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Marxismo aberto e os dilemas da coerência - sobre Michael Löwy (Paul Le Blanc)



Marxismo aberto e os dilemas da coerência: reflexões de Paul Le Blanc sobre as contribuições de Michael Löwy

Paul Le Blanc

Tradução de Caroline Freire

Revisão de João Pedro Munhoz



Este texto foi publicado pelo ESSF no Links International Journal of Socialist Renewal com o consentimento e entusiasmo de Paul Le Blanc.



Quando eu e alguns camaradas mais próximos entramos em contato com Michael Löwy, este formidável revolucionário marxista, teórico e ativista, foi como se eu estivesse descobrindo um novo continente – ele, uma mistura de judeu austríaco, brasileiro e parisiense, que parecia já ter desbravado os quatro cantos do mundo, mostrava-se um excepcional e contemporâneo representante da Quarta Internacional de Trotsky. [1]


O centro do nosso universo era uma ilha [bolha] com cerca de 2000 pessoas, nos EUA, e, no início dos anos 1980, por causa da influência de um “leninismo” dogmático proferido pela nova safra de líderes do Partido Socialista dos Trabalhadores – SWP, o ambiente começava a ficar cada vez mais improdutivo. Neste universo, a “ortodoxia” trotskista estava sendo substituída pela “ortodoxia” castrista. Acreditava-se que esta troca de ortodoxias resultaria numa nova internacional revolucionária, centralizada no Caribe e na América Central, que levaria o mundo ao socialismo. [2]


Em retrospectiva, isto era claramente duvidoso, mas era o que alguns de nós acreditávamos na época. Os camaradas que ousavam questionar batiam de frente com os chamados princípios organizacionais “leninistas”, que estavam sendo reformulados pela nova direção do SWP de modo a manter a coesão do grupo (sob a autoridade dessa nova direção, é claro). Uma sombra pairava sobre os que estavam em desacordo, enquanto as expulsões estavam, lenta mas certamente, sendo arquitetadas. O tipo de marxismo do SWP, cada vez mais dogmático, era muito semelhante ao que havia sido ridicularizado pelo dissidente soviético, Andrei Sinyavsky, alguns anos antes: De repente, tudo se encaixou. O fluxo dos séculos desembocou na necessidade de uma rigorosa ordem hierárquica. O macaco pôs-se sobre as patas de trás e deu início à triunfante procissão rumo ao comunismo. O comunismo primitivo surgiu porque traria a escravidão; a escravidão, o feudalismo; o feudalismo, o capitalismo; para, finalmente, o capitalismo dar lugar ao comunismo. Isso é tudo! O grande objetivo foi alcançado, a pirâmide concluída, a histórica chega ao seu fim. [3]


A ortodoxia, se entendida como um sistema fechado, é o caminho para a morte. Não havia nada de “ortodoxo” no marxismo vibrante e dialético de Trotsky, nem era esta uma característica dos românticos “castristas” que fizeram a Revolução Cubana, em 1959. Também não estava presente na fabulosa convergência cultural e intelectual dos escritos de Michael Löwy, onde Lenin e Leon Trotsky caminhavam lado a lado com Rosa Luxemburgo e Che Guevara, e confraternizavam com Georg Lukács e Ernst Bloch, sem falar de Antonio Gramsci, José Carlos Mariátegui, Walter Benjamin... e inúmeros outros não ortodoxos.


O marxismo é atual


Pode ser útil dar um passo para atrás para compreender o corpo teórico e prático ao qual Michael Löwy estava associado. [4]


Karl Marx (1818-1883) e seu parceiro e camarada Frederick Engels (1820-1895) elaboraram os conceitos básicos da abordagem teórica que, hoje, chamamos de "marxismo", mas que eles chamavam de socialismo científico. Isso só pôde ser realizado a partir de uma fusão – do que depois vieram a ser disciplinas separadas – das ciências sociais da economia, sociologia, ciência política, antropologia e história, sustentada, particularmente, pelas filosofias de G.W.F. Hegel e Ludwig Feuerbach, e orientada por perspectivas do iluminismo e do romantismo. Não foram menos influenciados pelas ideias das revoluções democráticas (especialmente da Revolução Francesa) e pela importante Revolução Industrial, bem como pelo surgimento da classe trabalhadora e do movimento operário. [5]


