Trótski sem ismos
Andreu Coll
Mark Twain dizia que “um clássico é um livro que as pessoas elogiam e não lêem; um livro, enfim, que todo mundo quer ler e ninguém quer ler”. De fato, frequentemente tanto seguidores quanto detratores opinamos superficialmente sobre algumas obras e autores que apenas conhecemos. A ideia inicial deste texto é que na literatura, na arte, na ciência e no pensamento revolucionário, não é o autor que faz o clássico, mas sim a perenidade de suas ideias, imagens e intuições que nos deixam como legado determinadas passagens de sua obra e de sua vida. Ou seja, a capacidade de transcender tempos, países e conjunturas e de ser útil e evocativo para pessoas de diversas gerações, culturas e gêneros.
A figura que nos deixou tragicamente há 80 anos é, sem dúvida, um clássico do marxismo e uma figura-chave da política e da cultura da primeira metade do século XX. Uma experiência militante que atravessa países, épocas e organizações muito distintas, uma rica formação política e uma densa cultura cosmopolita, bem como sua participação direta em, ou sua vontade de compreender e intervir nos, grandes acontecimentos políticos de sua época explicam uma obra extensa, profunda, diversa e multifacetada. A meu juízo merece, por conseguinte, uma aproximação sem preconceitos e que desenvolvamos uma opinião própria com base na vontade de compreender antes de julgar. Nestas linhas, proponho algumas modestas observações para tentar esclarecer os acertos, mas também os limites, deste dito clássico.
Capitalismo como totalidade dinâmica e contraditória
Talvez a primeira ideia estruturante do pensamento de Trótski seja a compreensão do capitalismo como uma força dinâmica expansiva que tendia a englobar todo o mundo, com lógicas internas complexas e contraditórias que, já nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, condicionavam os conflitos, as rupturas e as possibilidades de desenvolvimento dos diferentes países do mundo. A dinâmica do desenvolvimento desigual e combinado, decorrente do mercado mundial e da sobreposição de processos acelerados de desenvolvimento econômico com estruturas econômicas e políticas arcaicas, não explica apenas as rivalidades imperialistas entre grandes potências que conduziriam a Grande Guerra (1914-18), mas que constituirá, em Trótski, a base material para vincular aspirações democráticas e objetivos anticapitalistas, fundamento da perspectiva de revolução permanente. Esta, inspirado nos escritos de Marx sobre as revoluções de 1848 e nas análises contemporâneas de Parvus, já será desenvolvida em seu balanço da revolução russa de 1905 como horizonte estratégico para rupturas futuras – ao que Lênin irá implicitamente aderir com suas Teses de abril de 1917 – e que, anos depois, se generalizará aos países dependentes, coloniais e semicoloniais, contrapondo-a à propaganda de Stálin sobre o “socialismo em um só país”.
Assim, Trótski definirá a revolução socialista ao mesmo tempo como ato e como processo, que pode começar em um país, que tende a se estender para outros, mas que só pode ser consumada a nível mundial precisamente pela natureza expansiva e predatória do próprio capitalismo. Daí que, contradizendo a ortodoxia marxista de sua época, foi o primeiro socialista do século XX a chegar à conclusão de que uma revolução operária e camponesa poderia triunfar antes em países menos desenvolvidos e sem tradições democráticas, desde que conseguisse se estender a países economicamente mais avançados e com tradições parlamentares mais consolidadas, nos quais sem dúvida a tomada do poder seria mais lenta e trabalhosa, mas a construção de uma sociedade sem classes através de uma democracia socialista seria muito mais rápida. Na perspectiva de Trótski – compartilhada por Lênin nos debates dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista – todo bloqueio dessa dinâmica reforçaria e estabilizaria o capitalismo mundial e seu extraordinário dinamismo – apesar de suas crises e contradições – e favoreceria as forças restauracionistas, como já havia profetizado em 1922 a respeito da União Soviética, no artigo “A curva do desenvolvimento capitalista”.
