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Um manifesto vermelho-verde para o século XXI (Daniel Tanuro)

Atualizado: 21 de mar. de 2022


Um manifesto vermelho-verde para o século XXI

Daniel Tanuro

Tradução de Lorenzo Oliveira

Revisão de Pedro Barbosa


Apenas um movimento de massas socialista, feminista, internacionalista, pró-camponês, indígena e anticolonial pode salvar a humanidade.


A mobilização contra as mudanças climáticas continua a crescer, ganhando novas camadas sociais além dos círculos iniciais de ativistas ambientais e tendendo a uma crítica sistemática do produtivismo capitalista e sua inerente competição por lucro. Particularmente significativo é o fato de pessoas jovens estarem se juntando às lutas. No dia 15 de março mais de um milhão de pessoas, em sua maioria jovens, entraram em greve pelas mudanças climáticas ao redor do globo em resposta a um chamado da adolescente sueca Greta Thunberg. O movimento é bastante profundo, apesar de estar atualmente limitado às superpotências do Norte Global. Ele embaralha as cartas, derruba as pautas e coloca todos os atores – políticos, sindicatos, associações e movimentos sociais – em advertência para responder duas questões fundamentais:


1. Por que vocês não estão fazendo tudo o que é possível para limitar ao máximo a terrível catástrofe que cresce dia após dia, e fazendo-o observando a democracia e a justiça social?

2. Como ousam deixar tamanha bagunça para seus filhos e netos?


A vaca sagrada do crescimento capitalista


Essas duas questões ficam sem resposta porque tocam na vaca sagrada do capitalismo: o crescimento. “Capitalismo sem crescimento é uma contradição em termos”, disse o economista Joseph Schumpeter. Hoje, essa contradição se desdobra diante dos nossos olhos como a causa fundamental de um insuperável antagonismo entre capitalismo e uma relação respeitosa da humanidade para com o resto da natureza, que se alicerce no “cuidar” e não no saquear.


Se insistimos nesse ponto, não é principalmente por razões ideológicas ou porque o “decrescimento” iria constituir um projeto de sociedade por si só, mas porque nossa capacidade de limitar a catástrofe das mudanças climáticas agora depende diretamente da velocidade e da determinação com que a sociedade irá diminuir o consumo e o desperdício de materiais. É urgentemente necessário reduzir esses despejos (especialmente o despejo de CO2), para escapar do produtivismo e entrar em um novo modo de produção da existência social, sustentado por valores de compartilhamento, cooperação, respeito e direitos iguais. Isso só será possível acabando com a produção de valores de troca para o lucro dos capitalistas competitivos através de um novo motor social: a produção de valores de uso para satisfazer as reais necessidades humanas, não alienadas pelo fetichismo da mercadoria e democraticamente determinadas respeitando os limites dos ecossistemas.


A natureza radical da transformação a ser realizada é clara no Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas [IPCC - Intergovernmental Panel on Climate Change], Aquecimento Global de 1,5 ºC [1]. Em seu sumário, o IPCC conclui que as emissões globais líquidas de CO2 devem ser reduzidas em cerca de 45% até o ano de 2030 em relação a 2010, e para isso implora por “profundas transformações em todos os níveis da sociedade”.


Amplamente relatado pela mídia ao redor do mundo, essa conclusão, no entanto, apresenta um retrato um tanto quanto atenuado da situação, que é extremamente séria. O relatório completo compara quatro possíveis “caminhos” ou cenários para a redução das emissões, exibido graficamente da seguinte forma:




Legenda para o gráfico:

AFOLU, do inglês, Agriculture, Forestry and Other Land Use (Agricultura, Florestas e Uso do Solo). BECCS, do inglês, Bioenergy with Carbon Capture and Storage. (Bioenergia com captura e armazenamento de carbono). CDR, do inglês, Carbon Dioxide Removal (Remoção de Dióxido de Carbono).


De acordo com o cenário P1, para ter uma chance em duas (o que não é muito) para permanecer abaixo de 1,5 ºC durante este século, nós precisaríamos aderir a uma trajetória de três estágios:

1. As “emissões globais líquidas” de CO2 devem diminuir em 58% entre os anos de 2020 e 2030;

2. Elas devem continuar a decrescer, alcançando zero até o ano de 2050 e;

3. Entre 2050 e 2100 as emissões devem permanecer negativas


Os cenários 2, 3 e 4, mostram que o quanto mais nos distanciarmos dessa trajetória, maior o risco de exceder 1,5 ºC, o que somente poderia ser corrigido retirando CO2 da atmosfera usando “tecnologias de emissão negativa” (NETs, do inglês, Negative Emissions Technologies). O objetivo da redução de 45% até 2030 sugerida pelo IPCC, e repetida pela mídia, corresponde, assim, a uma trajetória situada em algum lugar entre os cenários 2 e 3, o que implicaria em um leve aumento além de 1,5 ºC por 2050 e uma implantação bastante extensa de NETs. Já em um relatório prévio (AR5, 2014), o IPCC apresentou alguns cenários baseados em 95% no uso de NETs. Agora confirma esta abordagem. Mas é questionável. De fato, o grau de implantação das NETs indica a extensão da nossa incapacidade de parar o trem da acumulação capitalista. Assumindo que essas tecnologias iriam ajudar a evitar o cataclisma que um aumento de 2ºC ameaça (uma suposição que provavelmente seja ficção científica) o antagonismo fundamental descrito anteriormente iria inevitavelmente ocorrer mais tarde em uma forma ainda mais aguda. Esse é o porquê de não estarmos em uma “crise”, mas sim encarando uma escolha de civilização.


Vamos voltar aos quatro cenários. Para entendê-los, deve-se saber que “emissões líquidas negativas” significa que a Terra absorve mais CO2 do que emite. As “emissões líquidas” são obtidas descontando a absorção das emissões. A absorção é em primeiro lugar natural: plantas verdes se alimentam do CO2 do ar, e o CO2 se dissolve naturalmente na água. Atualmente, cerca de metade das 40 gigatoneladas das emissões “antropogênicas” anuais de CO2 (devido à atividade humana) são assim retiradas da atmosfera. As “emissões líquidas globais”, desta forma, giram em torno de 20 GT/ano. (Por um lado, estamos apenas falando de CO2 e não de outros gases de efeito estufa, suas emissões não são levadas em conta no “balanço de carbono”. Por outro lado, a absorção de CO2 pelos ecossistemas tende a diminuir como resultado do aquecimento, principalmente porque a água quente dissolve menos CO2 do que uma água mais fria).


Para reduzir as emissões a zero pelo ano de 2050, o cenário 1 do IPCC depende exclusivamente da possibilidade de intensificação desses mecanismos naturais, principalmente através do reflorestamento e de um melhor manejo do solo. O princípio da precaução exigiria permanecer assim, banindo as NETs. Mas nesse caso, seria necessário confrontar muito, muito radicalmente o impulso por lucro. O IPCC exclui essa possibilidade. Ele afirma claramente, em seu quinto relatório, que os modelos climáticos pressupõem uma economia de mercado totalmente funcional e mecanismos de mercado competitivos. Então, velocidade total em direção à tecnologia. Mas o que isso reserva para nós?


A questão política chave


A mais madura das “tecnologias de emissão negativa” é a bioenergia com captura e armazenamento de carbono (BECCS, do inglês, Bioenergy with Carbon Capture and Storage). Ela consiste em substituir combustíveis fósseis por biomassa e armazenar o CO2 proveniente da combustão em camadas geológicas profundas. Assim como plantas crescem absorvendo CO2, a BECCS a longo prazo deveria diminuir as concentrações atmosféricas desse gás. Além do fato de não ter garantia de que os reservatórios geológicos sejam impermeáveis, essa “solução”, se é pra ter um impacto significativo, requer que áreas enormes (equivalente a cerca de 15 a 20% das terras cultivadas hoje) sejam voltadas para a produção industrial de bioenergia. Independente dessas terras estarem em áreas cultivadas ou não, isso pode apenas intensificar perigosamente os já consideráveis impactos que a bioenergia exerce sobre a biodiversidade e as plantações de alimentos atualmente. Por isso, todo esforço deve ser feito para evitar as BECCS. Se, no entanto, precisarem ser implementadas a fim de evitar o pior, teriam de ser estritamente limitadas. Em todos os casos, é categoricamente necessário promover uma redução o mais intensa e rápida possível nas emissões.


Mas esse é justamente o ponto crucial da questão política. O capitalismo foi e continua a ser construído a base de combustíveis fósseis. Desde o Earth Summit (Rio, 1992), os governos fizeram nada ou quase nada e as emissões continuaram a crescer, e agora estamos em uma situação crítica. Uma redução o mais intensa e rápida possível iria necessariamente envolver uma destruição muito rápida de uma grande quantidade de capital, uma “bolha” sem precedentes. Os mais importantes setores do capitalismo se opõem a isso com todas as suas forças, então duas tendências estão se cristalizando nas classes dominantes: uma que envolve líderes que negam as mudanças climáticas, como Trump e Bolsonaro, e outra que abraça o “capitalismo verde”, que, para evitar um estouro excessivamente brutal de uma bolha que é muito grande, argumenta em favor do cenário 4, com uma massiva implementação de BECCS, com um excedente temporário da temperatura de 1,5 ºC e um posterior resfriamento do planeta durante a segunda metade do século (já que essas pessoas imaginam que a temperatura da Terra é tão fácil de regular como suas “casas inteligentes”).