Fazendo uma grande varredura filosófica, que compreende a realidade como uma interação dinâmica e evolutiva de matéria e energia, o marxismo projeta a realidade como uma vibrante totalidade na qual as incríveis qualidades da humanidade (trabalho criativo, comunidade, busca por liberdade) geraram avanços tecnológicos, superávits econômicos e, por consequência, desigualdades que – por sua vez – geraram as lutas contra a opressão. Esse modo de ver a História considera uma sucessão de sistemas econômicos alimentando diferentes estruturas e culturas sociais. Desde o surgimento da civilização, todos os sistemas socioeconômicos (de civilizações antigas, escravismo, feudalismo ou capitalismo) envolveram minorias poderosas se enriquecendo com a exploração de maiorias trabalhadoras. Porém, certas vezes, os trabalhadores oprimidos revidaram e exigiram uma vida melhor – mais comida, comunitarismo autêntico, liberdade – com seus exploradores tentando mantê-los no mesmo lugar.


Embora toda a história tenha sido pautada por essas lutas de classe, o capitalismo é único, gera inovações tecnológicas e aumentos espetaculares da produtividade, gera riqueza suficiente – em última análise – para proporcionar uma vida decente a todas as pessoas, contanto que a economia viesse a ser um bem comum. Mas a expansão econômica do capitalismo, em específico, transforma naturalmente a maioria das pessoas em trabalhadores que só podem ganhar a vida vendendo sua capacidade de trabalhar (força de trabalho) mediante pagamento do empregador capitalista, mas cuja atividade gera a verdadeira riqueza, esta que torna a sociedade possível e permite o seu funcionamento. [6]


Para os marxistas, a classe trabalhadora é a chave para criação de um futuro socialista. E, para isso, ela deve se organizar: criar sindicatos amplos e inclusivos para reivindicar maiores salários e melhores condições de trabalho; organizar movimentos sociais fortes para promover mudanças (reformas); construir um poder político das maiorias, da classe trabalhadora, "para vencer a batalha da democracia" e promover uma transição do capitalismo para o socialismo (que eles viam como uma extensão do "governo do povo" – democracia – para a vida econômica da sociedade, que proporcione dignidade e o livre desenvolvimento de todos).


Claro que essa maneira de ver as coisas, de organizar as nossas percepções diante da realidade infinitamente complexa traz uma lógica que, no entanto, é incapaz de capturar o dinamismo de todas as realidades. “A teoria, meu amigo, é cinza, mas verde é a Árvore da Vida”, insistia Lenin (citando Goethe). Um marxismo que se esquece disso se torna um dogma frio e sem vida.


Para nós, o marxismo de Löwy era incrivelmente quente, multifacetado e comprometido com os matizes e ritmos complexos da luta revolucionária. Não era um caos – tinha sua própria lógica, em parte fundamentada nas tradições do marxismo clássico que Michael compreendia e respeitava profundamente. Mas ele não tinha medo de desafiar e acrescentar outros aspectos a essas tradições, trazendo mais vida e dinamismo, o que nos impressionou e deu força. Algo que, para nós, era inseparável da revolução permanente, cujo espírito estava refletido nesta passagem de The People, Yes, de Carl Sandburg - “O homem nunca chegará, o homem sempre estará a caminho. Ele vai querer e querer e não haverá fim para o sua vontade”.


A revolução permanente


A teoria da revolução permanente, de Leon Trotsky, foi o alvo da operação de liderança do SWP que, em 1981, procurava se transformar em "um partido irmão" do Partido Comunista Cubano. Fidel Castro e muitos de seus camaradas concluíram que para sobreviver, diante da força do imperialismo dos EUA, seria preciso fazer uma aliança com o movimento comunista mundial, liderado pela ditadura de Joseph Stalin, na URSS. Para ser, de fato, um "partido irmão" teriam que romper com a perspectiva teórica que criticava Stálin. No texto “O Trotsky deles e o nosso”, escrito pelo dirigente do SWP Jack Barnes como uma polêmica contra a Revolução Permanente, havia ocultas formulações de Joseph Stálin levemente parafraseadas, mas rígidas e autoritárias como sempre. Mas o caráter cada vez mais antidemocrático do "centralismo democrático" do SWP nos impediu de desafiar tudo isso, mesmo que dentro do nosso próprio partido.


Não é de se admirar que a defesa da Teoria da Revolução Permanente, de Trotsky, feita por Löwy – A política do desenvolvimento desigual e combinado: a Teoria da Revolução Permanente – tenha sido o livro que mais nos cativou, em 1981. Fora escrito independentemente da ruptura do SWP com a política da Quarta Internacional, mas, para nós, representava, de forma brilhante, tudo aquilo a que Jack Barnes se contrapunha. Até o título trazia uma visão mais aberta e libertadora das coisas.


