Guy Debord (1931-1994) ou o espetáculo, estágio supremo do fetichismo da mercadoria
(9 de maio, 2007)
Daniel Bensaïd
Tradução de Fernanda Peron
Revisão de Pedro Barbosa
Muito além de suas próprias forças militantes marginais, o situacionismo e Guy Debord, sua figura central, coloriram o clima dos anos 60 e exerceram uma influência intelectual difusa, mas importante, sobre os movimentos de 1968. O livro de Debord, La Société du spectacle [A sociedade do espetáculo], publicado em 1967, pode ainda ser lido como um de seus textos precursores, onde implanta-se a crítica da sociedade de consumo, da alienação urbana e do fetichismo generalizado da mercadoria.
Nascido em Paris em 1931, Guy Debord adere em 1951 a Internacional Letrista fundada por Isidore Isou. Em 1952, ele realiza seu primeiro longa-metragem (sem imagens), Hurlements en faveur de Sade [Gritos em favor de Sade]. Em outubro do mesmo ano aparece a primeira edição do jornal A Internacional Letrista e o grupo ataca em Paris uma conferência de Charlie Chaplin, que ali estava para apresentar seu filme Limelight. Em 1954, Debord faz campanha pela supressão do vocábulo “santo” dos nomes de ruas, assim como de conversas. Ele publica, entre 1954 e 1957, 29 edições do boletim informativo Potlatch. O grupo então se reaproxima brevemente dos surrealistas antes de romper violentamente com eles. Em 1956, Guy Debord publica Mode d’emploi du détournement [Modo de uso do desvio] (com Gil Wolman) e Théorie de la dérive[Teoria da deriva].
Em 1957, uma reunião realizada em Cosio d’Arruscia, na Itália, funda a Internacional Situacionista. Para Debord, a crítica da arte e do urbanismo se radicaliza com a leitura de Marx, [Georg] Lukács, [Lucien] Goldmann e [Henri] Lefebvre. A primeira edição da Internacional Situacionista é lançada em 1958. Em 1960, Debord assina o Manifesto dos 121 contra a Guerra da Argélia e passa a frequentar as reuniões do grupo Socialismo ou Barbárie. [Cornelius] Castoriadis o faz descobrir os autores conselhistas ([Karl] Korsch, [Anton] Pannekoek, [Paul] Mattick). Ele abandona o grupo no ano seguinte e publica, em 1962, as Teses sobre a comuna. Em 1963, ele acusa violentamente Henri Lefebvre de as ter plagiado em seu próprio livro sobre a Comuna.
Em 1966, Debord publica em francês Le Déclin et la chute de l’économie spectaculaire merchande [O declínio e a queda da economia espetacular mercantil], que discorria sobre as rebeliões ocorridas no ano anterior no bairro de Watts (Los Angeles), assim como Les Luttes de classes en Algérie[As lutas de classes na Argélia]. O pequeno grupo situacionista de Estrasburgo conquista então a seção local da Unef [União Nacional dos Estudantes da França] e publica o folheto anônimo De la Misère en milieu étudiant [A miséria no meio estudantil], considerando seus aspectos econômicos, políticos, psicológicos, sexuais e principalmente intelectuais, e propondo ainda alguns meio de os remediar, redigido por Mustapha Khayati, tendo em vista os conselhos de Debord. Em 1967, Debord publica pela editora Buchet-Chastel A sociedade do espetáculo, e Raoul Vaneigem publica, pela editora Gallimard, Traité de savoir vivre à l’usage des jeunes générations [A arte de saber viver para as novas gerações]. Esses escritos inspiraram durante as manifestações e greves de 1968 uma pequena corrente, incluindo os “Enragés” [Enraivecidos] de Nanterre e o “Conselho pela manutenção das ocupações”, sentados na Sorbonne ocupada.
Em 1972, a Internacional Situacionista proclama sua autodissolução e Debord publica pela editora Champ libre La Véritable Scission de l’Internationale [A verdadeira cisão da Internacional]. Em 1978, ele entrega In girum imus mode et consumimur igni e publica Le Jeu de la guerre [O jogo da guerra]. Em seguida, vêm Considérations sur l’assassinat de Gérard Lebovici [Considerações sobre o assassinato de Gérard Lebovici] (1985), os Commentaires sur la société du spectacle [Comentários sobre a sociedade do espetáculo] (1988), e Panégyrique [Panegírico] tomo I (1989). Guy Debord suicida-se no dia 30 de novembro de 1994.
A questão da cidade
Na continuidade da experiência letrista do início dos anos 50, o situacionismo encontra sua origem na crítica da degradação da arte em espetáculo. “Nosso tempo vê morrer a estética”, escreve Debord em 1953. O refluxo dos movimentos revolucionários dos anos 30 impulsionou um refluxo irreversível de “movimentos que tentaram afirmar as novidades libertadoras na cultura e na vida cotidiana”. A arte, depois de ter sido “a linguagem comum da inação social”, é vista agora se dissolvendo no espetáculo da economia mercantil.
