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Karl Marx – Materialismo histórico (Ernest Mandel)


Karl Marx – Materialismo histórico

Ernest Mandel

Tradução de Ariane Lesnyak

Revisão de Pedro Barbosa


Karl Marx

2. Materialismo histórico

3. Teoria econômica de Marx – abordagem geral e influência

4. Teoria do valor trabalho de Marx

5. Teoria da renda de Marx

6. Teoria do dinheiro de Marx

7. Teoria do mais-valor de Marx

8. As leis de movimento do modo de produção capitalista

9. Teoria das crises de Marx

10. Marx e Engels sobre a economia das sociedades pós-capitalistas


Fora de suas teorias especificamente econômicas, a principal contribuição de Marx às ciências sociais foi sua teoria do materialismo histórico. Seu ponto de partida é antropológico. Os seres humanos não podem sobreviver sem organização social. A organização social se baseia no trabalho social e na comunicação social. O trabalho social sempre se dá no interior de um contexto de relações sociais de produção específicas e historicamente determinadas. Em última análise, são tais relações sociais de produção que determinam todas as outras relações, incluindo aquelas de comunicação social. É a existência social que determina a consciência social, e não o contrário.


O materialismo histórico postula que as relações de produção que se estabilizam e se reproduzem são estruturas que não podem mais ser alteradas gradualmente, por partes. São modos de produção. Para usar a linguagem dialética de Hegel, que foi amplamente adotada (e adaptada) por Marx: elas só podem ser qualitativamente transformadas por meio de um levante social completo, uma revolução ou uma contrarrevolução. Mudanças quantitativas podem ocorrer dentro de modos de produção, mas elas não alteram a estrutura básica. Em cada modo de produção, um conjunto dado de relações de produção constitui a base (infraestrutura) sobre a qual se ergue uma complexa superestrutura, que engloba o Estado e a lei (exceto numa sociedades sem classes), ideologia, religião, filosofia, as artes, moralidade etc.


Relações de produção são a soma das relações sociais que os seres humanos estabelecem entre si na produção de sua vida material. Desse modo, não se limitam ao que de fato acontece no âmbito da produção. A humanidade não poderia sobreviver – isto é, produzir – se não houvesse formas específicas de circulação de bens, por exemplo entre unidades produtivas (circulação de ferramentas e matérias-primas) e entre unidades produtivas e consumidores. A alocação a priori de bens determina outras relações de produção, de modo diferente da alocação feita através do mercado. Da mesma forma, a produção parcial de mercadorias (o que Marx chama de “produção simples de mercadorias” ou “pequena produção de mercadorias”, do alemão einfache Warenproduktion) também implica outras relações de produção, de modo diferente da produção generalizada de mercadorias.


Exceto no caso das sociedades sem classes, os modos de produção – centrados nas relações de produção predominantes – estão encarnados em relações de classe específicas que, em última instância, sobredeterminam as relações entre indivíduos.


O materialismo histórico não nega o livre arbítrio do indivíduo, suas tentativas de fazer escolhas relacionadas à sua existência de acordo com suas paixões individuais, seus interesses tal como ele os entende, suas convicções, suas opções morais etc. O que o materialismo histórico defende é: (1) que essas escolhas são fortemente predeterminadas pelo contexto social (educação, ideologia e “valores” morais dominantes, variantes de comportamento limitadas por condições materiais, etc.; (2) que a resultante da colisão de milhões de paixões, interesses e opções diferentes é essencialmente um fenômeno de lógica social, e não de psicologia individual. Aqui os interesses de classe são predominantes.


Não há exemplo na história de uma classe dominante que não defenda sua dominação, ou de uma classe explorada que não tente limitar (e, ocasionalmente, eliminar) a exploração que sofre. Portanto, fora as sociedades sem classes, a luta de classes é uma característica permanente da sociedade humana. Na verdade, uma das teses-chave do materialismo histórico é que “a história da humanidade é a história das lutas de classes” (Marx, “O Manifesto do Partido Comunista”, 1848).


