Dialética e revolução
(2005)
Daniel Bensaïd
Tradução de Nina Auras
Revisão de Pedro Barbosa
“A razão dialética é irracional em relação à razão dominante: é ao desmascarar esta e ultrapassá-la que se torna racional” – Theodor W. Adorno, Minima moralia [1]
1. Há trinta anos, Michel Löwy publicou um artigo intitulado Da Grande Lógica de Hegel à estação finlandesa de Petrogrado [2]. Ele sublinhava a relação entre a releitura febril feita por Lênin do grande texto hegeliano, em plena tormenta mundial, e seu desenvolvimento sob o fogo do acontecimento, das Teses de Abril aos apelos urgentes, às vésperas de outubro, para se agarrar o momento propício. Stathis Kouvélakis retoma e aprofunda esse tema em um belo artigo a ser publicado.
Inversamente, o adeus à revolução e a liquidação da dialética caminham juntos. Em seu pequeno livro sobre Lênin, escrito [após um período de efervescência revolucionária na Alemanha e da morte de Lênin em 1924 – NDLE], Lukács assinala precisamente: “De um ponto de vista prático, o revisionismo é por essência e obrigatoriamente um compromisso, mesmo que por causa de seu ponto de partida teórico. Ele é sempre eclético: isso quer dizer que ele tenta embotar e igualar já teoricamente as diferenças de classe para fazer de sua unidade o critério que servirá para avaliar os acontecimentos. É por essa razão que o revisionismo rejeita a dialética, porque a dialética não é outra coisa senão a expressão conceitual do fato de que o desenvolvimento da sociedade provém na realidade de uma série de contradições, e que essas contradições (entre as classes, entre sua existência econômica antagônica, etc.) constituem o fundamento, o núcleo real de todo acontecimento (...). Como a dialética, enquanto método, nada mais é do que a formulação teórica do fato de que a sociedade se desenvolve através de uma série de contradições, da passagem de um contrário a outro, portanto de modo revolucionário, a rejeição teórica da dialética significa a ruptura de princípio com todo comportamento revolucionário” [3].
A dialética materialista, diz ainda Lukács, é uma “dialética revolucionária” que se opõe ao determinismo da física clássica, à causalidade mecânica, à abstração unilateral, ao continuum temporal, linear e vazio (referenciado por Benjamin em suas Teses [4]), à evolução tranquila, sem saltos nem rupturas. Ela implica, ao contrário, uma concepção ritmada (uma "ritmanálise", conforme o neologismo de Lefebvre) da temporalidade social e política, com seus efeitos de limiares e saltos, suas crises, suas guerras e suas revoluções. Uma oposição, pois, ao "socialismo fora do tempo" da II Internacional, de que falava Angelo Tasca em seu livro sobre a ascensão do fascismo, a seu “socialismo a passos de tartaruga”, à acumulação passiva de forças tão cara a Kautsky, ou ao movimento sem objetivo caro a Bernstein. Ao contrário, é necessário saber pegar no ar os preciosos “momentos evanescentes” de que Hegel fala, e de que Lênin diz em seus Cadernos [filosóficos] constituírem “uma excelente definição da dialética”: instantes críticos, conjunturas propícias, momento[s] de decisão e de verdade. Onde penetra o alcance estratégico do pensamento dialético.
2. A dialética da totalidade abre, com efeito, o espaço onde pode se desenvolver um pensamento estratégico da política. Ela é, assim, o fundamento e a condição deste. Claro, desde que considerada – como exige Lefebvre em sua Crítica da vida cotidiana – não ontologicamente, “mas estrategicamente, isto é, programaticamente”. Enquanto a lógica positiva de fatos e dados reduz o mundo a suas aparências, e assim se faz incompatível com a noção de possibilidade efetiva determinada, com um real concebido como unidade do efetivo e do possível, do atual e do potencial, a lógica dialética ao contrário os conjuga. É nisso que ela é, conforme o título do livro de Roy Bashkar, The Pulse of Freedom – o pulsar da liberdade. É por sua potência dialética que Marx se afirma então, de acordo com o título de Michel Vadée, como “pensador do possível”; não à maneira utópica de um possível indeterminado e não-prático, mas à maneira de um possível efetivo, incerto mas determinado. Como escreve Lucien Sève, ele efetiva e implementa “um pensamento e uma prática do possível, previamente postos no lugar central do aleatório e do virtual no pensamento científico moderno da legalidade e da realidade material”.
3. Essa concepção do pensamento dialético como condição de todo pensamento estratégico implica evidentemente não uma dialética da reconciliação e do apaziguamento, da complementaridade e correlação, mas uma dialética onde a contradição irreconciliável ou antagônica tem seu pleno lugar.