Os complexos padrões de desigualdade e instabilidade da história global criariam certas condições de vida que reuniriam a classe trabalhadora e as maiorias oprimidas. A essência desta teoria era: (1) na Rússia economicamente atrasada (onde Trotsky desenvolveu a teoria) apenas a luta da classe trabalhadora levaria à verdadeira democracia, o que necessariamente colocaria a classe trabalhadora e seus aliados no poder; (2) a partir daí, se iniciaria um período de transição rumo ao socialismo; e (3) isso, necessariamente, levaria a lutas revolucionárias semelhantes em outros países - o que seria indispensável para a implementação do verdadeiro socialismo em todo e qualquer país.


A maneira com que Löwy descrevera essa evolução estava muito distante da abordagem dogmática que se tornara norma dentro do SWP:


A ideia de revolução permanente aparece apenas na crisálida dos escritos de Marx e Engels: na forma de uma série de intuições brilhantes e não sistemáticas, amplamente ignoradas pela codificação do marxismo da Segunda Internacional. Coube a Trotsky, em Balanços e Perspectivas, desenvolver a primeira conceituação coerente e operacional de uma problemática de permanência, fundamentada, de forma rigorosa, em uma ampla teoria histórica e análise socioeconômica. A perspectiva de Trotsky, como vimos, foi um grande avanço teórico e político. Em particular, trouxe uma alternativa radical à interpretação economicista e evolucionista do marxismo, que era hegemônica no movimento socialista pré-1917, e cujo corolário estratégico, mecânico e pré-dialético, partia da teoria dos estágios [primeiro, o capitalismo deveria se desenvolver plenamente, para, depois, ser possível uma revolução socialista - os países economicamente atrasados deveriam se restringir a abrir caminho para o desenvolvimento capitalista]. Essa estratégia permanentista prevaleceu [...] durante o pico revolucionário de 1917-23, período em que orientou a prática do Partido Bolchevique e do Comintern. [7]


Após a morte de Lenin, com o fracasso da revolução fora da Rússia e a consolidação burocrática sob a liderança ditatorial de Stalin, a perspectiva de Trotsky foi deixada de lado. Stalin e seus seguidores focaram na construção do “socialismo em um só país” (que, nas condições empobrecidas da Rússia, com baixo nível de produtividade e muitas necessidades, significava consolidar o poder burocrático, não a democracia socialista). O movimento comunista mundial, antes uma rede de libertação, tornou-se um instrumento da política externa de Stalin. Neste cenário, os vários partidos comunistas foram obrigados a adotar a teoria etapista - separando a "etapa democrática" da luta dos trabalhadores do que supostamente viria depois. Para os comunistas de fora da Rússia Soviética, isso significou formar alianças com os capitalistas internos a fim de garantir um mínimo de democracia e reformas sociais e (mais importante) manter relações amistosas com a URSS. A revolução socialista foi adiada para um futuro indefinido. “Na implementação profunda e sistemática", escreveu Löwy, "os estágios de Stalin produziram derrotas trágicas para o movimento trabalhista; apenas os partidos comunistas que, na prática, violaram os limites oficiais, adotando, implicitamente, a linha da permanência puderam triunfar ”. [8]


Avançando para uma análise das revoluções do século XX, Löwy nos oferece a seguinte conclusão:


A Teoria da Revolução Permanente... foi capaz de prever e explicar o viés vermelho que atravessou o século XX: as revoluções sociais nos países capitalistas periféricos. Nesse sentido, é, em nossa opinião, chave para se compreender a época atual. O que aconteceu na Rússia, Iugoslávia, China, Vietnã e Cuba já estava presente na tese central de Trotsky: uma possível revolução (democrática/socialista), contínua e combinada, em países "atrasados", dependentes ou coloniais. O fato de os líderes revolucionários pós-outubro [1917], em geral, não terem reconhecido o caráter "permanente" da revolução, ou apenas a posteriori, e terem dado a ele outro nome, não altera o caráter permanentista dessas revoluções. [9]


Ou, pelo menos, é o que pensavam Michael e outros tantos no início dos anos 1980. Três décadas depois, o que Löwy apresentou em A política do desenvolvimento desigual e combinado: a Teoria da Revolução Permanente requer séria releitura, como será feito mais adiante. Por ora, é suficiente enfatizar o caráter absolutamente heterodoxo de sua defesa do marxismo trotskista.