O objeto imediato da luta de classes é econômico e material. É uma luta pela divisão do produto social entre os produtores diretos (a classe explorada, produtiva) e aqueles que se apropriam do que Marx chama de “sobreproduto social” [ou excedente social], o que resta do produto social depois que os produtores e seus filhos sejam alimentados (no sentido amplo da palavra; isto é, a soma total dos bens de consumo consumidos por aquela classe) e que o estoque inicial de ferramentas e matérias-primas seja reproduzido (incluindo a recuperação da fertilidade inicial do solo). A classe dominante funciona como classe dominante essencialmente por meio da apropriação do sobreproduto social. Ao se apropriar do sobreproduto social, ela adquire os meios para cuidar e manter a maioria das atividades superestruturais mencionadas acima; e, ao fazer isso, consegue determinar amplamente sua função – manter e reproduzir a estrutural social dada, o modo de produção dado – bem como seus conteúdos.


Dizemos “determinar amplamente” e não “determinar completamente”. Em primeiro lugar, há uma “dialética imanente” – ou seja, um movimento autônomo – a cada esfera de atividade superestrutural específica. Cada geração de cientistas, artistas, filósofos, teólogos, advogados e políticos se depara com um dado corpus de ideias, formas, regras, técnicas e modos de pensar, aos quais é iniciada por meio da educação e das práticas correntes, etc. Não é forçada a simplesmente continuar e reproduzir tais elementos. Pode transformá-los, modificá-los, mudar suas interconexões e até mesmo negá-los. Novamente: o materialismo histórico não nega que haja uma história específica da ciência, uma história da arte, uma história da filosofia, uma história das ideias políticas e morais, uma história da religião, etc, que seguem suas próprias lógicas. [Só] Tenta explicar por que um certo número de mudanças ou mesmo revoluções científicas, artísticas, filosóficas, ideológicas ou jurídicas acontecem em determinados momentos e em determinados países, de modo bastante distinto de outras que ocorreram alguns séculos antes em outro lugar. O nexo [nexus] destas “revoluções” com seus períodos históricos determinados é um nexo de interesses de classe.


Em segundo lugar, cada formação social (ou seja, uma determinada nação em determinada época), enquanto se caracteriza por relações de produção predominantes (isto é, um determinado modo de produção em certa fase de seu desenvolvimento), inclui diferentes relações de produção que são em grande parte remanescentes do passado, mas também às vezes funcionam como núcleos de modos de produção futuros. Assim, não existem apenas a classe dominante e a classe explorada características daquele modo de produção predominante (capitalistas e assalariados sob o capitalismo). Há também remanescentes de classes sociais que foram predominantes quando outras relações de produção prevaleciam e que, embora tenham perdido sua hegemonia, ainda conseguem sobreviver nos interstícios da nova sociedade. Este é o caso, por exemplo, dos pequenos produtores de mercadorias (camponeses, artesãos, pequenos comerciantes), proprietários semi-feudais e mesmo donos de escravos, em várias formações sociais já predominantemente capitalistas ao longo do século XIX e parte do XX. Cada uma dessas classes sociais tem sua própria ideologia, sua própria religião e valores morais, que estão conectados com a ideologia da classe dominante hegemônica, sem serem completamente absorvidas por tal ideologia.


Em terceiro lugar, mesmo após o desaparecimento de uma determinada classe dominante enquanto classe dominante (por exemplo, a nobreza feudal ou semi-feudal), sua ideologia pode sobreviver por pura força da inercia social e da rotina (costume). Como uma ilustração disto, temos a sobrevivência da ideologia católica do antigo regime na França durante boa parte do século XIX, apesar das arrebatadoras mudanças sociais, políticas e ideológicas trazidas pela Revolução Francesa.