Auto-organização e emancipação
A segunda ideia central do pensamento e da práxis de Trótski será a auto-organização popular como base para a luta de classes, como requisito para os ascensos revolucionários e como embrião estruturante de toda institucionalidade revolucionária. O surgimento dos sovietes na revolução russa de 1905 (que ele conheceu diretamente como presidente do soviete de São Petersburgo) simbolizará, no pensamento de Trótski, a irrupção transbordante da participação popular e a concretização orgânica do antagonismo operário e camponês diante da autocracia czarista. “Expressão finalmente alcançada da democracia socialista”, em Trótski os sovietes possibilitam três objetivos: estruturar e centralizar o movimento revolucionário espontâneo das massas, reunificar espontânea e concretamente as distintas tendências da social-democracia russa (voltaremos a isto) e constituir a base orgânica de um Estado operário apoiado pelo campesinato pobre e capaz de derrotar o czarismo e as forças liberal-burguesas, débeis, atemorizadas e estruturalmente cúmplices da opressão czarista.
Sem dúvida, essa dinâmica se reproduzirá no “Breve século XX”, no qual se verá o que Lukács chama de “a atualidade da revolução”, ou seja, um período histórico em que a revolução social foi uma tarefa concreta e factível no curto prazo. O surgimento de conselhos de trabalhadores e soldados na Alemanha (1918-19), dos Shop Stewards [delegados sindicais] britânicos, dos comitês de milícias e conselhos de defesa na Espanha (1936-37), dos conselhos de fábrica na Itália (1917-19 e novamente em 1969), dos Cordões Industriais e dos Comandos Comunais no Chile (1970-1973), dos Comitês de Ação na França (1934-36 e 1968), dos comitês de moradores e soldados da Revolução Portuguesa (1974-75), todos esses processos confirmam que a cada vez que se abriram dinâmicas revolucionárias surgiram estruturas espontâneas de auto-organização popular capazes de atender necessidades materiais básicas diante da paralisia das instituições e de canalizar a luta das massas, por um lado, e por outro para exercer uma legitimidade alternativa oposta a, e em conflito com, o Estado burguês.
Classe, partido e direção
Portanto, após a experiência de 1905, tanto a defesa por Trótski da centralidade dos sovietes quanto a defesa por Rosa Luxemburgo da greve geral revolucionária levantaram diretamente a questão do poder. No entanto, como Lênin lembrará a ambos, essa conquista será impossível sem que uma hegemonia democrática majoritária seja obtida por uma organização que encarne um programa revolucionário coerente. Em outras palavras, a crise política e social mais aguda não pode se transformar espontaneamente em revolução triunfante sem um partido capaz de imprimir uma orientação e definir objetivos realistas e radicais em cada conjuntura, como mostrará expressamente a vitória de outubro de 1917 e, poderíamos acrescentar, todas as revoluções sociais vitoriosas do século XX.
Esta compreensão tardia da concepção de partido de Lênin (que o levou a engrossar as fileiras bolcheviques em 1917 e a abandonar definitivamente suas ilusões de reunificação da social-democracia russa), que irá enriquecendo durante os anos 30 graças a um profundo conhecimento do movimento operário internacional, será, sem dúvida, um dos calcanhares de Aquiles de Trótski quando Lênin, já doente, lhe convoca para dirigir uma luta contra a deriva burocrática e autoritária impulsionada pela fração de Stálin na União Soviética.
Unidade estratégica e unidade tática
O terceiro grande eixo do pensamento de Trótski é, a meu juízo, a questão da unidade e o problema da hegemonia anticapitalista nos países capitalistas desenvolvidos, ou seja, o desenvolvimento de uma estratégia revolucionária específica para o Ocidente. Esses desenvolvimentos terão dois momentos importantes: no marco do terceiro e do quarto congressos da Internacional Comunista a propósito da política de Frente Única e, nos anos 30, primeiro a partir da Oposição de Esquerda e depois na Quarta Internacional, fundada em 1938, visando encontrar uma saída anticapitalista para a luta contra o fascismo (com base na análise de países-chave como Alemanha, França, Estado espanhol, Estados Unidos, etc…).