Mudando o mundo


Os que nos envolvemos com o livro de Michael sobre a revolução permanente, nos aproximamos também de seus outros escritos, principalmente das traduções para o inglês que apareciam em periódicos como o New Left Review, o Telos e o Critique. Nesse período, tive a sorte de conhecer Michael pessoalmente e editar a série “Estudos Revolucionários” da extinta Humanities Press, cujo editor responsável era, na época, Keith Ashfield. Um dos primeiros volumes, que contemplou uma seleção de 14 ensaios, levou o título de “Mudando o mundo” e foi posteriormente republicado em edição estendida, com 4 ensaios a mais, pela Haymarket Books.


No prefácio, o autor diz que “os ensaios são apenas fragmentos e não trazem, de maneira alguma, todo o caráter sistemático e pluralista da filosofia política marxista ou de seu desenvolvimento dialético (contraditório)”. Em vez disso, diz que retorna a “alguns momentos altos e a outros caminhos sinuosos” existentes na tradição revolucionária. Espera, sinceramente, que a coleção tenha utilidade para os que pretendem "mudar o mundo". [10]


Os aspectos centrais da tradição marxista revolucionária são abordados em oito ensaios. A complexa relação entre a Revolução Francesa de 1789-94 e o pensamento de Karl Marx é explorada em "A poesia do passado: Marx e a Revolução Francesa". Em "A concepção de Rosa Luxemburgo sobre ‘Socialismo ou Barbárie’, Michael sugere, de forma sucinta e elucidativa, que uma das muitas contribuições de Luxemburgo para o pensamento marxista foi a ênfase no "princípio da escolha histórica, no princípio da história ‘aberta’". [11]


“Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!” era o famoso slogan do Manifesto Comunista – mas como é possível conciliar este internacionalismo elementar, as realidades complexas dos estados-nação, as etnias e os nacionalismos do mundo moderno? Os inúmeros debates acerca desta questão são o ponto central da discussão seminal de "Marxistas e a Questão Nacional". Outro ensaio inspirador é o "Da 'lógica' de Hegel à estação da Finlândia, em Petrogrado". Nele, vemos o choque entre a moral da Internacional Socialista e o colapso político diante da Primeira Guerra Mundial, que levou Lenin a repensar seu marxismo – através de um mergulho na dialética hegeliana – e organizar os caminhos revolucionários de 1917.


Há dois outros ensaios que tratam desta temática – “A Primeira Revolução do Século XX” (resenha de um excelente estudo sobre a Rússia do início do século XX, The Roots of Otherness, do historiador-sociólogo russo, Teodor Shanin) e “O Marxismo de Balanços e Perspectivas” (analisando de forma concisa o terreno já explorado no A política do desenvolvimento desigual e combinado). Ambos tratam da Revolução Russa, desenvolvimento desigual e combinado e Revolução Permanente. No primeiro, Löwy descreve o que alguns marxistas chamam de discussão "herética" de Shanin, em que o campesinato é visto como a verdadeira força anticapitalista e revolucionária, e até Trotsky (muito mais que Lenin) é criticado.


Até certo ponto, também se enquadram na categoria "mainstream" os ensaios "Gramsci e Lukács" e "Dialética Revolucionária contra o 'Tailismo': a resposta de Lukács a críticas da História e Consciência de Classe". Antonio Gramsci e Georg Lukács são considerados figuras fundamentais do "marxismo ocidental", frequentemente retratados como representantes de um marxismo filosófico e culturalmente distante da prática política, em particular, dos movimentos comunistas e da classe trabalhadora. Como Löwy enfatiza de forma correta, embora estivessem imersos na filosofia hegeliana, ambos eram hegelianos leninistas, lideravam os partidos comunistas da Itália e Hungria, respectivamente, e estavam totalmente engajados na luta da classe trabalhadora. Focando, primeiramente, nos Cadernos do Cárcere, de Gramsci, e em História e Consciência de Classe, de Lukács, (e, de forma secundária, no recém descoberto Tailismo e Dialética), argumenta que ambos têm muito em comum. Enquanto seu respeito político se inclina mais para Gramsci, mostra que, para os interessados ​​em mudar o mundo, vale a pena ler os dois.


Os 10 ensaios restantes deste volume compõem o que o autor chama de "estreitas estradas nas montanhas" - caminhos menos percorridos dentro da tradição marxista. Falam, basicamente, de romantismo "reacionário", utopias, religião e rejeição ao progresso. Neles, encontramos várias referências a figuras consideradas heréticas, marginais, daqueles que se identificam com o marxismo: Ernst Bloch, Herbert Marcuse, Lucien Goldmann, principalmente Walter Benjamin, bem como figuras decididamente não-marxistas como Max Weber e Hannah Arendt (críticos profundos a Marx cujas ideias podem abrir novos caminhos para o pensamento marxista). O marxismo de Löwy traz não apenas uma ratificação articulada das ideias de Marx como também uma insistência na renovação crítica – coloca em cheque certezas e pensamentos tradicionais de forma a encontrar maneiras revitalizadas de entender os fundamentos do marxismo e, assim, poder aplicá-las junto às novas complexidades que estão à nossa volta.


