Henri Lefebvre (1901-1991), uma inteligência deste tempo
(1991)
Daniel Bensaïd
Tradução de Carolina Freitas
Revisão de Pedro Barbosa
"A deterioração não seria uma modalidade desdramatizada do fim mortal: um fim que nunca termina ?" [1]
Para jovens ativistas embarcando com entusiasmo na aventura do marxismo, Henri Lefebvre era, no limiar dos anos sessenta, uma fonte revigorante e necessária. Um tanto venenoso também. Em 1958, ele havia rompido publicamente com “o partido” [1]. A Soma e o Resto [La Somme et le Reste, 1959] foi um livro que entrou para o index [librorum prohibitorum, índice de livros proibidos]. Seu autor, no entanto, permaneceu, aos olhos dos intelectuais críticos, um filósofo controverso porém respeitado, ao lado de quem Garaudy apareceu como a figura do ideólogo oficial. A hora de Althusser só chegaria alguns anos mais tarde. Enquanto Garaudy e Althusser permaneciam, mesmo em sua irredutível oposição, dois embotados [défroqués], Lefebvre, “outsider” e “faz-tudo”, era o próprio apetite, a curiosidade insaciável e a alegria de viver.
Considerado preguiçoso, a partir de sua ruptura com o PCF ele se tornou de uma inesgotável prolixidade, como se tivesse se libertado subitamente de uma censura íntima. Sociologia da vida cotidiana, filosofia da história, teoria da linguagem, problemas da cidade, crítica do Estado... abriu terrenos múltiplos e inacabados. Nesta produção frenética, encontram-se um bom número de pepitas e muitos desperdícios ou intuições abandonadas ao longo do caminho. Temas fortes, sem sistematização. Donde, sem dúvida, seus apagamentos e seus eclipses. Ele teve uma influência difusa e tenaz sem jamais fazer escola.
No entanto, que caminhos ele não abriu? Nos tempos em que dominava a vulgata do “diamat [2]”, em que Hegel era tratado como um cão morto pela ortodoxia stalinista, em que o positivismo asfixiava a dialética, Lefebvre permaneceu obstinadamente, através de suas leituras de Pascal, Nietzsche ou Hegel, do lado da dialética. Nos tempos em que triunfavam as maquinarias estruturais, ele decodificava os efeitos de superfície e decifrava as tatuagens da cotidianidade. Ele examinou a cibernética e a cidade. Procurou os indícios ínfimos e fragmentários de uma resistência possível à “sociedade burocrática de consumo dirigido”: “A cotidianidade se tornaria assim, a curto prazo, o sistema único, o sistema perfeito, velado sob os outros [sistemas] visados pelo pensamento sistematizante e estruturante. Como tal, a cotidianidade seria o principal produto da sociedade dita organizada, ou de consumo dirigido, assim como a sua decoração: a modernidade. Se o círculo não consegue se fechar, não é por falta de vontades nem de inteligência estratégica, é porque algo de irredutível se opõe a ele... Para quebrar o círculo vicioso e impedir seu fechamento, é necessário nada menos que a conquista da cotidianidade por uma série de ações ⎼ investimentos, ofensivas, transformações ⎼ a serem conduzidas também de acordo com uma estratégia. Somente o que se suceder dirá se nós encontraremos dessa forma a unidade entre a linguagem e a vida real, entre a ação que muda a vida e o conhecimento” [3]. Tendo escrito estas linhas em 1967 em Nanterre, Lefebvre foi certamente um dos menos surpreendidos pela “irrupção” de 1968.
Crescimento sem desenvolvimento?
Em 1967, não resignados com a eliminação do lado subjetivo do marxismo, com o apagamento da história diante da estrutura, com a repressão da negatividade, Alain Brossat e eu fomos encontrar Henri Lefebvre em seu apartamento na Rua Rambuteau para lhe propor nossos temas de mestrado: respectivamente, “a noção de mudança de terreno em Althusser” e “a noção de crise revolucionária em Lênin” [2].
Foi de fato um ponto de resistência ao fluxo da onda estruturalista. Em 1966, ele aceitou o desafio sobre o próprio terreno da teoria da linguagem: “A campanha de Claude Lévi-Strauss contra a história e a historicidade só pode ser explicada por um preconceito violento em favor do sincrônico contra o diacrônico que não se impõe. Isto é o dogmatismo estruturalista” [4].
Transplantado no marxismo, este dogmatismo pôde fazer um bom casal com a herança positivista do período stalinista. Ele só poderia entrar em conflito com uma abordagem histórica e dialética, a qual Althusser começou precisamente a repudiar como o pecado do historicismo. Identificado ao humanismo “ideológico” do jovem Marx, Lefebvre se tornou, por sua vez, “um cachorro morto”.