Sem dúvida, a obsessão por estender a revolução ao Ocidente e romper o isolamento da URSS percorrerá o movimento revolucionário dos anos 20 e 30. Após a euforia inicial que se seguiu aos movimentos revolucionários do pós-guerra, o refluxo e estabilização relativa desmentirão a ideia de um colapso rápido do reformismo e de um avanço das forças comunistas e obrigarão a proposição da política de frente única como estratégia unitária para empoderar a classe trabalhadora em um contexto defensivo e como tática para reforçar os revolucionários em detrimento dos reformistas, não exclusivamente na base da propaganda, mas através de experiências concretas nas quais as amplas massas tomam consciência de que as organizações reformistas defendem o status quo e somente os partidos anticapitalistas lutam de forma consequente pelos interesses das amplas maiorias sociais.
Trótski advertirá que as políticas de frente única não resolvem a necessidade de uma acumulação mínima de forças por parte das organizações revolucionárias e atacará as interpretações simplistas que as reduzirão à propaganda abstrata e à mera denúncia por parte de grupos marginais. Falará de partidos de 1/4 ou 1/3 (dos setores mais ativos da classe) como requisito para forçar a ação unitária aos aparatos reformistas, sejam eles políticos ou sindicais. Em Trótski, como em Lênin, é a experiência real que permite um avanço da consciência política e só na base dela se tornam compreensíveis as críticas ao reformismo quando ele manobra contra os interesses do conjunto do movimento popular. Um trabalho paciente de implantação [enraizamento] e uma orientação ao mesmo tempo unitária e crítica será então, em Trótski, uma premissa incontornável para que os anticapitalistas rompam com o seu isolamento e se postulem como direção política de uma transformação radical da sociedade.
A especificidade do fascismo: análise e tarefas
A luta contra o fascismo nos anos 30 levará ao aprofundamento e enriquecimento desse enfoque com base em uma série de ideias-chave:
- A caracterização da ascensão do fascismo como uma guerra civil de baixa intensidade liderada por setores reacionários da pequena burguesia empobrecida por uma gravíssima crise do capitalismo e que busca, em benefício do grande capital industrial e financeiro, a destruição (e a atomização) total do movimento operário em geral e do movimento revolucionário e da URSS em particular, assim como uma nova divisão violenta do mundo.
- A distinção entre ditaduras militares clássicas e diversas formas de bonapartismo regressivo e a especificidade do fascismo como solução para uma aguda crise de dominação burguesa, que permitirá a Trótski respeitar a realidade e matizar as análises, não abusar das analogias e se preciso recorrer a elas...
- O fato de que uma ditadura fascista acabaria subitamente com os interesses e privilégios institucionais que alimentam financeiramente os canais de ascensão social da social-democracia reformista constitui a base material a partir da qual os anticapitalistas devem impor uma política unitária de luta contra o fascismo ao conjunto das organizações que se reivindicam do movimento operário e se empenhar para criar organismos unitários e transversais de luta que sejam capazes de obter grande autoridade entre o conjunto dos setores populares (superior à soma da autoridade das organizações que o integram) e eventualmente de servir como pontes militantes úteis para veicular as diferenciações internas nos grandes aparatos burocráticos e permitir o deslocamento de militantes para as organizações revolucionárias quando determinadas condições subjetivas sejam satisfeitas.
- Denunciar a lógica do “mal menor” diante do fascismo que consiste na defesa da estabilidade, da governabilidade e da “democracia” em abstrato, o que leva à renúncia da perspectiva anticapitalista em nome da unidade com (e da consequente subordinação às…) forças burguesas como a via mais rápida na direção da catástrofe, permitindo à extrema direita (ontem como hoje) capitalizar demagogicamente o mal estar social gerado pelas crises capitalistas. Neste sentido, criticará as políticas de colaboração de classes que serão praticadas pelos governos de Frente Popular e apostará em superá-las com a fórmula inovadora de “um governo operário e camponês que rompa com a burguesia” e, através da criação de organismos unitários por baixo, lançar as bases para a tomada revolucionária do poder.