Todos entendem que a primeira tendência é simplesmente criminosa, mas a segunda não é muito menos criminosa do que a primeira. Por três razões:


1. Ninguém sabe se as BECCS e as outras tecnologias imaginadas vão efetivamente remover carbono suficiente da atmosfera para retornar abaixo de 1,5 ºC depois de ter excedido esse limiar;

2. Ninguém sabe como contornar os prováveis efeitos adversos das BECCS e outras chamadas “soluções”, especialmente na biodiversidade e alimentação da população mundial; e

3. As alterações climáticas são um fenômeno não-linear. O risco de que possa ocorrer um acidente maior com consequências irreversíveis aumenta muito seriamente durante esse período de “excedente temporário”, como por exemplo, a quebra das gigantescas camadas de gelo Thwaites ou Totten na Antártica, que acabariam provocando um aumento de três a seis metros no nível do oceano.


Medindo o escopo de um desafio espantoso


Nós repetimos: independente do que o IPCC diga, todos os esforços devem ser feitos para tentar se encaixar no cenário 1 e para seguir a trajetória de três estágios mencionada anteriormente, ou pelo menos desviar o mínimo possível dela. Esse deve ser o objetivo dos movimentos para o clima. Mas nós devemos estar cientes do que isso significa. Significa considerar os seguintes elementos:


- Emissões de CO2 são responsáveis por 76% das emissões “antropogênicas” de gases de efeito estufa;


- 80% das emissões de CO2 são devido à queima de combustíveis fósseis;


- Mais de 80% das necessidades energéticas da humanidade são supridas pelo uso desses combustíveis;


- O sistema de energia fóssil é, em grande parte, incompatível com as fontes renováveis, e deve, portanto, ser descartado o mais rápido possível, independente dessas instalações serem lucrativas ou não;


- Essas instalações somam cerca de um quinto do PIB mundial, ao qual devem ser adicionados os ativos gerados pelas reservas de combustíveis fósseis, dos quais, nove décimos devem permanecer no solo se quisermos ter um pouco mais que uma chance em duas de não exceder um aumento de temperatura de 1,5 ºC;


- As mais recentes dessas instalações estão localizadas nos chamados países “emergentes” (China, Índia, Brasil, em particular) e em outros países do Sul Global, os quais não são historicamente os principais contribuintes para o desequilíbrio climático;


- A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (adotada em 1992 no Rio) declarou – com razão – que cada país deve contribuir para salvar o clima de acordo com suas responsabilidades históricas e capacidades;


- Energias renováveis são suficientes para satisfazer as necessidades humanas, mas as tecnologias necessárias para a sua conversão são mais intensivas em recursos do que as tecnologias fósseis: é preciso de pelo menos dez vezes mais metal para construir uma máquina capaz de produzir kW/h renovável, do que para manufaturar uma máquina que produza kW/h fóssil. A extração de metais é uma grande consumidora de energia (e água).


Desses dados, a conclusão a ser tirada é óbvia: O cenário 1 – ótimo para humanos e não-humanos – representa um desafio gigantesco, não apenas técnico e conceitual, mas também e sobretudo em termos de coordenação mundial necessária para os equilíbrios globais. De fato, trata-se de respeitar o princípio fundamental da justiça climática Norte-Sul (designado como o “princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas” pela Convenção-Quadro da ONU) enquanto:


1. se faz grandes investimentos para a construção de um novo sistema global de energia baseado 100% em renováveis;

2. se utiliza para esta construção de uma energia que ainda é mais de 80% fóssil, e, portanto, emissora de CO2;

3. se usa parte dessa energia para extrair e refinar metais e terras raras que são essenciais para a operação das tecnologias “verdes” (a extração desses metais consome uma grande quantidade de energia e água, além de gerar muitos resíduos devido à sua presença difusa nas rochas);

4. e se permanece dentro do invólucro das drásticas reduções na rede global de emissões líquidas de CO2 mencionadas acima (redução de 58% entre 2020 e 2030, etc.).


Dizemos vigorosamente: é absolutamente impossível cumprir com o pacote de restrições sociopolíticas, temporais e físicas sumarizadas acima sem um programa anticapitalista global e extremamente radical. Não se trata apenas de planejar e simplificar a produção; a produção precisa ser drasticamente reduzida a fim de reduzir a quantidade de energia consumida, sempre que possível.

