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Antecipação e esperança como categorias do materialismo histórico (Ernest Mandel)


Antecipação e esperança como categorias do materialismo histórico

(1978)

Ernest Mandel

Tradução de Nicholas Yamauchi Cardoso

Revisão de Pedro Rodrigues Naccarato



O presente texto foi a contribuição de Ernest Mandel a um colóquio comemorativo de 1978 para o filósofo marxista Ernst Bloch (1885 – 1977) e foi primeiramente publicado em 1980 [1]. Neste artigo Mandel usa categorias desenvolvidas por Bloch, como "ainda-não" e "realmente possível", para examinar a necessidade de incorporar noções de futuro ao pensamento socialista.


Para Bloch, deve-se incluir na compreensão do mundo um entendimento de seu potencial latente. O mundo tem uma tendência a algo, caracterizada pelo esforço da humanidade em direção a um mundo livre de exploração e miséria, em direção à utopia. O ainda-não é uma antecipação do seu objetivo e se manifesta de diferentes formas; “o ainda-não-consciente por inteiro é como uma representação psicológica do que ainda-não-veio-a-ser em uma era e em seu mundo, em frente ao mundo” [2]. O realmente possível é a latência não ilusória em direção ao que Bloch chamou de “utopia concreta” do socialismo; “Esse caminho é e continua sendo o do socialismo, é a prática da utopia concreta. Tudo que não é ilusório e realmente possível sobre as imagens de esperança conduzem para Marx” [3].


Antecipação e esperança como categorias do materialismo histórico


Do ponto de vista marxista, o trabalho e a habilidade de comunicação avançada são os dois aspectos mais importantes do ser humano como um ser social. O trabalho social é impossível sem comunicação humana avançada e interpessoal, que inclua a habilidade de usar ferramentas linguísticas estruturadas para formar conceitos e para desenvolver consciência. Como materialistas, sabemos que a habilidade mais que rudimentar de comunicação - que também existe nos animais - é baseada na necessidade de produção social e de subsistência. A conexão indissociável entre o trabalho e a comunicação leva, entre outras coisas, ao fato de que, como formulado por Friedrich Engels:


“Nós simplesmente não conseguimos evitar o fato de que tudo que faz os homens agirem precisa encontrar seu caminho através de seus cérebros – até mesmo comer e beber, que começam como consequência da sensação de fome ou sede transmitidas pelo cérebro, e termina como resultado da sensação de satisfação igualmente transmitida através do cérebro” [4].


A este respeito, Marx expressou-se de forma bem clara no sétimo capítulo do primeiro volume de O Capital: o trabalho é uma atividade especificamente humana, é uma atividade consciente em um duplo sentido. Marx não apenas pressupõe relações conscientemente articuladas entre pessoas: produção social e o intercâmbio de valores de uso, de bens materiais necessários para a manutenção e reprodução da vida material, vão lado a lado com a produção e intercâmbio de sons, palavras e conceitos socialmente entendidos. Além disso, o trabalho humano tem a característica de requerer projetos mentais antecipatórios na consciência dos produtores como uma condição para sua realização:


“Nós pressupomos o trabalho de forma que ele se qualifica como algo exclusivamente humano. Uma aranha conduz operações que se assemelham com a de um tecelão, e a abelha envergonha muitos arquitetos na construção de suas células. Mas o que distingue o pior dos arquitetos das abelhas é isto, que o arquiteto levanta a estrutura em sua imaginação antes de a erguer na realidade. Ao final de todo processo de trabalho, nós obtemos um resultado que já existia de início na imaginação do trabalhador” [5].


A habilidade de imaginar


O produto do trabalho como projeto de trabalho, como uma realidade material que ainda não foi realizada, é assim pré-requisito para sua própria realização. A habilidade humana de antecipar e de imaginar é indissoluvelmente ligada à sua habilidade de desempenhar trabalho social. O homo faber pode ser homo faber apenas porque o ser humano é ao mesmo tempo homo imaginosus.


A habilidade humana de formar conceitos, de abstrair, de imaginar e de elaborar projetos, isto é, a habilidade de antecipar, está assim estreitamente ligada às condições de vida materiais e sociais. Até os mais elementares e certamente os mais complicados conceitos e ideias, não são os produtos “puros” da imaginação e do trabalho mental, totalmente independentes e desvinculados da produção material. Eles emergem, em última instância, como processamento mental – processamento pelo cérebro humano – de elementos da experiência da vida material. Logo, eles são inseparáveis do envolvimento do indivíduo na natureza e na sociedade.


