Contra a privatização do mundo
Daniel Bensaïd
Tradução de Marcus Vinícius Branco
Revisão de Pedro Barbosa
Em fevereiro de 2009, o militante e filósofo Daniel Bensaïd se perguntava – baseando-se em Marx – se a saúde poderia ter um preço, assim como o conhecimento, e se existiria um direito incondicional à moradia, à educação etc. Colocou assim uma série de questões fundamentais sobre o processo de privatização do mundo em curso, ou seja, sobre a destruição neoliberal dos serviços públicos e da lógica do comum da qual são portadores; uma destruição da qual vemos todas as consequências dramáticas nestes tempos de Covid-19.
Ao reduzir o valor de mercado [valeur marchande] de qualquer riqueza, de qualquer produto ou de qualquer serviço ao tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção, a lei do mercado visa tornar comensurável o incomensurável, atribuir um preço monetário àquilo que é dificilmente quantificável. Enquanto equivalente geral, o dinheiro teria assim o poder de metamorfosear tudo. Agente de uma tradução universal, ele “confunde e troca tudo, é o mundo às avessas, a conversão e a confusão de todas as qualidades gerais e humanas” [1]. A mercantilização generalizada visa, de fato, atribuir um preço àquilo que não tem:
“Esse esforço para conferir um preço a tudo aquilo que pode ser trocado cresceu consideravelmente, observa Marcel Hénaff. Escorregamos na direção de uma concepção de mercantilização sem limites: tudo pode ser valorado no mercado, onde tudo pode ser vendido, inclusive o invendável” [2].
O serviço público pode, ou deveria, ser gratuito, mas professores e enfermeiros devem se alimentar e se vestir. Questão atual: a que corresponde então o salário de um professor-pesquisador universitário? Ele não vende um produto (um saber-mercadoria), mas recebe uma remuneração financeira por meio da repartição [péréquation] fiscal baseada no tempo de trabalho socialmente necessário para a produção e reprodução de sua força de trabalho (tempo de formação incluído). Trata-se então apenas do tempo gasto em seu laboratório ou do tempo despendido em frente à tela de seu computador (cronometrado por um relógio integrado)? Ele para de pensar quando pega o metrô ou faz sua corrida? Essas questões são ainda mais espinhosas dado que a produção de conhecimento é altamente socializada, dificilmente individualizável, e envolve uma grande quantidade de trabalho morto. No entanto, as reformas em curso tendem a transformar nosso professor-pesquisador em um vendedor de serviços mercantis. Agora, ele deverá vender ideias ou conhecimentos cujos procedimentos de avaliação (como a bibliometria quantitativa) devem mensurar o valor de mercado. Mas, “entre o dinheiro e o saber, não há medida comum”, disse sabiamente Aristóteles.
A crise atual é uma crise histórica – econômica, social, ecológica – da lei do valor. A medida de todas as coisas pelo tempo de trabalho abstrato se tornou, como previsto por Marx em seus Manuscritos de 1857, uma medida “miserável” das relações sociais. Porém, “não se pode gerar o que não se sabe mensurar”, afirma Pavan Sukhdev, antigo diretor do Deutsche Bank de Mumbai, à Comissão da União Europeia que demandou um relatório que “fornecesse uma bússola para os dirigentes deste mundo”, “atribuindo muito rapidamente um valor econômico aos serviços prestados pela natureza” [3]! Mensurar toda a riqueza material, social e cultural, tendo somente como critério o tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção, se torna, todavia, algo cada vez mais problemático devido a uma crescente socialização do trabalho e a uma incorporação massiva de trabalho intelectual a este trabalho socializado.
O tempo longo da ecologia decididamente não é o tempo curto das cotações da bolsa! Atribuir “um valor econômico” (monetário) aos serviços da natureza esbarra no problema espinhoso de estabelecer um denominador comum aos recursos naturais, aos serviços voltados às pessoas, aos bens materiais, à qualidade do ar e da água potável, etc. Seria necessário um outro critério que não o tempo de trabalho e um outro instrumento de medida que não o mercado, capaz de avaliar a qualidade e as contrapartidas à longo prazo de ganhos imediatos. Somente uma democracia social seria capaz de adequar os meios às necessidades, de considerar a longa e lenta temporalidade dos ciclos naturais e de estabelecer os termos das escolhas sociais integrando sua dimensão ecológica.