Sem essa redução drástica, será impossível compensar as emissões da construção de um novo sistema de energia renovável, por um lado, e priorizar o direito do Sul global – especialmente os países que as instituições internacionais chamam desdenhosamente de “os menos avançados” – de se desenvolver usando os fósseis que a humanidade ainda pode usar, por outro lado.


Sem uma compensação dessas duas causas de emissões, não há como reduzir as emissões líquidas em 58% até 2030, em 100% para 2050 e em mais de 100% pela segunda metade do século. Mesmo sob a suposição – promovida pelo IPCC – de uma redução de 45% nas emissões até 2030, o problema não pode ser resolvido se não formos além da lógica capitalista.


Tornar possível o que é necessário


A dinâmica de crescimento do capital e a inação de seus representantes políticos nos trouxeram literalmente à beira do abismo. O que deve ser feito para se evitar cair nele? Essa é a pergunta a ser feita. Primeiramente, é imperativo responder a isso objetivamente, sem nos limitarmos subjetivamente, ou seja, sem nos confundir com o que é viável ou não dentro de um contexto político, econômico, social e ideológico capitalista, o qual distorce tudo e coloca a realidade de cabeça para baixo. Em segundo lugar, devemos ver o que deve ser feito para tornar possível o que é necessário, que obstáculos devem ser superados, quanto tempo pode ser preciso, com quais consequências e como enfrentá-las. Proceder da maneira inversa, partindo do “possível” capitalista a fim de determinar o que “deve” ser feito (na realidade, o que o capital permite), é postular que as leis históricas e sociais do lucro devem prevalecer sobre as leis físicas do clima da Terra. Isso é um completo absurdo metodológico (e, a propósito, esse absurdo mostra que a ideologia da “dominação” humana sobre o resto da natureza não é apenas absurda, mas também nos cega, sendo, portanto, perigosa!).


Objetivamente, é indiscutível que bloquear o desastre crescente requer um plano anticapitalista muito radical, reorientando completamente a produção, as trocas, as relações com o Sul global e a concepção de mundo. Nos chamados países capitalistas “desenvolvidos”, os principais eixos deste plano seriam:


1. Suprimir a produção desnecessária e perigosa. “Cada tonelada de CO2 que deixar de ser emitida conta”, dizem os cientistas. Eles não chegam à conclusão lógica: a prioridade deveria ser interromper a produção e o consumo de armas, embalagens e engenhocas de plástico, combater a obsolescência dos produtos e banir a publicidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, as emissões combinadas da indústria militar e do Departamento de Defesa somam cerca de 150 milhões de toneladas de CO2 por ano (sem contar as emissões das cerca de 700 bases militares americanas espalhadas ao redor do globo!).


2. Suprimir o transporte inútil de mercadorias, localizar a produção tanto quanto possível, favorecer circuitos de abastecimentos curtos, impor um imposto crescente sobre o querosene (para ser distribuído aos países do Sul via Fundo Verde para o Clima). As emissões dos transportes aéreos e marítimos representam atualmente 5% das emissões globais de CO2 e estão crescendo rapidamente como resultado da globalização capitalista. De acordo com um estudo feito pelo Parlamento Europeu, esses setores poderiam representar em 2050 até 22% e 17% das emissões globais de carbono, respectivamente. É preciso urgentemente fechar essa torneira.


3. Para a mobilidade das pessoas, investir massivamente no transporte público e promover efetivamente o uso de bicicletas em boas condições. Desencorajar o uso do carro particular, promover empregos perto de casa, fornecer mais serviços dentro dos territórios locais. Racionalizar as viagens aéreas por meio de direitos de mobilidade aérea gratuitos, personalizados e não-cambiáveis.


4. Criar empresas públicas e territoriais designadas para isolar e renovar todas as edificações dentro de 10 anos. A política neoliberal de incentivos e taxas ao isolamento-renovação é muito lenta, socialmente injusta e focada mais em promover a produção de energias renováveis pelos proprietários das casas – e no desenvolvimento irracional do “capitalismo verde” – ao invés de reduzir o consumo de energia através do isolamento. A urgência e a razão exigem que encerremos esta política o mais rápido possível.


5. Deixar os combustíveis fósseis no solo. Expropriar e socializar os setores de energia e finanças sem compensação ou recompra. Organizar um serviço público de energia descentralizado. Os setores fóssil e financeiro estão intimamente ligados por meio de empréstimos para o investimento e participação acionária. Sem romper o bloqueio que esses setores constituem, não é possível organizar em dez anos uma rápida transição para uma economia 100% renovável (e, portanto, sem energia nuclear). Este é o ponto chave das reformas estruturais a serem impostas.