O metabolismo entre natureza e sociedade, isso é o fundamento de seu envolvimento, a necessidade material para produzir e reproduzir a vida em que esse metabolismo surge. Ele supre um propósito humano no trabalho, como Marx coloca. Ou na expressão ampla colocada por Engels:


“As influências do mundo externo sobre o homem se expressam em seu cérebro, são refletidas nele como sentimentos, impulsos, vontades - em suma, como “tendências ideais” [6].


Projetos de trabalho, que emergem na mente humana antes de serem realizados materialmente, são, em última instância, produtos da realidade material, mesmo quando ainda não foram realizados materialmente. Até a produção de conceitos e do pensamento humano nunca conseguem ser completamente desvinculados dos processos na natureza e na sociedade, que os precedem e os acompanham, ainda que não sejam meras imagens mecanicamente espelhadas desses processos. Antes, consistem em elementos que correspondem a processos materiais, mas que são criativamente combinados e reprocessados pela mente humana. Todavia, permanecem objetivamente determinados por esses processos.


A base material da habilidade humana de antecipar, imaginar e elaborar projetos que ainda não foram realizados é baseada no instinto de autopreservação, isto é, no correlato instintivo e inconsciente da compulsão para produzir e reproduzir a vida material à qual os humanos estão sujeitos. A maioria das manifestações dessa antecipação são medo e esperança.


Contudo, enquanto o medo pode ser puramente instintivo – nem sempre e nem necessariamente é, mas pode ser, e é assim um dos mais importantes instintos nos animais –, uma esperança puramente instintiva é impossível. Logo, Ernst Bloch corretamente enfatizou que, mesmo nas mais elementares expressões instintivas, a esperança já é mais que puro instinto, ela já é a capacidade para imaginação e para antecipação ideal. Assim, a esperança é o instinto humano par excellence. Em conjunto com o trabalho social e a habilidade para formar conceitos e consciência, ela pertence ao núcleo duro e imutável de nossa especificidade antropológica. O homo faber como homo imaginosus é humano porque a humanidade é homo sperans.


Esperança realmente possível


O projeto de trabalho como produto de necessidade e demandas materiais é sujeito a condições materiais para sua realização. Nem todos os produtos ideais de nosso cérebro encaminham para produção material real. Nem todo projeto mental é realmente realizável. Nem toda esperança antecipatória se torna realidade. Apenas se realizam os projetos laborais que cumprem tanto as condições objetivas quanto as condições subjetivas para sua realização. Nem toda esperança é uma esperança “realmente possível”. Ernst Bloch faz uma clara distinção entre esperança realmente possível e o sonho ilusório [Wishful dream, como na expressão wishful thinking – N.T.] [7]. É precisamente a habilidade do trabalho mental de combinar conceitos, que apenas em última instância corresponde ao emergir de experiências de vida, nas mais divergentes direções. Essas combinações não necessariamente refletem uma realidade material existente. Isso leva à distinção entre a antecipação do realmente possível e o sonho ilusório.


Mas o realmente possível é, por sua vez, apenas parcialmente pré-determinado. Isso porque os homens produzem sua própria vida da mesma que forma que fazem sua própria história. Assim, a dimensão ativa de nossa especificidade antropológica define um campo intermediário, uma zona de transição entre o que é materialmente, socialmente e historicamente impossível e o que é materialmente, socialmente e historicamente possível. Esse campo intermediário inclui todas as mudanças na natureza e na sociedade que já são materialmente possíveis, mas cujas realizações dependem de uma prática humana concreta determinada. Essa pratica não emerge automaticamente da, e nem simultaneamente à, existência dessa possibilidade material.


Por outro lado, as fronteiras do que é materialmente possível não são previamente definidas em todas as direções de maneira precisa. O quadro geral é, em qualquer caso, uma condição dada. Mas existem inúmeras variantes e possibilidades internas a esse quadro.


Assim que o modo de produção capitalista se tornou dominante, tanto o surgimento da luta de classes proletária como, ao longo prazo, o desenvolvimento do movimento operário moderno, eram inevitáveis. Mas a forma concreta específica em que o modo capitalista de produção se desenvolveu, por exemplo na Inglaterra, França, Alemanha e nos EUA, seus antecedentes históricos concretos, significando sua história político-social e a história nesses quatro países, as peculiaridades nacionais no surgimento e desenvolvimento do próprio proletariado em cada um desses países, as peculiaridades do movimento ideológico e político que procederam, acompanharam e sucederam a conquista do poder político pela burguesia nesses países: tudo isso teve uma profunda influência no desenvolvimento concreto da luta de classes proletária e no movimento socialista nos 50 anos seguintes. Como resultado, os movimentos operários nesses quatro países tomaram formas bem diferentes durante um longo período da história. Mesmo assim, o realmente possível se conteve dentro do quadro geral de ascensão, desenvolvimento, apogeu e declínio do modo de produção capitalista e concomitante ao aprofundamento de suas contradições internas.