É especialmente reveladora a mudança de Löwy em relação à corrente filosófico-cultural conhecida como romantismo - que ele caracteriza, em um excelente ensaio ("Marxismo e romantismo revolucionário"), como a nostalgia das sociedades pré-capitalistas e uma crítica cultural ao capitalismo (com ênfase mais na emoção do que no intelecto). Antes, ele acreditava que essa análise voltada para o passado era oposta ao marxismo "voltado para o futuro", fundamentado nas concepções iluministas da razão e progresso. Mas, posteriormente, chegou à conclusão de que o pensamento romântico não é menos essencial para a orientação de Marx e, portanto, tornou-se também crucial para a sua própria. A maneira como Marx enxergava a cultura e a polis democrática ateniense e dos povos "pré-civilizados", com os quais entrou em contato a partir dos primeiros antropólogos, nos mostra que, "do ponto de vista humano e quando comparadas às comunidades do passado, a civilização capitalista industrial está em declínio”. A noção de progresso inevitável entre marxistas compartilhada pelos triunfalistas pró-capitalistas deve dar lugar à “dimensão revolucionária-romântica do marxismo”, o que significa “enriquecer a perspectiva socialista do futuro com a herança do passado, com o tesouro de valores qualitativos comunitários, culturais, éticos e sociais, submersos desde o advento do capitalismo nas 'águas glaciais do cálculo egoísta' ”. [12]


Desafios semelhantes são expostos em outros ensaios do conjunto “estreitas estradas nas montanhas”, como, por exemplo, no “Marxismo e a visão utópica”:


O socialismo científico deve voltar a ser utópico e inspirar-se no “Princípio da Esperança” (Bloch), ou seja, nas lutas, sonhos e aspirações de milhões de oprimidos e explorados, “dos derrotados da história”, de Jan Hus e Thomas Münzer [revolucionários cristão-comunistas mártires dos séculos XV e XVI] aos Soviets de 1917-19, na Europa, e coletivos de 1936-37, em Barcelona. É imprescindível abrir as portas do pensamento marxista a intuições sobre o futuro, dos socialistas utópicos aos críticos românticos da civilização industrial; dos sonhos de Fourier aos ideais libertários do anarquismo. [13]


O desafio da coerência


A abordagem desses ensaios - que serão um anátema para muitos partidários da "ortodoxia" - estava firmemente fundamentada em um compromisso maduro com a tradição marxista revolucionária. Essa fundamentação ajudou a garantir a coerência da orientação analítica e política que seria esmiuçada e defendida em sua argumentação.


Essa coerência não é, de maneira alguma, algo fácil de alcançar e sustentar - especialmente considerando a verdade presente na citação de Lenin sobre Goethe, que as realidades da vida são muito mais vastas e complexas que as mais sofisticadas teorias. No entanto, sem a coerência de um arcabouço teórico-político, abrir as portas a elementos tão diversos e muitas vezes divergentes pode resultar não em compreensão ou criatividade, mas em caos.


O trabalho de Löwy encontrou o equilíbrio em um grau muito significativo. A mistura de coerência e abertura foi solidificada em seu clássico estudo de 1970, A Teoria da Revolução no Jovem Marx, que foi definido de maneira bastante apropriada 35 anos depois: trata-se basicamente de uma tentativa de interpretação marxista de Marx, isto é, um estudo de sua evolução filosófica e política no contexto histórico das lutas sociais na Europa durante os anos decisivos de 1840-48, e em particular de sua relação com as experiências de ascensão da classe trabalhadora e dos primórdios do movimento socialista. Foi através de uma troca ativa com esse ambiente social (assim como com as correntes hegelianas de esquerda) que o jovem Marx formulou o conceito seminal de uma nova visão de mundo, a filosofia da práxis, que fornece o fundamento teórico para sua concepção de revolução e auto-emancipação proletária. [14]


Esse trabalho inicial, juntamente com o subsequente Política de Desenvolvimento Combinado e Desigual, forneceram a estrutura teórico-política que garantiu a coerência de seus esforços criativos. Deve-se enfatizar que isso não aconteceu apenas com este autor-ativista mas com toda uma corrente política global na qual desempenhou um papel ativo e de destaque, um conjunto internacional de partidos e grupos associados ao marxismo revolucionário representado por Leon Trotsky, a Quarta Internacional.


