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O estado do pensamento dialético na França e no mundo? (Daniel Bensaïd)

Atualizado: 26 de mar. de 2021



O estado do pensamento dialético na França e no mundo?

(setembro 2005)

Daniel Bensaïd

Tradução de Gonçalo de Souza

Revisão de Pedro Barbosa



Intervenção no seminário sobre dialética organizado por Lucien Sève e Espaces Marx, em setembro 2005.


O título proposto para esta mesa redonda é bastante ambicioso. No mundo? Eu não me arriscaria a tanto. Bertell Olmann acaba de nos fornecer uma estimulante visão do estado das pesquisas dialéticas no mundo anglo-saxão que ilustra bem a amplitude da questão. No que diz respeito mais especificamente à França, parece que a cultura filosófica é obstinadamente refratária à dialética...


I. Na sua contribuição introdutória, Lucien Sève evoca um interesse pelo pensamento dialético nos anos 50, que ele ilustra com vários nomes, aos quais eu juntaria o de Lucien Goldmann, como se esta promessa tivesse conhecido um eclipse nos anos 70. Sem ir tão longe quanto Alain Badiou, que não quer admitir mais do que quatro franceses dialéticos (alguns de vocês conseguirão reconstituir esta equipe), deve-se constatar, apesar das grandes figuras dialéticas de Pascal ou Rousseau, uma miséria tenaz do pensamento dialético na França. Já levantada por Marx, especialmente nas suas breves e implacáveis notas sobre Auguste Comte, ela também foi sublinhada por Trótski que observou em A revolução permanente “a aversão” para com a dialética “disseminada nos meios de esquerda franceses”; assim como por Gramsci, constatando brutalmente em seus Cadernos do cárcere, que “o francês não tem uma mentalidade dialética e concretamente revolucionária”. Esta aversão não decorre, evidentemente, de uma incapacidade genética, mas de uma história política e cultural.


II. Ela é o corolário da dominação positivista (pensamento de “progresso na ordem”) nas ciências humanas universitárias e de sua hegemonia no pacto republicano sobre o qual se constituiu a Terceira República. É contra esta influência do “Partido Intelectual” e de seus Lanson, Lavisse, Langlois que se insurgiram de modo marginal o jovem Péguy ou Georges Sorel. Em Por Marx, Althusser considerava, pelo contrário, Comte como “o único grande filósofo francês do século XIX”. No entanto, o positivismo é uma ideologia tipicamente termidoriana visando esconjurar o perigo revolucionário e suas turbulências. Blanqui foi um dos raros, no seio do movimento operário nascente, a compreender esta dimensão apologética do positivismo. Deve-se citar, sobre este ponto, páginas inteiras de seus cadernos.


O positivismo como ideologia de reação, portanto. Não mais a república revolucionária, mas a república contra a revolução, com seu catequismo e sua religião civil. Isso se explica: enquanto os alemães, os italianos e a fortiori os russos necessitavam, para realizar sua emancipação nacional ou social, da crítica dialética, a ideologia conservadora francesa, depois de junho de 1848 e da Comuna, fez de tudo para livrar-se dela.


O “materialismo subterrâneo do encontro”, alegremente invocado por Althusser em seus últimos textos, foi derrotado na França antes mesmo da recepção de Marx. E o “marxismo indetectável” [introuvable] nascente, aquele de Guesde e de Lafarge autor de Determinismo econômico, estava desde o início imbuído de positivismo. Era então difícil passar de uma lógica classificatória das definições a uma lógica dinâmica (dialética) das determinações, do abstrato ao concreto, tal como Marx magistralmente põe em operação em O Capital. Sob suas formas mais rígidas, o estruturalismo à moda dos anos 60 pôde prolongar esta repressão, sugerindo estruturas petrificadas, sem acontecimentos nem subjetividade, e sistemas ainda mais privados de história do que a história real do século se tornava dolorosa de se pensar.


III. O marxismo ortodoxo, erigido em razão de Estado nos anos trinta pela burocracia stalinista triunfante, não teve problemas para tirar proveito deste estado de coisas, para estabelecer a influência de seu “diamat” dogmatizado e canonizado. Foi uma espécie de segunda morte da dialética. Uma espécie de Termidor na teoria, cujas premissas são evidentes desde a condenação da psicanálise e do surrealismo até o sinistro congresso de Kharkov, e cuja imortal brochura do “corifeu da ciência”, Materialismo histórico e materialismo dialético, fixa a doutrina. A dialética se torna então em uma meta-lógica formal, uma sofística de Estado boa para tudo, especialmente para quebrar os homens, esperando quebrar tijolos. A dialética da consciência crítica (Lukács, Korsch) recua então diante da autoridade da Razão de Estado.