Antecipação


Consequentemente, a realidade do materialismo-histórico é sempre uma totalidade aberta, assim sendo uma totalidade incompleta, que comporta diversas formas possíveis de desenvolvimento. Algumas dessas possibilidades serão realizadas, outras não. Nada é mais estranho ao marxismo que o fatalismo histórico ou o determinismo mecânico e economicista.


Em qualquer modo de produção, a luta de classes pode resultar na vitória da classe revolucionária ou na ruína mútua das classes competidoras: Marx e Engels frequentemente repetem isso. O capitalismo não leva à vitória inevitável do socialismo, mas apenas para o dilema: ou a vitória do socialismo, ou a regressão à barbárie. Como a matéria não é estática e imóvel, mas está em constante movimento; como a sociedade humana está por sua vez constantemente mudando; como o objeto do pensamento e da prática humana respondem a processos constantes de desenvolvimento e alteração da natureza e da sociedade; como a prática humana intervém por si nesses processos, nós apenas conseguimos nos aproximar de uma compreensão completa dessa totalidade. Em nossa análise, o “ainda-não-veio-a-ser”, mas realmente possível deve ser incluído, assim como o já existente e o que potencialmente pode desaparecer.


Reconhecer a realidade como uma totalidade contraditória - como uma totalidade em desenvolvimento, movida por todas as suas contradições internas - significa incorporar em seu conhecimento todos os possíveis desenvolvimentos dessa totalidade. Logo, antecipação não é apenas uma categoria antropológica, mas também epistemológica e científica, é uma categoria do materialismo histórico, como escreve Ernst Bloch:


“Precisamente os extremos que já foram previamente mantidos os mais distantes quanto possível: futuro e natureza, antecipação e matéria – ressoam juntas no fundamento do materialismo histórico-dialético. Sem matéria, sem base de antecipação (real); sem antecipação (real), nenhum horizonte de matéria é determinável [...] O realmente possível começa com a semente em que o porvir é inerente” [8].


Agora podemos descrever a função produtiva do fator subjetivo, em conjunto com a sua força impulsionadora instintiva - mais precisamente, a esperança.


Se quero realizar um projeto de trabalho, devo subordinar minha vontade a esse objetivo, como diz Marx no sétimo capítulo do primeiro volume de O Capital [9]. É claro que essa subordinação é estimulada por uma atitude subjetiva em direção ao projeto, atitude esta que não é neutra, mas que consiste no desejo e esperança de alcançá-lo. Os incentivos podem ser bem diversos. Eles podem ir do medo de punição ao desejo de recompensa, do desejo individual - da necessidade consciente - à adesão ao grupo social ou comunidade que consome o produto do trabalho, e pode mesmo ser puro altruísmo. Mas a produção é sempre estimulada pelo desejo e pela esperança do sucesso de sua realização. Quando não há tal desejo e esperança, ou quando até o oposto é verdade, a realização do projeto se torna consideravelmente mais difícil, isso quer dizer, o produtor vai agir de forma indiferente ou até hostil frente à produção. Produtores podem até mesmo sabotá-la continuamente (lembre-se da atitude de escravos ou trabalhadores forçados em determinadas circunstâncias). Produtores que são totalmente privados de qualquer esperança são ruins, isto é, produtores improdutivos. Essa lei foi confirmada durante toda a história da sociedade humana.


Guilherme, o Taciturno


O que se aplica para práxis humana elementar se aplica ainda mais para a práxis social totalizante que tem como objetivo a transformação da própria sociedade. Uma figura histórica e transicional como o líder semifeudal da grande revolução burguesa holandesa, Guilherme, o Taciturno, foi capaz de cunhar a bela e estoica palavra de ordem das pequenas minorias conscientemente revolucionárias: “Point n’est besoin d’espérer pour entreprendre, ni de réussir pour persévérer” (“Não é preciso esperança para agir, nem sucesso para perseverar”). Entretanto, grandes massas de pessoas, e ainda classes sociais inteiras, não conseguem ser movidas para agir por tal motivação. Suas atividades são sempre imediatamente e diretamente orientadas no presente. Uma práxis classista queira mudar a sociedade é, em última instância, determinada por interesses de classe, mas ela cresce em escopo e efetividade quando é acompanhada por desejos e expectativas, que transmitem esses interesses em uma forma que é imediatamente compreensível e acessível para as massas.