A questão da cidade ocupa um lugar importante na literatura situacionista dos anos 50. Seu projeto do “urbanismo unitário” se opõe a uma arquitetura subordinada à existência atual “massiva e parasitária”. Ele propõe a inclusão do tempo de transporte no tempo da jornada de trabalho, e considerar a passagem de uma circulação concebida como suplemento do trabalho a uma circulação como prazer, passeio e deriva. Ele pretende se inspirar na Comuna, apresentada como “a maior festa do século XIX”, do ponto de vista da vida cotidiana. O urbanismo moderno constitui ao contrário uma “técnica da separação”, na qual a cidade tende a “se consumir ela mesma” e a se destruir em “cidades novas”, nas quais “nada acontecerá”: “As forças da ausência histórica começam então a compor suas próprias paisagens exclusivas” (Debord, 1967).
A rebelião dos guetos de Watts em 1965 fornece a Debord um material para a reflexão sobre os motins “periurbanos” que prefiguraram a explosividade das periferias. A seus olhos, não se tratam de motins raciais, mas motins de classe. A “publicidade da abundância” incita um efeito de exigir tudo, tudo de imediato. A pilhagem aparece assim como a realização sumária da promessa comunista de satisfazer cada um “segundo suas necessidades”: “A juventude sem futuro de Watts escolheu uma outra qualidade de presente” (Debord, 1966).
Contudo, na medida em que a própria insatisfação se torna solúvel e mercantil, a “aceitação beata daquilo que existe pode assim se juntar, como uma só coisa, com a revolta puramente espetacular”. O mundo que o espetáculo produz é, na verdade, “o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido”. A economia transforma assim o mundo em “mundo da economia” e “o espetáculo é o momento no qual a mercadoria atinge a ocupação total da vida social” (Debord, 1967). Ele “não canta sobre os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões, o futuro mundo da mercadoria que é também a futura mercadoria do mundo”. O espetáculo é “a inversão concreta da vida” e a “linguagem oficial da separação generalizada”; ou ainda, “o sol que não se põe jamais sobre o império da passividade humana”, “a cisão completa no interior do homem”, “o pesadelo da sociedade moderna acorrentada que exprime finalmente seu desejo de dormir”.
O que se pode esperar opor a essa forma absoluta e acorrentada de alienação. O verdadeiro revolucionário é aquele dos lazeres, como Debord escrevia no Potlatch? O slogan de mural cuja paternidade é atribuída a ele (o que é contestado por Michel Mansion) tende a confirmar isso: “Não trabalhe jamais!”. Mas a separação do lazer e do trabalho é ainda uma separação… espetacular! É também o próprio capital que, tendo esvaziado o trabalho produtivo de todo sentido, esforçou-se para “colocar o sentido da vida nos lazeres”, de modo que não é mais possível nem mesmo “olhar os lazeres como uma negação do cotidiano” (Debord, 1961). O mundo que o espetáculo produz é “o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido”, e o próprio espetáculo é o momento no qual “a mercadoria atinge a ocupação total da vida social” (Debord, 1967).
Essa concepção do espetáculo como estágio supremo do fetichismo da mercadoria e alienação absoluta obteve sucesso em neutralizar toda ação subversiva, condenando a combater a alienação por meio de formas elas mesmas alienadas. Tudo é recuperável e recuperado. É por isso, escreve Debord em 1990 em uma confissão pré-póstuma, “temos que admitir que não houve sucesso ou fracasso para Guy Debord e suas pretensões desmedidas”. As autodissoluções sucessivas, as cisões e os acertos de conta, até a solidão e o suicídio, apareceram assim como a conclusão lógica de um impasse construído na teoria.
A partir de uma constatação de esgotamento da arte, consecutivo a uma derrota histórica das revoluções, o projeto situacionista foi inicialmente definido como aquele de uma “ciências das situações” que pegava emprestado da psicologia, do urbanismo, da estatística, da moral, para realizar algo de radicalmente novo, “a criação consciente de situações”: “A beleza nova será de situação, isto é, provisória e vivida” (Debord, 1954). Para “construir as situações e as aventuras” de onde nasceria a grande civilização por vir, o situacionismo dos anos 50 entendia explorar as possibilidades de uma “ética da deriva” e de uma “prática de desvio”, definindo a deriva como uma “técnica de passagem rápida através de diversos ambientes” e o desvio, ao contrário da citação, como “a linguagem fluída da anti-ideologia”.
Burocratização planetária
Confrontado com a questão da burocracia ao entrar em contato com o grupo Socialismo ou Barbárie, Debord denuncia a burocratização planetária da arte e da cultura. Ele define as neoburocracias coloniais como lumpen-burguesias, “versões subdesenvolvidas da velha burguesia europeia”. Ele vê ainda no golpe de estado de Boumedienne em 1965 o sinal de uma burocracia em formação como classe dominante argelina. Da mesma maneira, a burocracia seria na China a única proprietária de um “capitalismo de Estado”. A partir desse crescimento de poder planetário, Debord conclui que “o erro sobre a organização é o erro político central”.