Por isso, deve-se rejeitar todo formalismo da negação da negação (toda “teologia dialética”, disse Adorno) que o penúltimo capítulo do Livro I d'O Capital foi por vezes capaz de originar, fundando assim uma visão quietista da história, onde tudo seria projetado para terminar fatalmente arranjado em um reconfortante happy end [final feliz]. Engels tentou esclarecer a questão em uma passagem bem conhecida do Anti-Dühring a propósito do “restabelecimento da propriedade individual sobre a base da propriedade social” e do “profundo enigma dialético que Marx deixava a seus adeptos o cuidado de resolver”: o que é então a negação da negação? Uma lei de desenvolvimento universal “que nada diz do processo de desenvolvimento particular”? “É claro que se a negação da negação consiste neste passatempo infantil... de afirmar alternadamente de uma rosa que ela é uma rosa e que ela não é uma rosa, isso não demonstra mais do que a estupidez de quem se entrega a esses enfadonhos exercícios”.
Ao contrário, se a dialética é uma “lógica do conflito radical” (fórmula emprestada de Lucien Sève) e da contradição irreconciliável, apenas a luta é previsível, mas não seu resultado (Gramsci). Não há repouso garantido em uma positividade alcançada e definitivamente apaziguada. Incessantemente no limiar de uma história aberta, a política revolucionária comporta então uma parte irredutível de aposta racional; o que permitiu a Lucien Goldmann ver, na dialética da aposta de Pascal, a figura emblemática da condição do homem moderno.
4. Para Bhashkar, a dialética não é um método, mas uma “experiência da negação determinada”, em que a categoria central seria a ausência e o “absenteísmo” (o vazio, a falta, a necessidade). A causa ausente não é ausência de causa. Há antes um trabalho da ausência como do negativo (as falências das forças sociais e políticas que podem determinar uma situação enquanto causas ausentes, da mesma maneira que a ausência do falo determina, segundo Freud, as neuroses realmente efetivas), em obra numa “causalidade holística” distinta da causalidade mecânica, ou na lógica do vivente (do metabolismo), para além do mecanismo e do quimismo que assombram o livro III do capital sobre a “reprodução global”. Pois esse é de fato o momento da totalidade orgânica do capital.
É essa nova causalidade que revela a noção ainda incerta de “lei tendencial”, em que os lógicos formalistas, cobertos de sarcasmo, não quiseram ver nada mais do que um oxímoro ou uma incoerência lógica. Por isso, Marx especifica bem no título de um capítulo do livro III que estas leis não são apenas tendenciais por conta de obstáculos externos à sua realização, mas que elas são de fato intimamente contrariadas pelas “contradições internas da lei” [O Capital, Livro III - Capítulo 15]. A fecundidade dessa pista foi confirmada à luz das equações não lineares, das causalidades rítmicas, das homeostases, etc. Em um sistema (totalidade) aberto (e o Capital constitui evidentemente um tal sistema), as leis não são efetivamente pensáveis a não ser enquanto tendências, ao passo que a lei mecânica pressupõe um tempo e um espaço abstratos, homogêneos e matematizáveis, que são especificamente aqueles do universo newtoniano clássico.
5. A lógica formal (tal como a “ciência inglesa” ou as ciências positivas, Marx o repete à exaustão) tem, em seus campos de aplicação apropriados, seus méritos e sua fecundidade. Ela também tem seus limites. E transgride uma lógica das singularidades (ou uma ciência de “preenchimentos”, não apenas de intervalos, que Husserl convoca diante da “crise das ciências europeias”). Uma lógica assim permite esclarecer certas ambiguidades bem reais das declarações performativas de Marx, incluindo a das “necessidades históricas”. Sève prefere falar em “teor de necessidade”, sem desfecho predeterminado. Na história, como no caos determinista, o curso é determinado ([ou seja, está] sujeito às condições e a um campo de possibilidades) sem ser por isso previsível. O “como”, que expressa aqui uma analogia, não significa por isso uma identificação ou aplicação rigorosa de categorias físicas à história. Isso seria recair na formulação de “leis gerais”, em uma nova legalidade transcendente, ao invés de se ater à imanência de movimentos próprios a seu domínio específico.
Essa lógica de singularidades é formalizável? Grande questão. As tentativas neste sentido, os esboços de uma metodologia dialética geral, a despeito de seu interesse pedagógico, nos fazem temer uma recaída no formalismo lógico, na “coisa da lógica” se sobrepondo à “lógica da coisa” (“a lógica do Capital”, disse Lênin, não apenas especifica através do seu genitivo o fato de que Marx não teria tido tempo para escrever seu método, mas que não há uma lógica além daquela imanente a seu objeto).