A esperança de abolir a exploração e a opressão, a desigualdade e a falta de liberdade, em outras palavras, a esperança de uma sociedade sem classes acompanhou a luta por libertação do proletariado moderno durante todos os estágios do crescimento tempestuoso do movimento dos trabalhadores. Ela lhe deu uma energia e uma força motriz, que não conseguem surgir exclusivamente da defesa dos interesses materiais cotidianos. Em todas as eras e países em que o movimento dos trabalhadores foi confinado a essa defesa, essa força motriz foi limitada ou até mesmo ausente, apesar do fato inegável de que na sociedade burguesa essa esperança permanece inseparável da defesa dos interesses materiais cotidianos da classe operária, sem os quais a luta por emancipação se evapora em mera fantasia.


Mas em conexão estreita com a esperança, especificamente para o proletariado moderno, de um fim da exploração capitalista através da emancipação socialista da classe operária como veículo para a emancipação da sociedade como um todo, está uma antiga e histórica antecipação.


Como seres produtores e comunicativos, os humanos são cooperativos por natureza. O salto de uma sociedade sem classes para uma dividida em antagonismo de classes sociais, que começou cerca de 10.000 anos atrás, causou um tremendo choque traumático no sentimento e no pensamento humanos, precisamente porque correspondeu muito pouco a nossa natureza cooperativa. Essa é a razão da história da humanidade não ser apenas a história da luta de classes, mas também da história de incontáveis expectativas, projetos, antecipações, lamentações, poemas, histórias, debates filosóficos, planos políticos e batalhas, que giram em torno das questões: Como podemos retornar à “era de ouro” da sociedade sem classes? Qual é a origem da desigualdade social? Como essa desigualdade social pode ser eliminada?

Profetas e revolucionários


Filósofos gregos e políticos revolucionários romanos, profetas judeus e os primeiros padres da igreja cristã, os impetuosos precursores e representantes da Reforma, os primeiros “socialistas utópicos” e os representantes dos movimentos mais radicais nas grandes sublevações burguesas; todos eles levantaram esse problema, cada um na forma particular que corresponde a sua era, sociedade e classe. Entretanto, o tremendo poder resultante da continuidade desse problema, e o imanente desenvolvimento autocrítico como uma resposta para ele, pode dificilmente ser exagerado. O poeta austríaco Nikolaus Lenau resumiu essa continuidade sinteticamente e simbolicamente no último quarteto de seu poema épico Die Albigensern:


“Den Albigensern folgten die Waldenser und zahlten blutig heim, was jene litten; nach Huss und Ziska kommen Luther, Hütten, die Wiedertäufer die Cevennenreiter, die Stürmer der Bastille, und so weiter” [10].


Não há dúvida de que a maioria desses defensores de uma sociedade sem classes que acabaram de ser mencionados foram “utópicos”, no sentido de que não tiveram uma ideia precisa das pré-condições materiais e sociais para a realização de seus projetos cheios de esperança. Sem dúvidas, por outro lado, todas as tentativas de práticas políticas para construir uma sociedade sem classes falharam, visto que as condições materiais e sociais para tal não haviam ainda amadurecido. Mas isso não significa, de nenhuma forma, que todos os esforços feitos por esses pensadores e lutadores foram inúteis ou até danosos. O oposto é verdade.


Os “socialistas utópicos” prepararam, promoveram e aceleraram o pensamento, a teoria, a ciência e a prática dos movimentos modernos dos trabalhadores ao expandirem tremendamente os horizontes do que se pensava ser possível. Ao fazer isso, eles também expandiram o conhecimento da própria realidade social, pois tal conhecimento demanda uma atitude crítica rigorosa frente a tudo aquilo que existe, e que deve ser considerado transitório como um todo. E é precisamente a integração na análise social do que ainda não existe, no ponto em que isso se torna de um pensamento ilusório em um futuro realmente possível, isso dá à crítica social um alcance muito mais amplo.


Não apenas o socialismo científico, mas também a economia política clássica inglesa, a filosofia clássica alemã e a historiografia sociológica clássica francesa aprenderam muito mais dos socialistas “utópicos” do que alguém poderia assumir em princípio. Mesmo sem um trabalho prévio dos “socialistas utópicos”, eles muito provavelmente teriam atingido seus resultados, mas mais lentamente, com mais dificuldade e com mais contradições. Se, historicamente, o socialismo científico aparece como a suprassunção do socialismo utópico, essa é uma suprassunção no sentido hegeliano, o que quer dizer que ele preserva e reproduz seus elementos mais férteis. E isso pressupõe, em qualquer caso, uma existência prévia do socialismo utópico, daquela antiga esperança de uma sociedade sem classes como uma fase necessária e fertilizante na luta de emancipação de uma humanidade labutadora.