A desmercantilização das relações sociais não pode então ser reduzida a uma simples oposição entre o que é pago e o que é gratuito. Imersa em uma economia de mercado concorrencial, a gratuidade pode também se revelar perversa e servir como máquina de guerra contra uma produção paga de qualidade. Isto é ilustrado pela multiplicação de jornais gratuitos, em detrimento de um trabalho de informação e de investigação que têm o seu custo.
Pode-se certamente imaginar e experimentar domínios de troca direta – não monetária – de bens de consumo ou de serviços personalizados. Mas este “paradigma da doação” [paradigme du don], como procedimento de reconhecimento mútuo, não pode ser generalizado, exceto ao se conceber um retorno a uma economia autárquica de troca. No entanto, toda sociedade de ampla troca e de divisão social do trabalho complexa exige uma contabilidade e um modo de redistribuição das riquezas produzidas.
A questão central da desmercantilização é, consequentemente, a das formas de apropriação e das relações de propriedade, onde a gratuidade (de acesso aos serviços públicos ou aos bens comuns) é apenas um aspecto. É a privatização generalizada do mundo – isto é, não somente de produtos e serviços, mas também dos saberes, da vida, do espaço, da violência – que faz de tudo uma mercadoria vendável. Assistimos assim, em uma escala muito maior, a um fenômeno comparável ao que ocorreu no início do século XIX, com uma ofensiva contínua contra os direitos consuetudinários dos pobres: privatização e mercantilização de bens comuns e destruição metódica das solidariedades tradicionais (familiares e aldeãs [villageoises] no passado, dos sistemas de proteção social hoje) [4].
Nesse sentido, as controvérsias acerca da propriedade intelectual são exemplares:
“A menor ideia capaz de gerar uma atividade é precificada, como no mundo do espetáculo, onde não há nenhuma intuição ou projeto que não seja imediatamente coberto por direitos autorais. Corrida pela apropriação, pelo lucro. Não se compartilha: se captura, se apropria e se negocia. Talvez chegue o momento em que será impossível fazer qualquer declaração sem descobrir que ela estava devidamente protegida e submetida ao direito de propriedade” [5].
Com a adoção em 1994 do acordo Trips (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) [Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio] no contexto dos acordos da Rodada Uruguai (donde surgiu a Organização Mundial do Comércio), os governos dos principais países industrializados conseguiram impor a observância mundial das patentes. Anteriormente, além de sua validade não ser mundialmente reconhecida, cinquenta países destituíam claramente o patenteamento de substância e só reconheciam patentes sobre procedimentos de fabricação.
Desde a década de 1970, testemunhamos uma absolutização dos direitos de plena propriedade, a uma formidável apropriação privada pelas multinacionais do conhecimento e de produções intelectuais e artísticas em geral. Diante da possibilidade de disponibilização de softwares a usuários, o empréstimo gratuito realizado por bibliotecas começou a ser questionado a partir do fim da década de 1980. Desde então, com a informação se tornando uma nova forma de capital, o número de patentes depositadas a cada ano explodiu (156.000 em 2007). Por conta própria, a Monsanto, a Bayer e a Basf solicitaram 532 patentes sobre genes de resistência à seca. Empresas denominadas “trolls” adquirem portfólios de patentes a fim de instaurar na justiça processos por falsificação contra produtores cuja atividade utiliza um conjunto de conhecimentos inextricavelmente combinado. Nova forma de cercamento contra o livre acesso ao saber, esta corrida de patentes gera assim uma verdadeira “bolha de patentes”.
Essa extensão dos direitos de patente autoriza o patenteamento de variedades de plantas cultivadas ou animais de criação, depois de substâncias de um ser vivo, ao mesmo tempo em que obscurece a distinção entre invenção e descoberta, abrindo caminho para a pilhagem neoimperialista por meio da apropriação de saberes zoológicos ou botânicos tradicionais. O grave não é que o patenteamento de sequências de DNA constituiria um atentado à grande Criação divina, mas que a elucidação de um fenômeno natural possa vir a ser objeto de um direito de propriedade. A descrição de uma sequência genética é um saber e não um fazer. Mas patentes e direitos autorais tinham inicialmente como contrapartida uma obrigação de divulgação pública do conhecimento em questão. Esta regra foi contornada diversas vezes (especialmente em nome do segredo militar), mas Lavoisier não patenteou o oxigênio, Einstein não patenteou a teoria da relatividade, Watson e Crick não patentearam a dupla hélice do DNA. Enquanto, desde o século XVII, a divulgação completa tenha favorecido as revoluções científicas e técnicas, a parcela dos resultados colocada em domínio público está diminuindo atualmente, ao passo que aumenta a parcela confiscada pela patente para ser vendida ou para obter renda.