Este não é o lugar para repassar toda a história e heranças da Quarta Internacional, embora a mesma não seja, hoje, tão coerente quanto no passado. Assim como o restante da esquerda revolucionária internacional, os camaradas da Quarta Internacional estão envolvidos num processo de reavaliação e autocrítica, estão procurando aprender com as experiências das últimas décadas enquanto se preparam para enfrentar os desafios revolucionários do período atual. E como parte disso, faz sentido avaliar criticamente as contribuições de Michael Löwy cujo trabalho - junto com o do falecido Ernest Mandel, George Breitman e alguns outros - representa o que pode ser chamado de “o melhor do marxismo da Quarta Internacional ”.


Dada sua integridade intelectual, vale a pena olhar para a autocrítica de Michael. De um lado, a visão apresentada em seu trabalho de 1970 sobre a teoria da revolução de Marx, ele diz, "continua sendo a melhor bússola dentro deste confuso panorama histórico que vivemos no presente". Em relação ao livro de 1981 sobre revolução permanente, por outro lado, ele comenta: “Sinto que muito dele está ultrapassado”. Especificamente, ele observa, “a maioria das sociedades que caracterizei como 'pós-capitalistas' simplesmente restauraram o capitalismo sem muita resistência por parte das classes exploradas”. [15]


Sua decisão de remover a 2ª parte do Políticas do Desenvolvimento Combinado e Desigual na reimpressão de 2010 - mais de 80 páginas - deixa o livro muito menos consistente que o original, publicado em 1981. Um desafio ainda maior à coerência do livro de Löwy, no entanto, esteja talvez em sua propensão (de Löwy, mas também dentro da Quarta Internacional em geral) de acreditar que o caráter "democrático" da revolução permanente tenha se concretizado quando um Partido Comunista (o chinês, o vietnamita, etc.) assume o controle do seu país e, basicamente, de ver a ditadura de um partido único, governando em nome da classe trabalhadora, como uma “substituta” à tomada real de poder pela classe trabalhadora.


Como Löwy mostra em sua autocrítica, a rescrita - inconsistente com os melhores aspectos de sua abordagem geral - não produziu resultados tão duradouros quanto os apresentados por seu estudo de 1981. Isso não anula a dinâmica "permanentista" que apontou em suas discussões sobre as revoluções na China, no Vietnã, etc. Mas, em geral, o resultado parece diferente do que ele e seus co-pensadores da Quarta Internacional (entre os quais devo me incluir) haviam projetado.


Esta lição histórica, presente nos elementos mais substanciais do trabalho de Löwy, pode nos levar a um caminho de reformulação de sua perspectiva, no qual, em última instância, sairá fortalecida. Existem, no entanto, dois novos trabalhos que desafiam outros aspectos do Políticas de Desenvolvimento Combinado e Desigual que devem ser considerados nas nossas reflexões sobre as conquistas de Löwy.


Estudos revolucionários, políticas revolucionárias


Encontramos um desafio quando nos deparamos com a excelente coleção de documentos, Testemunhas de Revolução Permanente, com um ótimo prefácio de Richard B. Day e Daniel Gaido. [16] A documentação diz que Leon Trotsky, embora certamente o mais famoso e brilhante proponente da revolução permanente, emergiu em um contexto coletivo. A coleção apresenta sete ensaios de Karl Kautsky, cinco do jovem Trotsky, dois do mentor e colaborador de Trotsky, Parvus (Alexander Helphand), três de Rosa Luxemburgo, dois de David Ryazanov e um de Franz Mehring - nenhum deles se encaixa na suposta "interpretação econômica e vulgar-evolucionista do marxismo".


Em vários trabalhos (no prefácio de uma edição posterior, de 1905, nos comentários sobre The New Course, sua autobiografia), Trotsky comentou que sua concepção de "Revolução Permanente" se sobrepunha às perspectivas de Parvus, Luxemburgo, Mehring e Kautsky - e também às de Lenin. Em A Política do Desenvolvimento Desigual e Combinado, Löwy definiu como sendo este um esforço para "minimizar sua originalidade", a fim de "minimizar a natureza supostamente herética da Teoria da Revolução Permanente". [17] No Testemunhas da Revolução Permanente ele sugere que os comentários de Trotsky vieram não por uma conveniência política, mas por sua honestidade intelectual.