Quando Ernst Bloch escreve: “A tendência dialético-histórica da ciência marxista é, portanto, a ciência futura mediadora da realidade mais a possibilidade objetivamente real interna a ela; tudo isso pelo propósito da ação. [...] Apenas o horizonte do futuro, que o marxismo ocupa, com o do passado como a antessala, fornece para a realidade sua dimensão real”, ele expressa a dupla verdade [11].


Esperança de realização


Conhecimento da realidade é sempre conhecimento de suas leis de movimento, de suas leis de desenvolvimento. A grandeza de O Capital de Marx está precisamente na descoberta das leis de movimento a longo prazo do modo de produção capitalista, leis que apenas se desdobraram em todas as suas consequências após a morte de Karl Marx. O Capital mesmo, ao contrário do que costuma dizer uma crítica comum (e vulgar), é muito mais uma obra do século XX do que uma obra do século XIX.


De outro lado, a mudança da realidade – a realização do programa da décima primeira tese sobre Feuerbach, o momento efetivo do nascimento do marxismo – pressupõe não apenas uma orientação em direção ao futuro, não apenas uma orientação para o ainda-não que já é realmente possível, mas também esperança de realização do realmente possível. Isso demanda o exercício de todas as forças mentais, da vontade e dos sentimentos em direção ao objetivo de realização daquele realmente possível, mas que ainda-não-veio-a-ser, e o maior exercício do indivíduo revolucionário entre a realidade existente e a possibilidade, imbuída de esperança, que há de ser realizada.


Alguém que não consegue mais se sustentar com os dois pés sobre o chão da realidade e perdeu o entendimento das condições materiais, sociais, objetivas e subjetivas para a realização do projeto revolucionário não é o único tipo de revolucionário ruim. Revolucionários ruins também são aqueles que se tornaram tão presos a realidade existente, que estão tão absorvidos na rotina diária, que eles perderam o entendimento, a premonição e a sensibilidade de uma repentina, inesperada e radical reviravolta nas relações de forças e nas atividades da classe revolucionária. Tais pessoas sacrificaram a orientação atenta em direção ao futuro por uma limitada agitação cotidiana – business as usual – como sempre, os negócios –, ou como se diz na linguagem do movimento dos trabalhadores alemão: die alte bewährte Taktik [a velha tática comprovada] [12] – e assim serão irremediavelmente surpreendidos, perplexos e paralisados, pelas repentinas erupções da luta revolucionária das massas. Também nesse sentido o conhecimento completo da realidade não é possível se não for ampliado pelo horizonte do futuro.


Depois de agosto de 1914, Lenin, Rosa Luxemburgo e um punhado de seus amigos internacionalistas não apenas articularam uma aversão moral frente à capitulação da social-democracia oficial pela guerra imperialista. Eles também julgaram essa capitulação sob a luz de uma análise que, mesmo falando do ainda não realizado, era científica (e não somente um mero desejo), análise que fundamentava a perspectiva que previa uma inevitável intensificação da luta de classes revolucionária resultaria da guerra mundial. Essa luta resultou de uma intensificação inevitável das contradições econômicas, sociais, políticas e ideológicas do modo de produção capitalista, contradições de que a guerra era tanto a expressão quanto uma força motriz. Os eventos do período de 1917-1919 provaram que eles tinham razão. Mas os eventos que se seguiram ao fim da guerra mundial adicionaram uma nova dimensão para a luta de tendências de 1914-1915 no movimento proletário internacional. Sem a antecipação de tais eventos, sem essa perspectiva, a capitulação de 1914 não pode ser entendida, explicada e julgada em sua totalidade.


A arte da previsão


Se não há perspectivas revolucionárias, não há política revolucionária legítima e, portanto, não há prática revolucionária real possível – ao menos não dentro do quadro do socialismo científico. Em qualquer caso, as perspectivas devem ser baseadas na análise correta da realidade e não em fantasias, devem partir de uma análise das contradições socioeconômicas reais e revelar suas dinâmicas, devem examinar se, e porque, essas contradições estão diminuindo ou, pelo contrário, se intensificando, e isso sem partir de um desenvolvimento abstrato e fantasiado.