IV. Esta reação na teoria cruza com um outro processo, especialmente na França. Sob o pretexto de defesa – legítima em certa medida e até certo ponto – do racionalismo e do Iluminismo contra os crepúsculos mitológicos, o que eu chamo o Frente popular em filosofia completa a Frente popular em política, selando uma aliança antifascista sob hegemonia da burguesia. Na ocasião de seu tricentenário, celebrado por Politzer, Descartes já era a França! Esta apologia da razão não dialética é também a vitória póstuma do método sagrado sobre o dialético Pascal (apesar das audácias de Lefebvre a este respeito). Mesmo Lukács, que até seu texto de 1926 sobre a espontaneidade e a consciência tinha resistido ao tribunal de seus detratores, se ocupa então com o livro, que não é o seu melhor, sobre a Destruição da razão (que só é publicado após a guerra). A vitória da contrarrevolução burocrática exige de fato uma lógica binária (do: “quem não está comigo...”; do: “não uive com lobos”) do terceiro excluído: nenhuma luta é possível, mesmo que assimétrica, em dois frontes. Esta lógica de intimidação e de culpabilização causou muitos estragos políticos (no momento da Hungria, da Tchecoslováquia, da Polônia e mais recentemente ainda do Afeganistão ou dos Balcãs).


Lucien Sève parece convencido de que nós assistimos a um novo desenvolvimento do pensamento dialético. Isso seria um bom sinal. Um sinal de que os ventos mudam e de que o trabalho do negativo retoma vigor contra o pensamento-cruzado [pensée-Carrefour], que nós temos de “positivar” a todo custo, contra as retóricas do consenso e da reconciliação geral. Há boas e fortes razões para que isso seja assim: uma urgente necessidade de pensamento crítico e dialético inscrita no ar dos tempos.


1. Uma razão histórica, antes de tudo. Depois das tragédias do século passado, já não podemos mais nos banhar no rio tranquilo do progresso de sentido único e ignorar a temível dialética benjaminiana do progresso e da catástrofe. A fortiori na mutação incerta do mundo que se desenha há 20 anos. E esta necessidade de dialética se exprime também na necessidade de uma ecologia crítica capaz de intervir em dois frontes, face às beatitudes da mundialização mercantil, mas também face às tentações crepusculares da deep ecology.


2. A renovação das categorias de uma lógica dialética à luz das controvérsias científicas em torno do caos determinístico, da teoria dos sistemas, das causalidades holísticas ou complexas, das lógicas do vivo e da ordem emergente (sob a condição de circular com precaução de um domínio a outro), colocando na ordem do dia um diálogo renovado entre diferentes campos de pesquisa e uma renovada colocação à prova das lógicas dialéticas.


3. Uma necessidade premente de pensar a mundialização e a globalização do ponto de vista da totalidade (da totalização aberta), para compreender as novas figuras do imperialismo tardio e intervir politicamente no desenvolvimento mais desigual e pior combinado do que nunca do planeta.


4. Uma necessidade premente de pensar o século do ponto de vista de um espaço/tempo descontínuo, socialmente produzido, e de conceitualizar uma temporalidade política específica, da não-contemporaneidade e do contratempo, ao invés de pensar preguiçosamente a história segundo as categorias cronológicas lineares do pós e do ante (pós-capitalismo, pós-comunismo).


5. Uma necessidade premente de pensar o progresso efetivo do ponto de vista do desenvolvimento (ou do “transcrescimento”, na terminologia de Trótski) e não da acumulação ou do “crescimento sem desenvolvimento” que já criticava pertinentemente Lefebvre.


6. Enfim, o degelo da guerra fria e a interferência complexa de múltiplos conflitos obriga a sair da lógica binária dos “campos” sob hegemonia estática de uma pátria mãe (mesmo aquela do socialismo realmente inexistente) e reintroduzir o terceiro excluído para se orientar estrategicamente nos conflitos como os dos Balcãs ou do Golfo.


Se esta atualidade do pensamento dialético se verifica, devemos esperar (e nos alegrar) que apareça amanhã ou depois de amanhã, após o Livro negro do comunismo e o Livro negro da psicanálise, um Livro negro da dialética. Isso significaria que a contradição antagônica não está neutralizada sob a cobertura da complementaridade, nem dissolvida em uma “oposição não de contradição, mas de correlação”. Significaria também pôr em xeque o fetichismo do fato consumado, da expulsão do possível em prol de um real empobrecido. E que a “filosofia do não”, o trabalho do negativo, o ponto de vista da totalidade, os “saltos” imprevisíveis celebrados por Lênin nas suas notas marginais à Lógica de Hegel, não foram definitivamente domesticados.


Através da dialética, é na verdade a revolução que é visada.


O Lukács de História e consciência de classe e de O pensamento de Lênin havia compreendido bem. Estava, isso é verdade, no coração da tormenta, durante os anos de crise que são, logicamente, os anos de intensidade dialética.


* 1º setembro de 2005, em Dialectiques aujourd’hui, Syllepse, 2007

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