maio. Disponível em: http://vientosur.info/spip.php?article11295


[8] Errejón, I. (2016). "Abriendo brecha: apuntes estratégicos tras las elecciones generales", Público, 11 de janeiro. Disponível em: http://blogs.publico.es/dominiopublico/15529/abriendo-brecha-apuntes-estrategicos-tras-las-elecciones-generales/


[9] Schmitt, C. (2014[1932]) El concepto de lo político. Madrid: Alianza.


[10] Errejón, I. y Mouffe, Ch. (2015). Construir pueblo. Barcelona: Icaria.


[11] Trotsky, L. (1924) The First Five Years of the Communist International. Volume 2. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1924/ffyci-2/01.htm#f1

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