As perspectivas significam uma relação com o futuro, isto é, antecipação, esperança e medo são aspectos decisivos para qualquer atividade política, seja ela proletária, pequeno-burguesa ou burguesa. Depois de haver perdido seu caráter revolucionário, a burguesia definiu a política como “a arte do possível”. O austromarxista Otto Bauer mudou esse dito ao definir a política como “a arte da previsão”. Isso é sem dúvidas um passo além do cidadão de mente estreita, que pelo conservadorismo social teme qualquer grande mudança e que deseja limitar a política a pequenos passos sem importância. Mas o dito de Bauer também revela a dimensão passiva e fatalista do austromarxismo: na “arte da previsão”, o elemento ativo e transformativo da política está totalmente ausente. Para o marxismo, a política é a arte de deslocar ao máximo as fronteiras do possível para o benefício dos interesses da classe proletária (e para o progresso da humanidade como um todo), tendo como base a perspectiva científica do que é objetivamente e subjetivamente possível caso a mobilização e a iniciativa das amplas massas sejam expandidas o máximo possível e a prática do partido revolucionário se mantenha totalmente integrada nessa perspectiva enquanto um elemento constitutivo do desenvolvimento da realidade.


A esperança pela revolução, assim como o medo da revolução, teve um papel decisivo nas divisões internas ao movimento internacional dos trabalhadores depois de agosto de 1914. Inicialmente, os social-democratas de direita justificaram sua capitulação pela guerra imperialista argumentando que o contato com as massas não deve ser perdido e de que essas massas, afinal, estavam entusiasmadas com a guerra. Entretanto, alguns anos depois, quando em países como Rússia, Alemanha, Áustria, Hungria e Itália, essas mesmas massas se voltaram entusiasmadamente contra a guerra e em direção à revolução, o argumento repentinamente mudou. Agora, descobriu-se repentinamente a necessidade de “defender incondicionalmente os princípios”, “o senso de responsabilidade” e “a coragem de ser impopular”. A conclusão que pode ser tirada disso é que a adaptação automática do “movimento de massas” não foi a motivação real para a capitulação de agosto de 1914. E sem dúvidas, nos anos 1917-1920, o medo da revolução; o medo do risco de perder as conquistas duramente conseguidas; o medo de saltar no desconhecido; o medo de romper com a rotina diária, exerceu um papel psicológico decisivo. Como marxistas, nós devemos conectar esse medo com os interesses sociais e materiais do estrato conservador do movimento dos trabalhadores.


No sentido oposto, a esperança de revolução levantou os ânimos a ala radical da classe operária e do movimento dos trabalhadores com a mesma rapidez com que os desenvolvimentos revolucionários começaram a tomar forma e se tornarem realidade. A antecipação se converteu em uma experiência, o projeto político se tornou o objetivo de ação da massa política.


Nós estamos vendo algo semelhante acontecer com o assim chamado eurocomunismo. Nesse fenômeno, muitas tendências se cruzam. Para explicar o eurocomunismo, nós devemos levar em conta inúmeros processos históricos, sociais, econômicos, políticos, ideológicos (entre outras coisas, a lógica interna do revisionismo teórico) e até psicológicos (por exemplo, o choque traumático causado pela experiência pessoal de alguns excessos do stalinismo. Ver, sobre isso, o livro de 1978 de um antigo dirigente do partido comunista espanhol, Jorge Semprún, Autobiografia de Federico Sanchez). Mas aparenta ser óbvio para nós que o desenvolvimento de muitos partidos comunistas numa direção eurocomunista foi (e é) parcialmente determinado pela convicção de que a revolução nos países ocidentais não estará na agenda por um longo tempo, o que significa que ela é impossível – e muitos tiram disso a conclusão adicional de que a revolução é também indesejada, porque ela resultaria, em qualquer caso, em uma derrota catastrófica. A partir dessa perspectiva, as conclusões estratégicas se seguem logicamente; o mesmo aconteceu de forma similar na social-democracia clássica antes e depois da primeira guerra mundial.


Espelho


A transformação socialista da sociedade significa a primeira tentativa na história humana de conduzi-la conscientemente por caminhos conscientemente escolhidos, começando por uma transformação consciente da economia e do Estado, com o objetivo de atingir uma sociedade sem classes e o atrofiamento do Estado. Ao mesmo tempo, o fato de que a implementação desse projeto depende em grande medida da habilidade dos explorados e oprimidos de se organizarem e se libertarem a si mesmos o torna ainda mais audacioso, e as dificuldades em implementá-lo se tornam ainda mais óbvias. Esse projeto libertador e antecipatório é a culminação dos resultados criticamente assimilados de todas as ciências sociais, assim como dos resultados teóricos e práticos dos pensadores utópico-revolucionários e das revoltas de massa que o precederam.