Em 2008, a Microsoft anunciou a disponibilização online e gratuita de dados relativos aos seus principais softwares, autorizando sua utilização gratuita para desenvolvimentos com fins não comerciais. Não se tratava, apressou-se em especificar Marc Mossé, diretor de assuntos jurídicos, em entrevista à Médiapart, de um questionamento da propriedade intelectual, mas apenas de uma “demonstração de que a propriedade intelectual pode ser dinâmica”. Diante da concorrência com os softwares livres, as empresas de softwares comerciais como a Microsoft foram obrigadas a se adaptar parcialmente a essa lógica de gratuidade, cujo fundamento é a crescente contradição entre a apropriação privada dos bens comuns e a socialização do trabalho intelectual que começa com a prática da linguagem.
No passado, a grilagem de terras privadas era defendida em nome da produtividade agrária, cujo aumento supostamente erradicaria a escassez alimentar e a fome. Testemunhamos hoje uma nova onda de cercamentos, por sua vez justificada pela corrida à inovação e pela urgência alimentar mundial. No entanto, o uso da terra é “mutuamente exclusivo” (do que um se apropria, o outro não pode usar), enquanto o uso de conhecimentos e saberes não possui rival: o bem não se encerra no uso que dele é feito, trate-se de uma sequência genética ou de uma imagem digitalizada. É por isso que, do monge copista ao e-mail, passando pela impressão ou pela fotocópia, os custos de reprodução continuam diminuindo. E é por esse motivo que atualmente se invoca, para justificar a apropriação privada, o estímulo à pesquisa ao invés do uso do produto.
Freando a difusão da inovação e seu enriquecimento, a privatização contradiz as presunções do discurso liberal acerca dos benefícios da concorrência. Por outro lado, o princípio do software livre indica, à sua maneia, o caráter fortemente cooperativo do trabalho social por ele cristalizado. O monopólio do proprietário é contestado não mais em nome das virtudes de inovação da concorrência, como fazem os liberais, mas enquanto entrave à livre cooperação. A ambivalência do termo em inglês free, aplicado a um software, combina assim gratuidade e liberdade.
Como na época dos cercamentos, os expropriadores atuais alegam proteger os recursos naturais e promover a inovação. Podemos lhes endereçar a resposta já dada, em 1525, pela Carta dos Camponeses Alemães Insurgentes:
“Nossos senhores se apropriaram da floresta, e se o homem pobre precisa de alguma coisa, tem de comprá-la pelo dobro do preço. Nossa opinião é de que toda madeira deve ser propriedade de toda a comunidade, e que deve ser praticamente gratuito para qualquer um da comunidade retirar madeira da floresta sem pagar por ela. Deve-se apenas instruir uma comissão eleita pela comunidade para esse fim. Assim, se impedirá a exploração” [6].
– fevereiro de 2009
Contribuição ao livro coletivo organizado por Paul Ariès, Viv(r)e la gratuité [“Viva(er) a gratuidade”], publicado pela éditions Golias, 2009.
Referências
1. Marx, Manuscrits de 1844.
2. Marcel Hénaff, “Comment interpréter le don”, in Esprit, fevereiro de 2002. Marcel Hénaff é conhecido por ser o autor de Le Prix de la vérité. Le don, l’argent, la philosophie, Paris, Seuil, 2002.
3. Libération, 5 de janeiro de 2009.
4. Daniel Bensaïd, Les Dépossédés. Karl Marx, les voleurs de bois et le droit des pauvres, Paris, La Fabrique, 2006. [Há versão em português para esses ensaios, que estão publicados em Karl Marx, Os despossuídos – debates sobre a lei referente ao furto de madeira, Boitempo]
5. Marcel Hénaff, op. cit.
6. Citação por K. Kautsky, La Question agraire, Paris, 1900, p. 25.
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