A noção de “governo operário e camponês” como inovação estratégica
Seus escritos sobre a França entre 1934 e 1936 são muito sugestivos a esse respeito e ajudam a refletir sobre experiências muito mais recentes: derrotas como a da Unidade Popular chilena em 1973 ou triunfos inexplicavelmente perdidos como o governo do Syriza, a vitória do OXI e a capitulação de Tsipras à Troika na Grécia em 2015. Já sabemos o preço que a Europa e o mundo pagaram pelo acúmulo de revoluções fracassadas, evitadas e abortadas do período entreguerras: no verão de 1940, as bandeiras nazifascistas tremulavam em todos os países da Europa central e ocidental, com a única exceção do Reino Unido (até hoje a monarquia parlamentar mais antiga e conservadora do mundo).
Nesse sentido, a consigna de “governo operário e camponês” de certo modo é a conclusão lógica da política de frente única e em grande medida desmente a ideia de que Trótski transporia mecanicamente o “modelo russo” para o Ocidente, supostamente colocando a tomada do poder como um ato de força extraparlamentar partindo de uma exterioridade total às instituições. Precisamente devido ao fato de que é dificilmente concebível uma dualidade de poderes tão nítida como a do caso russo e, sobretudo, pela irrepetível desintegração do Estado e do exército russos diante do impacto da Grande Guerra, é necessário apostar em um governo operário e camponês que, sem ser ainda “a ditadura do proletariado”, inicie uma série de medidas contra os interesses da burguesia, abrindo um período de confronto com ela. Trótski afirma que isso só é possível em contextos revolucionários, nos quais o impulso popular transversal por baixo torna possível essa saída governamental, e falará da possibilidade de um “início parlamentar da revolução proletária”.
Mas a palavra de ordem do “governo operário e camponês que rompa com a burguesia” se coloca num momento de impasse, no qual a crise das instituições ainda não conduziu a uma situação de duplo poder nem à desintegração da máquina estatal realmente existente e no qual o impulso das massas ainda não conseguiu gerar estruturas de auto-organização capazes de encarnar um duplo poder, de condicionar, dirigir, confrontar com a ação do executivo e, o mais importante, de constituir um embrião de direção política alternativa diante dele [do executivo] para as batalhas decisivas contra a reação. Certamente, a grande dificuldade estratégica nestes casos será, por um lado, conseguir que as forças revolucionárias tenham uma participação e inserção decisiva nos organismos de base unitários da frente única e um contato real com a superfície militante das grandes organizações de massa e, por outro lado, manter a delimitação política suficiente para ficar fora dos governos a fim de preservar total independência para apoiar as medidas positivas, combater nas ruas os ataques da reação, defender o governo quando necessário e criticar as capitulações até o ponto de se constituir como direção política alternativa quando o governo deixar de ser um estímulo para as ações de massa e passar a se converter em um dique de contenção para preservar a legalidade burguesa. Embora os escritos de Trótski tenham se centrado fundamentalmente nos casos da França e da Espanha em meados dos anos 30, toda a problemática estratégica que descreviam voltou a se manifestar em toda a sua complexidade em experiências revolucionárias muito mais recentes, como a já mencionada Unidade Popular chilena ou a Revolução Portuguesa, processos dos quais podemos extrair muitos aprendizados para os dias de hoje, dada a sua maior proximidade no tempo e a semelhança de suas formações sociais.