A natureza antecipatória desse projeto é, pelo contrário, sustentada e estimulada afetivamente pela esperança de sua realização, uma esperança e um ímpeto que fertilizam a atividade revolucionária dos indivíduos, grupos e classes sociais ao ponto de eles, a um só tempo, responderem a uma convicção racional sobre a necessidade histórico-material e a possibilidade de realização do projeto. A interação entre a tendência objetiva e seu correlato no campo da esperança humana é expressa de maneira precisa no comentário de Trótski sobre o papel “útil” da literatura:


“Se alguém não consegue se virar sem um espelho, nem mesmo quando faz a própria barba, como pode esse alguém reconstruir a si mesmo ou a sua vida sem se ver no “espelho” da literatura? É claro que não se fala aqui de um espelho exato. Não se pensa nem mesmo em exigir da nova literatura que ela tenha a impassividade própria a um espelho. Quanto mais profunda a literatura é, e quanto mais imbuída do desejo de moldar a vida, mais significativamente e dinamicamente ela será capaz de “representar” a vida” [13].


A teoria da sociedade socialista, de sua economia, de sua ordem política, do necessário atrofiamento da produção de mercadorias e do Estado, de sua permanente transformação cultural, de seu internacionalismo e de sua dinâmica emancipadora totalizante tem sido ampliada, mas ainda não desenvolvida completamente. Além de um forte elemento do processamento crítico (e autocrítico) de todas as experiências históricas das revoluções proletárias do passado, há também um elemento crescente de antecipação ainda-não confirmada empiricamente. Uma tal antecipação se tornou indispensável para a coerência interna da teoria e, aos olhos da massa, para a persuasão da política que ela informa. Após a catástrofe histórica do stalinismo, os marxistas não podem mais se limitar a proclamações do tipo: “Vamos primeiramente derrubar o capitalismo. Quanto ao tipo de sociedade que depois será construída, que tipo de socialismo se dará em termos concretos, isso nós deixaremos para o desenvolvimento histórico (ou para das futuras gerações)”. Hoje, deixar de fora a antecipação histórica do projeto revolucionário concreto significa deixá-lo inverossímil aos olhos das amplas massas.


Uma visão concreta do futuro


Uma visão concreta do futuro socialista – nós preferimos essa formulação no lugar da “utopia concreta”, porque estamos convencidos de que a realização desse tipo de socialismo é realmente possível – se tornou hoje um pré-requisito para a atividade política prático-revolucionária nos países desenvolvidos do ocidente. Nesses países industrializados, o proletariado não vai derrubar o capitalismo se não estiver convencido de que há uma alternativa concreta ao capitalismo. Ele precisa estar convencido de que há uma alternativa que é profundamente diferente e superior quando comparada tanto ao capitalismo quanto ao “socialismo realmente existente” dos países do leste europeu­ – socialismo que não é por nada socialismo!


Centenas de milhares de revolucionários ao redor do mundo já estão na esperança de realização desse projeto. Assim, são capazes de evitar a resignação às catástrofes a que o mundo burguês está se encaminhando, assim como à sua desesperadora autodestruição. Essa mesma esperança eventualmente inspirará massas em uma escala cada vez maior e consistirá numa contribuição decisiva para o avanço do socialismo mundial.


Há setenta e cinco anos, um jovem revolucionário, até então pouco conhecido, escreveu um tratado prático sobre a necessidade de um jornal revolucionário como uma organização coletiva da vanguarda da classe trabalhadora. Ele escrevia em prol de um pequeno grupo de socialistas ilegais, que, sob uma ditadura sangrenta, havia dado os primeiros passos em direção ao desenvolvimento do moderno movimento dos trabalhadores. Esse tratado contém uma peculiar ode ao sonho (ou esperança), que raramente foi percebida pelos incontáveis leitores do panfleto. Aqui está a passagem:


“Nós devemos sonhar!” Eu escrevi essas palavras e fiquei inquieto. Eu me imaginei sentado em um “Congresso de unificação”, com os editores da Rabocheye Dyelo e seus contribuidores virados de costas para mim. O camarada Martynov se levanta e, virando-se a mim, diz com um tom severo: “Permita-me perguntar para você, um editorial autônomo tem o direito de sonhar sem primeiramente solicitar a opinião dos comitês do partido?”. Ele é sucedido pelo camarada Krichevsky; que (aprofundando filosoficamente o camarada Martynov, que muito tempo atrás tinha tornado o camarada Plekhanov mais profundo) continua ainda com um tom ainda mais severo: “Eu vou ainda mais longe. Eu pergunto, um marxista tem algum direito a sonhar, sabendo que, de acordo com Marx, a humanidade determina tarefas que consegue resolver e que a tática é um processo do crescimento das tarefas do partido, que crescem conjuntamente com o partido?”.