No entanto, na sociedade do espetáculo, todos os atores, e não somente os proletários a serviço do trabalho, perdem sua capacidade subversiva. Debord adverte ainda Mustapaha Khayati, no seu artigo A miséria do meio estudantil, por bem fazer sentir “nosso desprezo suspenso por eles, por remover todas as dúvidas sobre o desprezo universalmente merecido pelo meio” (Debord, 1966). Ele estima ainda que em 1968 os estudantes não foram nada além da retaguarda do movimento. Quanto aos quadros e os estratos superiores dos assalariados, eles não são nada além da “metamorfose da pequena burguesia urbana de produtores independentes que se tornaram assalariados”. Ou seja, eles são “consumidores por excelência”. Quanto à imigração, magnificada por certas correntes maoístas, o “risco de apartheid” já se tornou uma fatalidade com o horizonte “da lógica de guetos, confrontos raciais e um dia de banhos de sangue” (Debord, 1985). Pois o capitalismo em seu estágio espetacular “reconstrói tudo e produz em toda parte incendiários”, enquanto “sua decoração se torna por toda a parte inflamável”.
A máfia, que apareceu há pouco como um “arcaísmo transplantado”, que se viu sumindo diante do Estado moderno, volta a ser, com a decomposição do Estado, com a “vitória do segredo, a demissão geral dos cidadãos, a perda completa da lógica e do progresso da venalidade e da covardia universais”, um “poder moderna e ofensiva”: “No espetacular, as leis dormem” (Debord, 1988). Nós já “começamos a colocar no lugar alguns meios de uma espécie de guerra civil preventiva” e “os procedimentos de urgência passam então a ser procedimentos cotidianos”. Essa democracia perfeita “fabrica ela mesma seu inimigo inconcebível, o terrorismo”.
Um mundo rejeitado
Em Debord torna-se clara uma visão prospectiva fecunda e penetrante. Mas a espetacularização do mundo impede toda possibilidade de abertura estratégica. Marx tinha em seus olhos o mérito de ir além do pensamento científico de seu tempo para oferecer a compreensão da luta como prioridade frente a lei da causalidade, e por entrever uma teoria da ação histórica como “teoria estratégica”. No entanto, “a estratégia é exatamente o campo do desdobramento da lógica dialética dos conflitos” (Debord, 1988). A vitória do espetáculo sobre a estratégia é assim propícia para o ressurgimento de uma utopia concebida como “experimentação de soluções para os problemas atuais sem se preocupar com saber se as condições de sua realização estão imediatamente dadas”. O movimento revolucionário deve se tornar um “movimento experimental”. Mas essa utopia, concebida à maneira de Lefebvre como “sentido [ainda] não prático do possível”, não é daquelas correntes utópicas que se definem principalmente por sua rejeição da história do socialismo. Eles assim viram as costas a todo pensamento estratégico, pois “um Estado na gestão do qual se instala duravelmente um grande déficit de conhecimentos históricos não pode mais ser conduzido estrategicamente” (Debord, 1988).
Desde a “incompleta libertação de 1944”, as políticas revolucionárias não pararam de recuar, e as vanguardas passaram a se transformar em retaguardas. Debord repreende especialmente Lucien Goldmann por ter falado de uma “vanguarda da ausência” para designar, na arte e na escrita, uma certa recusa da reificação. Essa ausência a que Goldmann faz referência é, na realidade, a “ausência da vanguarda”. De fato, esse vocábulo se envolve com Debord de uma nostalgia da pureza e da novidade absoluta, donde nasce o desencadeamento recorrente de expurgos e exclusões, com o esforço ilusório de evitar a ameaça permanente de absorção da novidade pela moda mortífera. A fetichização de uma “comunidade eletiva” da vanguarda tem por consequência uma obsessão paranoica pela deserção, pela traição e pela recuperação, donde se nutrem todas as seitas políticas ou estéticas. A trágica solidão do último Debord é a expressão extrema e extremamente desesperada: “No meio do caminho da verdadeira vida, nós estávamos cercados por uma sombra melancólica, expressa em tantas palavras de zombaria e tristeza, no café da juventude perdida”. E “nós atravessamos agora essa paisagem devastada pela guerra de uma sociedade livre contra ela mesma e contra suas próprias possibilidades” (Debord, 1978).
9 de maio de 2007
Publicado sob o título “A sociedade do espetáculo” em Antoine Artous, Didier Epsztein e Patrick Silberstein (sobra a direção de), A França dos anos 1968, Syllepse, Paris 2008, p. 742-747.
Bibliografia
– Guy Debord, Œuvres, Paris, Quarto Gallimard, 2006
– Guy Debord, Correspondance, six volumes parus, Paris, Fayard.
– Raoul Vaneigem, Traité de savoir vivre à l’usage des jeunes générations, Paris, Gallimard, 1967
– Mustapha Khayati, De la misère en milieu étudiant.
– Anselm Jappe, L’avant-garde inacceptable. Réflexions sur Guy Debord, Paris, Lignes-Léo Scheer, 2004.
– Gérard Guégan, Debord est mort, le Che aussi. Et alors?, Paris, Cahiers de Saisons, 1994 (réédition Librio).
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