Por fim, a afirmação de Marx de que a ideologia dominante de cada época é a ideologia da classe dominante (outro pilar do materialismo histórico), não expressa nada além do que ela efetivamente diz. O que implica que outras ideologias podem existir lado a lado com aquela ideologia dominante sem serem hegemônicas. Para citar a mais importante dessas ocorrências: classes sociais exploradas e (ou) oprimidas podem desenvolver sua própria ideologia, que começará a desafiar aquela hegemônica predominante. Na verdade, uma luta de classes ideológica acompanha e às vezes até precede a luta política propriamente dita. Exemplos deste tipo são as lutas religiosas e filosóficas que precederam as revoluções burguesas clássicas; assim como as primeiras críticas socialistas da sociedade burguesa que precederam a constituição dos primeiros partidos e revoluções da classe trabalhadora.


A luta de classes foi até hoje o grande motor da história. Seres humanos fazem sua própria história. Nenhum modo de produção pode ser substituído por outro sem a ação deliberada de amplas forças sociais, ou seja, sem revolução social (ou contrarrevolução). Se essas revoluções ou contrarrevoluções levaram de fato à implementação em longo prazo de projetos deliberados de reorganização social é outra questão. Frequentemente, seu resultado é, em larga medida, diferente da intenção de seus principais atores.


Seres humanos agem de maneira consciente, mas eles podem agir sob falsa consciência. Não entendem necessariamente por que querem levar a cabo certos planos sociais e (ou) políticos, por que querem manter ou transformar instituições econômicas ou jurídicas; e, especialmente, raramente compreendem em um sentido científico as leis da transformação social, as precondições materiais e sociais necessárias para conservar ou transformar de maneira bem-sucedida tais instituições. De fato, Marx afirma que só com a descoberta dos pilares do materialismo histórico que nós avançamos significativamente em direção à compreensão destas leis, sem que isso implique sermos capazes de predizer “todos” os desenvolvimentos futuros da sociedade.


Transformação social, revoluções e contrarrevoluções sociais ocorrem aliás dentro de determinadas restrições materiais. O nível de desenvolvimento das forças produtivas – essencialmente ferramentas e habilidades humanas, incluindo seus efeitos sobre a fertilidade do solo – limita a possibilidade de transformação institucional. O trabalho escravo se mostrou amplamente incompatível com o sistema fabril baseado nas máquinas contemporâneas. O socialismo não seria durável se construído sobre a base do arado de madeira e a roda do oleiro. Uma revolução social geralmente amplia o escopo para o desenvolvimento das forças produtivas e leva ao progresso social na maior parte dos campos da atividade humana de maneira significativa. Da mesma forma, uma época de crises sociais profundas é introduzida quando há um conflito crescente entre, de um lado, o modo de produção predominante (ou seja, a ordem social existente) e o desenvolvimento futuro das forças produtivas, de outro. Tal crise social se manifestará então em todos os principais campos e na atividade social: política, ideologia, moral e direito, bem como no domínio da vida econômica propriamente dita.


O materialismo histórico fornece, assim, uma medida para o progresso humano: o crescimento das forças produtivas, medido pelo crescimento da produtividade média do trabalho, e o número, a longevidade e a habilidade da espécie humana. Essa medida de modo algum desconsidera as precondições naturais para a sobrevivência e para o crescimento humanos (no sentido mais amplo do conceito). E também não desconsidera o caráter condicional e parcial de tal progresso, em termos de organização social e alienação individual.


Em última análise, a divisão da sociedade em classes sociais antagônicas rejeita, do ponto de vista do materialismo histórico, uma limitação inevitável da liberdade humana. Para Marx e Engels, a medida real da liberdade humana – isto é, da riqueza humana – não é o “trabalho produtivo”; isto apenas cria precondições materiais para tal liberdade. A verdadeira medida é o tempo livre, não no sentido de “tempo para se fazer nada”, mas no sentido de tempo livre da necessidade férrea de produzir e reproduzir a subsistência material, e, portanto, [tempo] disponível para o pleno e livre desenvolvimento dos talentos individuais, desejos, capacidades e potencialidades de cada ser humano


Enquanto a sociedade for muito pobre, enquanto os bens e serviços que satisfazem as necessidades básicas sejam muito escassos, apenas parte da sociedade pode ser liberada da necessidade de dedicar a maior parte da sua vida para “trabalhar para uma subsistência” (ou seja, [da necessidade] de trabalho forçado, no sentido antropológico/sociológico da expressão, isto é, em relação a desejos, aspirações e talentos, não [no sentido de] um status jurídico de trabalho escravo). É essencialmente isso o que representa a liberdade das classes dominantes e de seus parasitas, que estão “sendo pagos para pensar”, criar, inventar e administrar, porque se tornaram livres da obrigação de assar o próprio pão, de costurar as próprias roupas e de construir suas próprias casas.