6. Romper com o agronegócio e com a exploração capitalista das florestas. Aumentar a absorção natural de CO2 não substitui a redução das emissões, mas a complementa. Promover a agroecologia usando técnicas apropriadas para acumular o máximo de carbono nos solos. Promover articulações diretas entre produtores e consumidores. Banir a agricultura industrial e popularizar uma dieta sem carne. Replantar cercas vivas, restaurar pântanos, cessar a “concretização”. Este é o estepe a ser implementado imediatamente.


7. Respeitar a justiça climática Norte-Sul. Isso implica particularmente: abolir dívidas; pelo menos honrar o compromisso dos países do Norte de doar U$ 100 bilhões por ano ao Fundo Verde do Clima; cobrir também as “perdas e danos” causados ao Sul pelo aquecimento provocado principalmente pelo Norte; abolir o sistema de patentes em tecnologias de energia; banir o mercado de créditos de emissões de carbono, compensações de carbono, importação de biocombustíveis e outros tipos de relações características do “neocolonialismo climático”; garantir a liberdade de deslocamento e assentamento de pessoas migrantes.


Uma vida melhor para a enorme maioria


Sem recorrer a métodos despóticos, é óbvio que tal plano nem mesmo é concebível se não incluir também um componente social igualmente radical. Isso é essencial, particularmente se quisermos abordar adequadamente a questão das mudanças no comportamento social. Sozinhas, algumas dessas mudanças com foco no consumo provavelmente serão impopulares entre certos segmentos da população (por exemplo, a tributação de querosene e racionamento de viagens aéreas). Observando isso da ponta pequena do telescópio, alguns ecologistas clamam por um “governo forte”. Porém, o fim da ditadura capitalista do lucro na esfera da produção permite delinear, na esfera do consumo, o caminho para uma transição ecológica que é sinônimo não de retrocesso, mas de um fortalecimento da democracia e de uma melhoria da qualidade de vida da maioria da sociedade. Esse é o trabalho que temos pela frente se quisermos fazer a desejável transição.


Nos países do Norte, os principais eixos desse segundo componente da alternativa anticapitalista são os seguintes:


1. Redistribuir a riqueza, e restaurar uma responsabilidade igual de todas as rendas – inclusive de fontes globais – para uma tributação progressiva. Determinar um salário máximo. Refinanciar o setor público, a educação, a pesquisa e os setores de saúde, creche e cultura. Acabar com a subordinação da pesquisa científica ao lucro, refinanciá-la, orientá-la para apoiar a transição e melhorar a condição dos pesquisadores.


2. Acabar com a supremacia do mercado capitalista: educação gratuita, transporte público, cuidado infantil e com a saúde. Sem cobrança pelo consumo de água e energia elétrica correspondente às necessidades básicas, e com acentuado aumento dos preços para além desse nível.


3. Proibir as demissões e garantir empregos e renda decentes para todos. Proporcionar capacitação em novos ofícios para os trabalhadores das atividades a serem suprimidas, enquanto garante a manutenção da renda, das conquistas sociais e dos coletivos de trabalho sob o controle das mesmas. Promulgar uma escala móvel de jornada de trabalho para todos, sem perda de salário, para garantir uma redução radical da jornada de trabalho semanal, com os encargos pagos por toda a classe capitalista. Reduzir a idade de aposentadoria para 60 anos para todos. Prolongar as licenças de maternidade e paternidade. Garantias de emprego e redução da jornada de trabalho sem perda de remuneração são necessárias não só para enfrentar os desafios das mudanças climáticas e da revolução digital, mas também para assegurar que as medidas sociais e econômicas não alterem negativamente as relações sociais em detrimento da força de trabalho. Com um maior tempo livre de lazer também é provável que se abram oportunidades para outras atividades prazerosas que possam acabar com as pressões consumistas, que servem de substituto para a miséria das relações humanas dominadas pelo fetichismo da mercadoria.


4. Extensão radical dos direitos democráticos. Direitos de voto e elegibilidade em todos os níveis, para todos a partir dos 16 anos. Funcionários eleitos sujeitos a revogação, e suas rendas alinhadas com o salário médio. Política ativa que visa expandir o controle e participação dos cidadãos, especialmente no que diz respeitos aos vários aspectos do plano de transição (como no isolamento-renovação das edificações, transporte e mobilidade, reconversão econômica, alteração do modelo agrícola, gestão de territórios, etc.).


5. Direitos iguais para mulheres e LGBTQIA+. Acabar com a discriminação na educação, nos empregos, na cidade. Paridade de gênero em assembleias representativas e em todos os órgãos da transição ecológica. Aborto gratuito e contracepção sob demanda. Socialização das tarefas de reprodução social.