Ele havia de fato escrito, em 1958 [Problemas atuais do marxismo]: “O marxismo depende de suas próprias categorias. Se transforma em função das condições históricas e sociais. Se desenvolve através das contradições objetivas, das quais algumas, as mais essenciais sob este ângulo, são suas contradições... A teoria do conceito deve superar ao mesmo tempo o objetivismo do conceito isolado e o subjetivismo da reflexão sem conceito... Dialeticamente, na esfera da filosofia, o determinismo não se concebe sem a contingência, nem a necessidade sem o acaso...”.
Em 1965, em Sociologia de Marx [Sociologie de Marx], encontramos o mesmo fio. A estrutura não abole o poder criativo do acontecimento: “Uma revolução resulta de uma estrutura. Mas o acontecimento revolucionário é conjuntural”. O problema da controvérsia, claramente definida, não é outro se não o achatamento positivista do marxismo diante da evidência estúpida dos fatos: “o neopositivismo coloca (ou crê colocar) o ponto final da disputa [contestation] em favor da constatação”. Contra as ilusões do progresso e a pretensão da modernidade de realizar um crescimento ilimitado na estabilidade eternizada da estrutura, trata-se de lembrar que se “assiste no mundo crescimentos notáveis, até mesmo espetaculares, sem desenvolvimento”.
Em 1970, ele opôs uma concepção laicizada da historicidade à religiosidade da História. Daí em diante, “a teoria da história se transforma em estratégia”. A interpretação da teoria como uma ciência suscetível de se apropriar de uma verdade dá lugar a uma leitura estratégica da teoria indissociável de sua prática: “a noção de estratégia supera as oposições e distinções habitualmente utilizadas na análise dos fatos: causalidade e finalidade, acaso e determinismo” [5].
O estudioso, o político e o filósofo
Lefebvre reivindicou a autonomia do pensamento crítico em relação à política partidária. “O homem político mostrará que o ‘campo’ dos países socialistas não foi abalado; que as contradições neste campo não resultaram em antagonismos; que ele mantém sua coesão política, seu poder econômico e militar; que ele até mesmo se fortaleceu, determinando no mundo uma nova situação; que o Partido Comunista continua a apresentar uma linha coerente, um programa estabelecido objetivamente. O filósofo marxista não pode se contentar com argumentos ideológicos e polêmicos, nem com uma tomada de posição no plano político. Ele reclama do homem político quando o vê, por cegueira imposta de fora ou por falta de sinceridade lúcida, obrigado a negar o mal-estar. Ele, o filósofo, quer primeiro elucidar as contradições no interior do socialismo, das quais os políticos muitas vezes só falam por alusão e para imediatamente ocultá-las” [6].
Tendo rompido com o partido, ele foi levado a reabilitar o lugar crítico do discurso filosófico. Alguns anos mais tarde, Althusser tentou fundamentar a autonomia da “prática teórica” sob a estrita delimitação da ciência e da ideologia. Enquanto o discurso científico althusseriano se manteve a uma prudente distância da política do partido, em nome de uma rigorosa divisão do trabalho entre o estudioso e o político, o discurso filosófico de Lefebvre constituiu desde o início uma intervenção polêmica no domínio reservado do partido, uma acusação frontal ao stalinismo: “o marxismo se tornou ideologia de Estado e ideologia do Estado”. O processo de Rajk e os tanques de Budapeste exigiram uma ruptura teórica e moral tão intransigente quanto o processo de Dreyfus.
O processo de Rajk? Já era, sem dúvida, um pouco tarde. Dizia-se que Lefebvre há muito tempo havia aceitado pagar sua independência intelectual por uma submissão política à autoridade do partido. Sem dúvida. No entanto, ele estava à frente da ninhada de aprendizes maoístas, que só descobriram o gulag com Solzhenitsyn. Ele foi criticado por sua reaproximação tardia com o Partido Comunista no final da década de 1970. Aproximação ambígua, de quem deveria encabeçar ainda novas rupturas, patrocinando em 1986 a criação da revista M [revue M mensuel, marxisme, mouvement].
Lefebvre certamente não esteve isento de fraquezas, mas ele não pôde jamais se encaixar no molde stalinista. Ele era irredutivelmente refratário. Pode ser porque houvesse sempre nele algo do marxismo vivo, pré-stalinista dos anos 20, da época em que formou com N. Guterman, G. Friedmann, Nizan e o primeiro Politzer (não aquele dos Princípios Elementares, mas o da Crítica dos fundamentos da psicologia) o grupo de filósofos. Vindo de um período juvenil e revolucionário, esse “algo” não cessou de retornar à superfície.