Por fim, podemos afirmar, sem risco excessivo de errar, que os escritos de Trótski desse período, sobre a França, os Estados Unidos, a Itália, com algumas nuances sobre a Espanha (é o caso em que talvez a crítica de aplicar analogias mecânicas com a Revolução Russa em alguns de seus escritos seja mais justificada) e, sobretudo, a respeito da luta contra o fascismo na Alemanha, são os mais ricos em relação à análise da natureza do Estado capitalista, das conjunturas e crises políticas e, por último, mas não menos importante, abordando a construção de organizações revolucionárias em um cenário dinâmico e em transformação, com giros imprevistos e quebras intempestivas.
Não há socialismo sem democracia, nem democracia sem socialismo
Um quarto eixo do pensamento do revolucionário ucraniano é a análise do, e a luta contra o, fenômeno estalinista. De fato, Trótski teve o papel ingrato, após a morte de Rosa Luxemburgo, Lênin e Gramsci, de ser o último marxista clássico de seu tempo dotado da honestidade intelectual e da coragem política e pessoal suficiente para não se curvar diante do fato consumado e ousar aplicar à URSS o método de análise marxista. Aqui nos encontramos novamente com um pensamento preciso e dialético, dinâmico e concreto, capaz de medir as proporções, identificar as mudanças qualitativas e evidenciar as conexões entre as dimensões nacional e internacional dos processos. Independentemente dos limites e problemas de algumas de suas caracterizações, no contexto dos anos sua contribuição é incomparável. Hoje é sem dúvida insuficiente, mas segue sendo incontornável para voltar aos fenômenos que ele abordou: a saber, a burocratização, a longa crise e o colapso final do Estado proveniente da primeira revolução operária da história; enigma desconcertante e drama dilacerante do grande acontecimento fundador do século 20, diante do qual a totalidade de suas correntes políticas tiveram que se definir.
Quais são os eixos da análise de Trótski, e mais amplamente da Oposição de Esquerda, sobre o fenômeno estalinista?
Por um lado, estudará o desenvolvimento da burocracia, que atribuirá, grosso modo, a uma combinação de dois grandes fatores.
- O peso da divisão de classe e técnica do trabalho, compartilhada, até certo ponto, por todas as sociedades modernas e em desenvolvimento que coexistirá inevitavelmente com as aspirações igualitárias e participativas durante um longo período de transição ao socialismo.
- A escassez e a penúria na URSS dos anos 20, agudizadas pelos estragos acumulados da guerra mundial e da guerra civil. Para exemplificar seus efeitos, Trótski utilizou uma imagem muito gráfica: quando há escassez formam-se filas, para vigiar as filas é preciso ter vigilantes e, dado que estes têm um papel importante, nunca serão os últimos a comer. O exemplo ilustra bem como a escassez cria o marco psicológico propício aos privilégios de dirigentes e administradores – já em 1926 o salário de um [funcionário] permanente do partido de baixo escalão era 5 ou 6 vezes o de um operário.
É verdade que Trótski atribuirá muita importância aos fatores materiais da burocratização – estamos falando de uma verdadeira contrarrevolução política e social na qual a burocracia passa de 750.000 membros em 1928 para 7.500.000 em 1939 (Lewin) –, mas também descreverá as lógicas políticas que levarão ao regime stalinista. As dinâmicas militarizadas dos tempos da guerra civil, o que foi um dos altos preços a se pagar por conseguir a vitória contra os brancos – do que o próprio Trótski, organizador da insurreição de Outubro e do Exército Vermelho, será um dos grandes arquitetos –, a progressiva lógica de nomeação de cargos por cima ao invés de sua eleição por baixo – frequentemente pela urgência para desempenhar tarefas, mas também pelo interesse de se criar camarilhas e grupos de pressão –, as diferenciações internas no aparato do partido e do Estado – que seu amigo Christian Rakovsky analisará de maneira precoce –, assim como um baixo nível cultural, a morte do melhor da militância bolchevique na guerra civil e, por fim, as reminiscências czaristas na sociedade russa favorecerão uma crescente diferenciação interna no interior mesmo da classe trabalhadora, o que irá preparando o terreno para o que Trótski chamará de “bonapartismo burocrático” do estalinismo.