6. Desenvolver uma cultura de cuidado, responsabilidade e sobriedade. Maior apoio à educação dos adultos. Reforma ecológica da educação, com o objetivo de despertar a consciência de pertencimento à Natureza. Fortalecimento e socialização das ações de cuidado às pessoas e aos ecossistemas. Gestão pública e municipal dos recursos (água, energias renováveis, locais paisagísticos, etc.) sob controle democrático. Desenvolvimento de uma densa rede de reparo / reciclagem / reutilização / redução apoiada pelo poder público. Estímulo à cidadania e respeito à autonomia dos movimentos sociais.


Pequenos passos e uma grande lacuna


Como disse Einstein: “Não podemos resolver nossos problemas com o mesmo pensamento que usamos quando os criamos”. Ao considerar sagrado “o pleno funcionamento da economia de mercado e o comportamento competitivo de mercado” o próprio IPCC fecha qualquer possibilidade de resolver o problema climático. É indispensável rejeitar o “realismo” capitalista – essa insana ânsia pelo lucro – se quisermos encontrar uma maneira de limitar a catástrofe e evitar que se torne um cataclisma.


A principal dificuldade não é técnica, mas social e, portanto, política: a necessária alternativa não pode ser organizada de cima. Ela imperativamente requer uma poderosa mobilização na base, uma responsabilidade generalizada. Ousemos dizer: precisamos de uma revolução global autogerida para resolver democraticamente, em todos os níveis, as crises sociais e ambientais combinadas. Apenas os explorados, os oprimidos e a juventude podem ir até o fim para realizar as reformas indispensáveis, em todas as áreas. Porém, atualmente existe um abismo entre esta alternativa anticapitalista urgente e o nível de consciência da maioria da sociedade. Como isso deve ser superado, ser transposto, o mais rápido possível? Esse é O problema estratégico a ser resolvido.


Como anticapitalista, nós somos confrontados diariamente com essa objeção: “Claro, você está certo, mas o que você propõe não tem credibilidade, não é realizável, e nós precisamos de respostas concretas, vale mais a pena um pássaro na mão do que dois voando”. Então uma questão vem à tona: Não deveríamos optar por pequenos passos? Ou, então, admitir que “estamos ferrados”, que o “colapso” é inevitável e a única saída é “criar pequenas comunidades resilientes” como dizem os “colapsologistas”?


Anticapitalistas são a favor de reformas, nós não adiamos tudo para o “grande dia” da revolução. Os pequenos passos são positivos quando fortalecem os movimentos sociais e os estimulam a avançar. O que questionamos é a ideia de que seja possível introduzir outra sociedade gradualmente, através de uma estratégia de pequenas reformas. Por que? Entre outras coisas, porque essa estratégia difunde a transição ao longo do tempo, em óbvia contradição com sua urgência. Também questionamos as “soluções milagrosas” que muitas vezes a acompanham e falham em lidar com o desafio. Então, o que fazer, que perspectiva adotar, que estratégias podemos propor que não fiquem paralisadas entre um minimalismo insignificante e o maximalismo impotente?


Primeiro, dizer a verdade...


Pensamos que primeiro devemos dizer a verdade. Nossa alternativa anticapitalista te deixa querendo mais? É normal, não poderia ser diferente. Juntos, precisamos transformar a sua fome em apetite por algo mais, para gerar a ideia de uma sociedade que produza menos e compartilhe mais, por necessidades reais, em respeito aos humanos e não-humanos, uma sociedade seja atrativa à imaginação. Essa é a função do projeto programático de 13 pontos delineado acima. É necessário combater tanto o discurso de derrota que induz ansiedade, quanto o discurso pseudo-realista que propaga a ilusão de que o cenário ótimo (o cenário 1 do IPCC) poderia ser realizado – ou pelo menos aproximado – seguindo um caminho menos radical.


Nos Estados Unidos, Alexandria Ocasio-Cortez propõe um “Novo Acordo Verde” (Green New Deal). Na Europa, Jean Jouzel e Pierre Larrouturou defendem um “plano de financiamento climático”. Existem agora cada vez mais propostas para caminhos menos radicais. As linhas estão se movendo, e isso é incontestavelmente um efeito positivo do movimento social. Entretanto, se as examinarmos em detalhe, nós encontramos que essas propostas têm três pontos em comum:


1. Se esquivam da questão-chave da indispensável redução no consumo de energia, na produção de materiais e no transporte;

2. Não excluem o uso de tecnologias de emissão negativa, como as BECCS ou as chamadas “tecnologias milagrosas” como hidrogênio;

3. Na maioria das vezes, elas se abstêm de assumir uma posição clara em relação ao cumprimento dos compromissos com o Sul, contra a compra de créditos de emissão e compensações de carbono, etc.