Isso também contribui para um ponto que o próprio Löwy ressalta: as conceituações revolucionárias inerentes às análises e à metodologia do próprio Marx. Teóricos e ativistas que buscam aplicar o marxismo no mundo ao seu redor vão, naturalmente, acabar caindo em formulações "permanentistas". Pode-se argumentar que a degeneração da Segunda Internacional tenha feito com que Löwy acabasse fazendo suposições sobre o marxismo de seus adeptos que não são totalmente justificáveis. Ao mesmo tempo, há uma diferença entre "seguir numa direção permanentista" e desenvolver um conceito internacional, como fez Trotsky a partir do sentimento revolucionário da Rússia, em 1905. E aqui é importante se juntar a Löwy quando ele se recusa a questionar a contribuição oferecida por Trotsky.


Outro trabalho acadêmico que questiona o The Politics of Combined and Uneven Development é o estudo maciço e meticuloso de Neil Davidson - How Revolutionary Were the Bourgeois Revolutions?. Neste volume, assim como em sua apresentação na Conferência das Organizações Socialistas Internacionais, "Socialismo 2013", em Chicago, ele argumenta que a Teoria da Revolução Permanente, de Trotsky, tem apenas importância histórica, que considerando que a era das "Revoluções Burguesas" (não entendida adequadamente pela maioria dos marxistas, ele complementa) é, agora, ultrapassada, a própria teoria é irrelevante. [18] Vale a pena levar em consideração o ponto de vista de Davidson devido à alta qualidade do trabalho.


O próprio Löwy desenvolveu uma argumentação que parece contradizer Davidson:


Eu acho que a teoria de Trotsky, desde que não seja vista como um sistema fechado com respostas para tudo, é uma ferramenta preciosa para se entender a natureza "desigual e combinada" do sistema e a natureza "combinada" dos possíveis processos revolucionários na periferia do sistema. (...) Ainda tem a grande vantagem de apontar a ligação entre as lutas anti-imperialistas, agrárias, democráticas e anticapitalistas: nenhuma delas pode triunfar se não estiverem “combinadas”. [19]


Podemos ir além: a Teoria da Revolução Permanente tem aplicação no centro do sistema capitalista, não apenas na periferia. Lutas em favor da democracia genuína, contra o militarismo e as guerras imperialistas, em defesa do meio ambiente e contra a devastação gerada pelo processo de acumulação de capital, em prol da simples preservação da qualidade de vida da maioria, não podem ser garantidas sem que a classe trabalhadora chegue ao poder e derrube o capitalismo. As lutas do “aqui e agora” também têm dinâmica "permanente". E a resolução revolucionária não pode ser assegurada sem que haja a propagação das tais revoluções por outras terras.



Contra essa linha de pensamento, Davidson afirma:


Referir-se à Revolução Permanente no contexto dos Estados Unidos ou de qualquer outro país capitalista avançado é ... destituí-la de qualquer especificidade, uma vez que não há país no mundo onde alguma formação social pré-capitalista ou instituição política pré-democrática não possam ser encontradas.


Embora reconheça o fato, Löwy (especificamente fazendo referência à defesa de que a defesa do meio ambiente transborde rumo à transição para o socialismo) comentou: “Esta não é uma 'Revolução Permanente' como a formulada por Trotsky, mas uma espécie de argumento análogo”. [20]


Em vez de argumentar que a Revolução Permanente é irrelevante, podemos dizer que a dinâmica subjacente à teoria de Trotsky é, hoje, mais relevante do que nunca. Um governo gerido pelo povo (e todas as demandas democráticas relacionadas) só pode ser reivindicado e conquistado pela maioria da classe trabalhadora que, para fazê-lo, deve assumir o poder. As implicações do poder político da classe trabalhadora vão, necessariamente, na direção de uma transição socialista. Para não ser esmagada, essa luta deve atravessar fronteiras, e para que o socialismo se torne uma realidade, ele deve triunfar no mundo todo.


E para que tudo isso seja possível, os revolucionários ativistas devem ser impulsionados pela abordagem criativa, crítica, de alcance externo e de reafirmação da vida, presente nos ensaios de On Changing the World.