Poderíamos afirmar que a terceira dimensão do estudo do estalinismo é a internacional. Insistiu-se pouco na enorme responsabilidade do reformismo em frear, quando não em esmagar, as tentativas de extensão da revolução social aos países desenvolvidos, em particular à Europa Central e muito especialmente à Alemanha, e sua consequente repercussão no esgotamento material e político da URSS. Sem dúvida, a derrota do Outubro alemão em 1923 marcou um ponto de inflexão, desmoralizou enormemente e abalou as expectativas da classe trabalhadora russa, o que em grande medida marcará o enfraquecimento da base social para a qual se dirigia a Oposição de Esquerda na URSS. No final dos anos 20 e início dos 30, a compreensão do papel híbrido e instável que a União Soviética desempenhará na política internacional e da conexão entre as políticas internas e a política externa da burocracia soviética e seu controle sobre o movimento comunista oficial terá um papel destacado na análise de Trótski.
Frequentemente as políticas conservadoras em relação ao campesinato rico e aos novos ricos da NEP no plano interno serão acompanhadas de um obstrucionismo, quando não de um bloqueio, de potencialidades revolucionárias no exterior (greve geral britânica de 1926 ou esmagamento do movimento comunista na China por sua subordinação ao Kuomintang em 1927), assim como o voluntarismo faraônico da coletivização forçada e da industrialização acelerada serão acompanhados de um giro ultraesquerdista e sectária (cujo expoente máximo foi a conhecida política do “social-fascismo” em relação à social-democracia, em particular na Alemanha, com resultados bastante conhecidos)… e, em diante da ameaça hitlerista, uma nova virada diplomática de 180 graus para uma aliança com a França e a Inglaterra no marco dos governos de Frente Popular (com o custo de sacrificar revoluções em curso – Espanha, 1936-37 – ou em gestação – França, julho-setembro 36) e o frenesi dos processos farsescos e o terror contrarrevolucionário na URSS… Dinâmicas que sem dúvida continuarão após a morte de Trótski e serão acentuadas durante a divisão do mundo de Yalta com uma autêntica apoteose da razão de Estado estalinista – sabotando abertamente processos revolucionários na China, na Grécia e na Iugoslávia (a posterior ruptura com o titoísmo e o maoísmo tem suas raízes nesses acontecimentos)… e impondo dinâmicas de unidade nacional com a burguesia na França e na Itália.
A explicação de Trótski é que o papel conservador da burocracia soviética na política internacional expressava um equilíbrio instável no qual, por um lado, buscava preservar seu monopólio do poder político na URSS – baseado, no mais, em seus privilégios materiais – às custas da classe trabalhadora soviética, impedindo que outras revoluções a desbancassem, sem perder, no entanto, sua influência sobre o movimento operário internacional. Por outro lado, a burocracia stalinista, que devia seu poder em parte à expropriação da burguesia, mas sobretudo ao bloqueio da transição ao socialismo iniciada em 1917, tampouco podia perpetuar seus privilégios de origem política e se converter em uma nova classe social sem restaurar o capitalismo, nem poderia ignorar completamente o destino do movimento operário internacional, fonte de um enorme poder diplomático e prestígio político. Consequentemente, dirá Trótski, o destino da URSS e da burocracia no poder depende do desenlace da luta de classes a nível internacional: qualquer avanço da revolução mundial a desestabilizará e permitirá uma ascensão dos trabalhadores na URSS (“revolução política” será a fórmula que ele usará); qualquer retrocesso reforçará o imperialismo, despolitizará o proletariado soviético, contribuirá para a cristalização e a autonomização da casta burocrática, mas esta não se transformará plenamente em uma nova classe proprietária sem uma restauração do capitalismo e o consequente retorno à propriedade privada dos meios de produção, hipótese que Trótski não deixou de contemplar desde o início e que efetivamente se materializará a partir de 1990.