Portanto, devemos ser claros: esses caminhos menos radicais, que são apresentados como mais realistas do que a alternativa anticapitalista, enquadram-se mais ou menos claramente (muito claramente no caso de Larrouturou-Jouzel, que querem salvar a União Europeia) dentro do projeto de “capitalismo verde”. Todos eles envolvem graus variáveis de “neocolonialismo climático” e efeitos mais rigorosos do aquecimento para humanos e não-humanos do que no cenário 1 – sem falar da espada de Dâmocles [2] da irreversível e de larga escala inflexão mencionada acima.


… e construir mobilização social


O problema estratégico do abismo entre as necessidades objetivas e as possibilidades subjetivas não será superado pela proposição de alternativas rebaixadas. Ele só poderá ser superado com o desenvolvimento da mobilização social. Esse desenvolvimento é, de fato, a alavanca para avançar o nível de consciência em uma escala de massas. A linha que propomos para realizar isso pode ser resumida em poucas palavras. Não desista. Em vez disso, expanda, convirja, organize, democratize, aprofunde, desafie, radicalize, invente. Vamos brevemente comentar sobre eles:


Não desistir! A tarefa diante de nós é de longo prazo. Temos a chance de limitar os danos somente se os colocarmos em uma perspectiva de luta permanente. Em curto prazo, isso significa, em primeiro lugar, rejeitar qualquer ideia de trégua eleitoral, no contexto das eleições europeias ou quaisquer outras votações. A longo prazo, isso significa construir conscientemente a desestabilização e deslegitimação dos poderes estabelecidos. A agenda política, sua temporalidade e suas instituições não são nossas. “Nós não defendemos a Natureza, nós somos a Natureza que defende a si mesma”. Vamos olhar para toda e qualquer manifestação perceptível do desastre que está em curso – que, infelizmente, são muitas – como uma forma de aumentar a pressão e relançar a ação.


Expandir! O movimento vem constantemente se expandindo desde a onda de calor do verão de 2018 no Hemisfério Norte. Essa é uma das nossas principais virtudes. Devemos conscientemente continuar neste caminho, organizar novas mobilizações, repetir a greve de 15 de março em uma escala maior, estabelecer metodicamente as bases para uma revolta global envolvendo dezenas, centenas de milhões de pessoas. Somos a vida diante da morte. Nossa ambição deve ser proporcional ao desafio.


Convergir! Não se trata apenas de conquistar novos setores da juventude, ou novas regiões e países. É também uma questão de pacientemente trabalhar para unir nas bases as lutas sócio-sindicais, feministas, campesinas, antirracistas, anticoloniais e indígenas, através das fronteiras. A contribuição das feministas é importante, especialmente porque elas enfatizam a importância do “cuidado”. A dos povos indígenas é inspiradora pois mostra a possibilidade de uma nova visão das relações entre humanos e não humanos. Os camponeses da Via Campesina já estão na vanguarda, com seu programa agroecológico e práticas de ação diretas. O principal desafio estratégico é separar o movimento sindicalista da sua aliança com o produtivismo; isso significa, em primeiro lugar, a reapropriação da redução coletiva da jornada de trabalho, fazendo dela A demanda ecossocialista por excelência.


Organizar, democratizar e aprofundar! Esses três objetivos andam de mãos dadas. Em geral, com algumas exceções, o movimento atual sofre por falta de organização e democracia. Isso é parcialmente devido à sua espontaneidade, obviamente uma coisa boa em si. Mas há um vazio. Atualmente, é preenchido por indivíduos, por estruturas associativas de longa data e por iniciativas de pequenos grupos nas redes sociais. Devemos ir além desse estágio, evitar o “substitucionismo” e prevenir as tentativas de cooptar o movimento. Não desistir, mas para construir convergências de longo prazo é necessário um movimento enraizado em suas estruturas de base, democráticas e não excludentes, isto é, assembleias gerais que elejam pessoas com mandatos revogáveis que as representem de forma transparente onde quer que a luta esteja coordenada e determine seus objetivos. Este modo de organização é a melhor maneira de aumentar a consciência, de passar das questões imediatas (separação de resíduos, etc.) para questões mais estruturais.


Desafiar! Greta Thunberg nos mostrou o caminho. Líderes políticos e econômicos estão tentando se apropriar de sua imagem, mas até agora, ela não caiu nessa conversa. Em Davos, na frente do Parlamento Europeu e em outros lugares, ela culpou líderes sem compromisso, sem hesitação. Vamos seguir seu exemplo. Vamos abandonar qualquer ilusão de que o sistema político “irá entender” a necessidade de ser “mais ambicioso” porque existem as chamadas soluções “ganha-ganha” para reconciliar o crescimento e o lucro com o clima (isso é conversa fiada, não existe nenhuma!). Adotemos uma postura autônoma, de desconfiança sistemática e intransigente. Ousemos desobedecer. De forma sistemática, alegre e deliberada vamos minar a legitimidade dos ricos, seus representantes e de todos aqueles que se recusarem a deixar para trás o modelo produtivista e orientado pelo crescimento.