Na exploração da cotidianidade e da modernidade, como na desmistificação de um marxismo religioso, Lefebvre foi, em muitos aspectos, uma figura pioneira: “Permaneça superficial, isto é, na superfície, próximo do que ilumina e do que é iluminado. Com a condição de dizer o que está se passando... Permaneça na superfície, é lá que os seres das profundezas vêm respirar...”.
⎼ 1991
Notas
[1] La Fin de l’Histoire [O fim da história], p. 176.
[2] Matérialisme dialectique [Materialismo dialético].
[3] La Vie quotidienne dans le monde moderne [A Vida cotidiana no mundo moderno], Gallimard, 1967.
[4] Le Langage et la société [A linguagem e a sociedade], Gallimard 1966.
[5] La Fin de l’Histoire, 1970.
[6] Problèmes actuels du marxisme [Problemas atuais do marxismo], 1958.
Notas da tradução/revisão
[1] Partido Comunista Francês ⎼ PCF. [Nota da tradução] [2] O texto pode ser conferido na íntegra em: http://danielbensaid.org/La-notion-de-crise-revolutionnaire-chez-Lenine?lang=fr. Muitos anos depois, em 2001, Bensaïd apresentou um balanço a respeito de seu mestrado, “Retour sur le mémoire de maîtrise”: http://danielbensaid.org/Retour-sur-le-memoire-de-maitrise?lang=fr. Vale acrescentar ainda que, em 2008, Bensaïd também revisita um outro texto publicado poucos meses depois de ter apresentado sua dissertação, “Quarante ans après ⎼ Une introduction revisitée: ‘À propos de la question de l’organisation: Lénine et Rosa Luxemburg’” (com Samy Naïr): http://danielbensaid.org/Une-introduction-revisitee?lang=fr. [Nota da revisão]
Bibliografia [Observação: alguns destes escritos possuem tradução para o português]
Le Nationalisme contre les nations [O Nacionalismo contra as nações], ESI 1937.
Nietzsche, Éditions sociales internationales, 1938.
Cahiers de Lénine sur la dialectique d’Hegel [Cadernos de Lênin sobre a dialética de Hegel], NRF 1938.
L’Existentialisme [O Existencialismo], Sagitário, 1946.
Critique de la vie quotidienne [Crítica da vida cotidiana], Grasset, 1947.
Pour connaître la pensée de Marx [Para conhecer o pensamento de Marx], Bordas 1948.
Le Marxisme, Que sais-je ? [Marxismo, o que eu sei?] 1948.
Pascal, Nagel, 1949-1954.
Rabelais, Hier et aujourd’hui, 1955.
Pour connaître la pensée de Lénine [Para conhecer o pensamento de Lênin], Bordas 1957.
Problèmes actuels du marxisme [Problemas atuais do marxismo], Puf, 1958.
La Somme et le reste [A Soma e o Resto], Nave, 1959.
Introduction à la modernité [Introdução à modernidade], Minuit, 1962.
La Callée de Campan, Puf, 1963.
La Proclamation de la Commune [A Proclamação da Comuna], Gallimard, 1965.
Métaphilosophie [Metafilosofia], Midnight, 1965.
Le Langage et la Société [A linguagem e a sociedade], Gallimard, 1966.
Sociologie de Marx [Sociologia de Marx], Puf, 1966.
Le Droit à la ville [O Direito à cidade], Anthropos, 1968.
La Vie quotidienne dans le monde moderne [A Vida cotidiana no mundo moderno], Gallimard, 1968.
L’Irruption: de Nanterre au sommet [A irrupção: de Nanterre ao topo], Anthropos, 1968.
Logique formelle et logique dialectique [Lógica formal e lógica dialética], reedição Anthropos, 1968.
Du rural à l’urbain [Do rural ao urbano], Anthropos, 1969.
Le Manifeste différentialiste [O Manifesto diferencialista], Gallimard, 1970.
La Révolution urbaine [A Revolução Urbana], Gallimard, 1970.
Hegel, Marx, Nietzsche, Casterman, 1975.
L’Idéologie structuraliste [A ideologia estruturalista], Limiar, 1975.
De l’État [Do Estado], UGE, 1976-1978.
La Révolution n’est plus ce qu’elle était [A Revolução não é mais o que era], Hallier, 1978.
La Pensée devenue monde [O pensamento se tornou mundo], Fayard, 1980.
Qu’est-ce que penser? [O que pensar?], Publisud, 1985.
Retour de la dialectique [Retorno da dialética], Messidor, 1986.
Être marxiste aujourd’hui (avec Patrick Tort) [Ser marxista hoje (com Patrick Tort)], Aubier-Montaigne, 1986.
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