6. O pensamento dialético, enquanto pensamento crítico, é uma arma na luta para desfazer as antinomias do senso comum e pensar o mundo a ser transformado. Pensamento crítico de uma realidade historicamente determinada, ele mina as antinomias estáticas do senso comum e convida, ao invés de suprimir um termo da contradição, a se instalar no seu coração para detonar a mina aí alojada. É por isso, também, que ele é essencialmente um pensamento da crise na crise.
Se o Capital, tal como Marx produz o conceito, pode ser pensado como um sistema dinâmico e não-linear, suas contradições abrem diversas possibilidades. A alternativa entre Socialismo e Barbárie, contra toda concepção quietista de uma História providencial (ainda que secularizada), não é nada mais que a forma radical deste sentido do(s) possível(is). A mediação que permite a sua atualização não é outra que a luta – a luta de classes, é claro.
É por isso que um pensamento dialético, capaz de conceber de conjunto a estrutura e a história, a contingência e a necessidade, o acontecimento e suas condições de possibilidade (sem as quais ele seria reduzido a um milagre teológico), o ato e o processo, a reforma e a revolução (sem que a segunda seja solúvel na primeira), o ativo e o passivo, o sujeito e o objeto, é fundamentalmente um pensamento estratégico, uma “álgebra da revolução” de acordo com a fórmula consagrada. Wolfgang Haug recorda em sua contribuição que Brecht e Benjamin falaram da dialética como de uma arte, de um pensamento em ação, e não como de uma ciência do geral. Clausewitz havia antes deles enfrentado uma dificuldade para designar o saber da guerra, que a seus olhos era mais do que uma arte, mas algo outro que uma ciência. Ele escolheu o termo teoria para designar seu pensamento do conflito, no qual objeto e sujeito interagem permanentemente. O pensamento dialético coloca um problema análogo, na medida em que é por excelência pensamento da “situação concreta”, da conjuntura, da crise, pensamento estratégico, portanto da interação recíproca de suas condições objetivas e subjetivas.
É também por isso que, como disse Gramsci, só podemos prever a luta como expressão necessária das contradições, e não seu desfecho, que contém sua parte irredutível de incerteza, e apela à decisão de seus protagonistas.
2005, em Dialectiques aujourd’hui, Syllepse
Notas da revisão
[1] “Contra a razão dominante a razão dialética é a não-razão: é apenas ao ultrapassar e pôr em suspenso aquela que ela própria se torna racional”. ADORNO, Theodor. Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Tradução de Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2008, p. 9.
[2] LÖWY, Michael. Da Grande Lógica de Hegel à estação finlandesa de Petrogrado. Em: Método dialético e teoria política. São Paulo / Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
[3] “[Mas em que consiste, em suma, a essência do revisionismo? Em primeiro lugar, na tentativa de superar a ‘unilateralidade’ do materialismo histórico, que considera todos os fenômenos histórico-sociais exclusivamente do ponto de vista classista do proletariado. Já o revisionismo escolhe o ponto de vista dos interesses de ‘toda a sociedade’. Mas como esses interesses gerais, considerados concretamente, não existem, e como o que poderia mostrar isso é apenas um resultado momentâneo da mútua influência que as classes em luta exercem umas sobre as outras, o revisionista apreende o resultado sempre cambiante do processo histórico como um ponto de partida metodológico invariável. Com isso, ele inverte a ordem das coisas também no plano teórico.] Do ponto de vista prático, sua essência é, dado seu ponto de partida teórico, um compromisso constante e necessário. O revisionismo é sempre eclético, isto é, procura já teoricamente abafar e neutralizar as oposições entre as classes, convertendo a unidade que só existe em sua cabeça num critério para a avaliação dos acontecimentos.
Em segundo lugar, o revisionista condena por essa razão a dialética. Pois a dialética nada mais é do que a expressão conceitual do fato de que o desenvolvimento da sociedade se move, na verdade, por contradições, que essas contradições (as contradições entre as classes, a essência antagonista de seu ser econômico etc.) são a base e o núcleo de todo acontecimento [e que a ‘unidade’ da sociedade, na medida em que repousa sobre a divisão de classes, é apenas um conceito abstrato, um resultado (sempre provisório) da ação recíproca dessas contradições.] Mas como a dialética, como método, não é mais do que a formulação teórica do fato social de que a sociedade se desenvolve contraditoriamente, por meio da superação de contradições sucessivas, portanto de modo revolucionário, a condenação teórica da dialética significa necessariamente um rompimento de princípio com todo comportamento revolucionário.” LUKÁCS, György. Lênin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento. Tradução de Rubens Enderle; apresentação e notas de Miguel Vedda. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 72-73.
[4] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Em: Obras escolhidas. Vol. 1 - Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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