Inventar! Como parte do desafio, ações legais como o julgamento do século da 350.org e demandas imediatas têm seu lugar. Vamos desafiar os tomadores de decisão a efetuar medidas concretas imediatamente: incluir a obrigação legal de reduzir as emissões, isolar todos os edifícios públicos e parapúblicos, tornar gratuito o transporte público, banir a publicidade, abandonar grandes obras, etc. A lista de possibilidades é infinita. A longo prazo, o movimento climático significa que entramos em um novo período da história em que a “questão ecológica” irá incontestavelmente percorrer e articular cada vez mais todas as questões sociais. Trabalhar para a convergência das lutas em uma perspectiva interseccional segue-se evidentemente. Isso coloca agora uma longa série de questões não resolvidas. Por exemplo: que ferramentas políticas podem ser forjadas no curso das lutas, para que possam passar da luta anticapitalista para a construção de um novo mundo?


Radicalizar! Devemos estar cientes da nossa força. Sem o movimento climático, a COP-21 (21ª Conferência do Clima) não teria estabelecido a meta de manter o aquecimento abaixo de 1,5 ºC. Devemos exigir que esse passo em frente seja seguido por medidas concretas, que estejam à altura do desafio e sejam socialmente justas. Esse é o significado do movimento atual. As elites e seus representantes políticos estão sob pressão porque sabem que o desafio da mudança climática é potencialmente revolucionário. Todas as correntes estão sob pressão, então as linhas tendem a se mover. Então, em vez de nos deixarmos arrastar para o campo minado da estratégia dos pequenos passos, vamos alargar o buraco. Para isso, confrontar cada nova proposta com o diagnóstico científico do que deve ser feito para ficar abaixo de 1,5 ºC de aquecimento sem recorrer a tecnologias perigosas, respeitando as obrigações para com o Sul e a justiça social. A constatação de que “não há ajuste” ajudará o movimento a se radicalizar a ponto de poder se propor como um programa anticapitalista que atenda o desafio e a lutar para impor a formação de um governo sob essas bases.


Uma corrida em velocidade assustadora


Funcionará? Ninguém pode garantir; nos vemos numa rápida e assustadora corrida entre a esperança da salvação e o mergulho na barbárie. Por esse ângulo, a situação apresenta algumas analogias com aquela que existia antes da Primeira Guerra Mundial, que Lênin caracterizou como uma “situação objetivamente revolucionária”. O fator subjetivo foi totalmente incapaz de evitar a carnificina de 1914-18, mas dessa carnificina surgiu a Revolução Russa – que foi sufocada por fora e estrangulada por dentro. Um século depois, uma questão similar é colocada, em uma escala ainda mais perturbadora: o quão longe a humanidade terá de afundar nas trincheiras da catástrofe climática antes de finalmente voltar-se contra o capitalismo para se livrar desse sistema criminoso de uma vez por todas? A revolução – a irrupção das massas na cena onde seu destino está em jogo – enfrentará o desafio? Ou, por outro lado, o capitalismo manterá seu poder enfeitiçante?


Essas questões ficam sem resposta. Elas nos lembram de Gramsci, e sua famosa citação sobre a combinação do pessimismo da razão com o otimismo da vontade. Esse otimismo é um imperativo categórico, porque temos certeza de apenas uma coisa: o desfecho da corrida entre o desastre e a consciência do desastre depende do ressurgimento em grande escala de um projeto emancipatório capaz de superar as terríveis ameaças que a loucura produtivista impõe à humanidade.


Para o projeto ecossocialista, não existem atalhos, nenhum outro caminho senão a luta.


Esta declaração foi redigida por Daniel Tanuro e adotada pela direção nacional da Esquerda Anticapitalista da Bélgica. Foi traduzida para o inglês para o site Climate & Capitalism, por Richard Fidler, com leves edições por Ian Angus.


Notas de rodapé

[1] IPCC “Global Warming of 1.5°C”.

[2] Nota da tradução: A espada de Dâmocles é uma alusão frequentemente usada para remeter a uma anedota grega que figurou originalmente na história perdida da Sicília por Timeu de Tauromenium (356 – 260 a.C.), e representa a insegurança daqueles com grande poder (devido à possibilidade deste poder lhes ser tomado de repente) ou, mais genericamente, a qualquer sentimento de desgraça iminente.

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