8 de setembro, 2013


Notas


[1] Para informações e links, consulte http: //en.wikipedia.org/wiki/Michae ... (acessado em 26 de julho de 2013). A concepção de "marxismo aberto" parece ter se tornado um terreno de contestação. No Wikipedia, “Marxismo aberto” é definido, de forma simplista, como “uma 'escola' do marxismo que se baseia em críticas ao Partido Comunista”, tendo fortes “afinidades intelectuais com o marxismo autonomista”, mas que também se opõe ao 'marxismo hegeliano' (ver http://en.wikipedia.org/wiki/Open_Marxism, acessado em 13 de setembro de 2013). O modo como é utilizado no presente ensaio é mais amplo - influenciado por The Open Marxism, de Antonio Gramsci (Nova York: Cameron Associates, 1957), de Carl Marzani, e pela coleção de três volumes lançada em 1992, intitulada Open Marxism, sobre a qual o editor Pluto Press escreveu: contempla uma espécie de "rejeição ao determinismo e positivismo muito presentes no pensamento da esquerda contemporânea".

de Paul Le Blanc.

[3] Sinyavsky escrevendo como Abram Tertz, "On Socialist Realism", em The Trial Begins and On Socialist Realism (Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1982), 155.

[4] Nos quatro parágrafos a seguir, recorro a um resumo do A Freedom Budget for All Americans: Recapturing the Promise of the Civil Rights Movement in the Struggle for Economic Justice Today (New York” Monthly Review Press, 2013), 48-49, de Paul Le Blanc and Michael Yates.

[5] Informações biográficas sobre Marx e Engels, com uma análise útil do contexto histórico, podem ser encontradas em An Introduction ot Their Lives and Work (New York: Monthly Review Press, 1973) de David Riazanov, disponível on-line em http://www.marxists.org/archive/ria... e em Love and Capital: Karl and Jenny Marx and the Birth of a Revolution (New York: Little, Brown and Co., 2011), de Mary Gabriel - ambos clássicos, um de 1927, o outro, uma contribuição mais recente e incrivelmente rica.

[6] Para discussões sobre o marxismo relacionadas ao que é apresentado aqui veja: The Communist Manifesto: A Roadmap to History’s Most Important Political Document (Chicago: Haymarket Books, 2005), de Phil Gasper; From Marx to Gramsci (Amherst, NY: Humanity Books, 1996), de Paul Le Blanc; Marx and Engels: Their Contribution to the Democratic Breakthrough (Albany, NY: State University of New York Press, 2000), de August Nimtz; e Why Marx Was Right (New Haven, CT: Yale University Press, 2011), de Terry Eagleton.

[7] Michael Löwy, The Politics of Combined and Uneven Development: The Theory of Permanent Revolution (London: Verso, 1981), 189. [Edição brasileira: A Política do Desenvolvimento Desigual e Combinado: A Teoria da Revolução Permanente. São Paulo: Sundermann, 2015.]

[8] Ibid.

[9] Ibid., 198.

[10] Michael Löwy, On Changing the World: Essays in Political Philosophy, from Karl Marx to Walter Benjamin (Chicago: Haymarket Books, 2013), xiv.

[11] Löwy, On Changing the World, 95.

[12] Ibid., 1, 6, 11. A citação de Löwy é retirada do Manifesto Comunista, mais comumente traduzido para o inglês como “the icy waters of egotistical calculation”.

[13] Ibid., 20.

[14] Michael Löwy, The Theory of Revolution in the Young Marx (Chicago: Haymarket Books, 2005), vi. [Edição brasileira: A teoria da revolução no Jovem Marx. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.]

[15] Ibid., vii; “Interview of Michael Löwy by Phil Gasper, 2010”, in Michael Löwy, The Politics of Combined and Uneven Development: The Theory of Permanent Revolution, abridged (Chicago: Haymarket Books, 2010), 146.

[16] Richard B. Day and Daniel Gaido, eds., Witnesses to Permanent Revolution, The Documentary Record (Chicago: Haymarket Books, 2010). Daniel Gaido infelizmente que eu defini o seu excelente como “anti-Leninista”, o que não é definitivamente minha opinião – veja a crítica a cerca do assunto: Paul LeBlanc, “Revisiting Permanent Revolution”, International Socialist Review #82, http://isreview.org/issue/82/revisi....

[17] Löwy, The Politics of Combined and Uneven Development (1981), 40.

[18] Neil Davidson, How Revolutionary Were the Bourgeois Revolutions? (Chicago: Haymarket Books, 2012), 621-627; Neil Davidson, “The Irrelevance of Permanent Revolution”, acessado em 26 de julho, 2013, no site We Are Many, http://wearemany.org/a/2013/06/irre....

[19] Löwy, The Politics of Combined and Uneven Development (2010), 154.

[20] Davidson, How Revolutionary Were the Bourgeois Revolutions?, 304; Löwy, The Politics of Combined and Uneven Development (2010), 154.

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