Uma vez que as forças produtivas tenham se desenvolvido o suficiente para garantir a todos os seres humanos a satisfação de suas necessidades básicas, estando o “trabalho produtivo” limitado a uma pequena fração do tempo de vida (a metade da jornada de trabalho [atual], ou menos), então a necessidade material da divisão da sociedade em classes desaparece. Assim, não resta base objetiva para parte da sociedade monopolizar a administração, o acesso à informação, ao conhecimento e o trabalho intelectual. Por essa razão, o materialismo histórico explica tanto os motivos pelos quais surgiram na história as sociedades de classe e as lutas de classes, como o porquê elas irão desaparecer no futuro, em uma sociedade sem classes com produtores associados democraticamente autogeridos.


Portanto, o materialismo histórico contém uma tentativa de explicar a origem, as funções e o futuro definhamento do Estado enquanto uma instituição específica, assim como uma tentativa de explicar a política e atividade política em geral como uma expressão de conflitos sociais centrados em torno de interesses sociais diferentes (principalmente, mas não somente, aqueles de diferentes classes sociais; importantes frações de classes, assim como grupos sociais que não constituem classes sociais, também desempenham um papel).


Para Marx e Engels, o Estado não existe na sociedade humana como tal, ou como “sociedade organizada” ou mesmo como “sociedade civilizada” de modo abstrato, nem é o resultado de um “contrato social” firmado voluntariamente entre indivíduos. O Estado é a soma total de aparatos, isto é, grupos especiais de pessoas separadas e apartadas do resto (da maioria) da sociedade, que apropriam para si próprios funções de natureza repressiva ou integradora que eram inicialmente exercidas por todos os cidadãos. Esse processo de alienação ocorre de forma conjunta com a emergência de classes sociais. O Estado é um instrumento para cultivar, conservar e reproduzir uma dada estrutura de classe, e não um árbitro neutro entre interesses de classe antagônicos.


Assim, a emergência de uma sociedade sem classes está intimamente ligada, para os adeptos do materialismo histórico, ao processo de definhamento do Estado, ou seja, de devolução gradual para toda a sociedade (autogestão, autoadministração) de todas as funções específicas hoje exercidas por aparatos especiais, ou seja, [processo] de dissolução desses aparatos. Marx e Engels visualizaram a ditadura do proletariado – a última forma do Estado e do domínio político de classe – como um instrumento para assegurar a transição da sociedade de classes para a sociedade sem classes. Deveria ser, em si, um Estado de tipo especial, organizando seu próprio desaparecimento gradual.


Dissemos acima que, do ponto de vista do materialismo histórico, o objeto imediato da luta de classes é a divisão do produto social entre diferentes classes sociais. Em última análise, mesmo a luta de classes política serve a este propósito principal; mas ela também cobre um campo muito mais amplo de conflitos sociais. Como todas as atividades estatais influenciam de algum modo a estabilidade relativa de uma dada formação social, e a dominação de classe ao qual ela está submetida, a luta de classes pode se estender para todos os campos da política, da política externa aos problemas educacionais e conflitos religiosos. Isto, é claro, precisa ser provado através de análises meticulosas, e não ser proclamado como um axioma ou uma verdade revelada. Quando conduzidos de maneira bem-sucedida, tais exercícios de análise de classe e definição de classe a respeito de lutas políticas, sociais e até mesmo literárias se tornam obras impressionantes de explicação histórica, como, por exemplo, As lutas de classes na França de 1848 a 1850, de Marx, As guerras camponesas na Alemanha, de Engels, A Lenda de Lessing, de Franz Mehring, e A história da revolução russa, de Trotsky, entre outras.

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