Só de pensar nessas perguntas severas sinto calafrios que me fazem desejar nada mais que um lugar para me esconder. Eu devo tentar me esconder atrás de Pisarev.


“Isso são disparidades e disparidades”, escreveu Pisarev sobre a disparidade entre sonho e realidade. “Meus sonhos podem se adiantar ao curso natural dos eventos ou podem sair voando pela tangente, numa direção em que nenhum curso natural dos eventos jamais procederá. No primeiro caso, meu sonho não causará nenhum malefício; ele pode ainda suportar e aumentar a energia do homem trabalhador... Não há nada em tais sonhos que poderia distorcer ou paralisar a força de trabalho. Pelo contrário, se o homem fosse completamente privado de sua habilidade de sonhar dessa forma, se ele não conseguisse de tempos em tempos andar à frente e conceber mentalmente, em sua inteira e completa representação, o produto a que suas mãos ainda estão começando a dar forma, então eu não consigo sequer imaginar que estímulo poderia induzir um homem a empreender e completar um trabalho extensivo e penoso na esfera da arte, da ciência e da vida prática... A disparidade entre sonho e realidade não causa malefícios se a pessoa sonhando acredita seriamente em seu sonho, se ela realmente observa atentamente a vida, compara suas observações com seus castelos no ar, e se, de maneira geral, ele trabalha conscientemente para atingir suas fantasias. Se há alguma conexão entre sonho e realidade, então tudo vai bem.”


Esse jovem revolucionário se chamava V. I. Lenin, essa citação é de Que fazer? [14] Lenin é considerado a personificação da Realpolitik revolucionária. Aparentemente, antecipação, esperanças e sonhos não são apenas categorias do materialismo histórico, mas também categorias da Realpolitik revolucionária.


* Para a tradução de algumas passagens, foi utilizada como referência a tradução para o espanhol publicada em: https://vientosur.info/hay-que-sonar-la-anticipacion-y-la-esperanza-como-categorias-del-materialismo-historico/


Notas

[1] H. van den Enden (ed.), Marxisme van de hoop – hoop van het marxisme? Essays over de filosofie van Ernst Bloch (Bussum, 1980). Esta tradução é baseada na tradução inglesa publicada em https://www.iire.org/node/940#sdendnote1sym. A versão original foi publicada em holandês na De Internationale, nr. 48, inverno de 1994, volume 38, pp. 20-26, acessível online em:

[2] Ernst Bloch, The Principle of Hope, Vol I (Cambridge, MA, 1996), p. 127.

[3] Ernst Bloch, The Principle of Hope, p. 17.

[4] Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach and the End of Classical German Philosophy (1886). Online em:

[5] Karl Marx, Capital, Vol. I (1867). Online em:

[6] Engels: Ludwig Feuerbach… Online em:

[7] Nota do tradutor da publicação em inglês: ver a discussão em ‘The Objectively-Real Possible’, The Principle of Hope, pp. 235-241.

[8] Bloch, The Principle of Hope, pp. 237-238.

[9] Nota do tradutor da publicação em inglês: veja: “Ele não apenas efetua uma mudança na forma do material em que ele trabalha, mas também realiza um sentido próprio a si mesmo que fornece a lei de seu modus operandi e ao qual ele deve subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um mero ato momentâneo. Além do exercício de seus órgãos corporais, o processo demanda que, durante toda a operação, o trabalhador esteja em plena consonância com seu propósito”, Marx, O Capital, online em:

[10] Nota do tradutor da publicação em inglês: ‘Os Albigenses seguem os hussitas / e devolveram em sangue o que eles sofreram / Depois de Hus e Zizka veio Lutero e Hutten, os Anabatistas, os Camisards, os assaltantes da Bastilha, e assim segue.’ Nikolaus Lenau foi o nom de plume [nome artístico] de Nikolaus Franz Niembsch Edler von Strehlenau (1802 – 1850).

[11] Bloch, The Principle of Hope, p. 285.

[12] Nota do tradutor da publicação em inglês: “a velha tática comprovada”; essa fórmula se refere ao “radicalismo passivo” da corrente kautskiana na social-democracia anterior à primeira guerra mundial. Veja o artigo Rosa Luxemburgo e a social-democracia alemã, já traduzido pelo MRI em:

[13] Leon Trotsky, Literature and Revolution (1924). Online em:

[14] Lenin, What is to be Done? (1902). Online em:

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