A aposta de Trótski (que em alguns aspectos implicava uma autocrítica implícita e até explícita de sua política no poder entre 1919 e 1921) será uma industrialização progressiva, a restauração da democracia soviética, pluripartidarismo, a plena liberdade de expressão, organização e crítica; a autonomia dos sindicatos em relação ao Estado e uma política de apoio à revolução a nível internacional no marco da luta pela derrubada da ditadura policial estalinista. Que seus seguidores (Broué conta até 30.000 militantes na URSS) tenham sido derrotados e em sua maioria fisicamente exterminados não significa que não tiveram razão. Seu combate, e o holocausto com o qual sabiam que se deparariam nos campos, foi em nome do futuro da revolução mundial e para evitar o amálgama entre o ideal comunista de uma nova vida em um mundo justo e habitável e a catástrofe política e moral do estalinismo. Seu sacrifício não foi em vão. Porque eles foram, nós somos.
O último combate de Trótski
A conclusão lógica das análises de Trótski será a necessidade de transformá-las em projeto político, de converter o programa da democracia socialista em militância e organização. Após longos anos de luta de ideias para mudar a orientação da Internacional Comunista, com a catástrofe alemã de abril de 1933, a Oposição de Esquerda Internacional concluiu que a Internacional Comunista sobreviveria e que uma nova internacional deveria ser construída diante do perigo de colapso total do movimento de trabalhadores em geral e do comunista em particular. As ideias não viviam nos livros, mas na intervenção coletiva sobre a realidade. Eles sabiam que se a revolução não se estendesse aos principais países capitalistas e se não fosse restaurada a democracia soviética na URSS, cedo ou tarde, o então todo-poderoso “socialismo em só um país” levaria à restauração capitalista.
Diferente das anteriores, desenvolvidas graças às vitórias da esquerda, a Quarta Internacional foi fundada em um contexto catastrófico: a consolidação do estalinismo e a chegada de Hitler ao poder. A compreensão de ambos os fenômenos e a defesa de um programa de ação realista que poderia tê-los derrotado é sua razão de ser. Esses acontecimentos traumatizaram franjas inteiras de trabalhadores de todo o mundo e ainda pesam muito até hoje. A ideia de que o fascismo foi “irresistível”; que a revolução é um salto no vazio que leva à ditadura; que não há democracia fora do capitalismo; que é preciso moderação e consenso nas reivindicações sociais para não “provocar” a direita… são preconceitos difundidos entre as maiorias populares que votam na esquerda tradicional [mainstream], inclusive entre setores combativos. No entanto, embora seja verdade que Trótski subestimou a profundidade das derrotas e o ingrediente consensual ligado ao impulso desenvolvimentista e nacionalista do apogeu estalinista, ele partia da hipótese de que uma nova guerra mundial poderia levar ao colapso do estalinismo (talvez em uma analogia um tanto forçada com o caso da guerra franco-prussiana de 1870, a queda do bonapartismo e a Comuna de Paris) e a um relançamento da revolução em diversas zonas do mundo.
Nesse contexto, quando a força propulsora da Revolução de Outubro ainda seguia operando no mais profundo das camadas populares, uma pequena organização que mantivesse uma posição coerente poderia se transformar em um instrumento revolucionário útil, da maneira como as conferências de Zimmerwald e Kienthal tinham constituído o embrião da futura Internacional Comunista diante da capitulação da social-democracia em 1914. Sem espaço para dúvidas, a ordem de Stálin de liquidar o extraordinário historiador e único grande protagonista vivo de Outubro explica que as esperanças que orientavam este último coincidiam em grande medida com os temores obsessivos do primeiro. Como sabemos, certamente o desenlace da guerra mundial reforçará o estalinismo e lhe permitirá criar e tutelar as “democracias populares” a partir de cima na Europa Oriental… mas não é menos verdade que enfrentará, em maior ou menor medida, todas as revoluções genuínas posteriores, inaugurando a longa “crise do movimento comunista”. O marxismo revolucionário clássico da Quarta Internacional após a morte de Trótski, perseguido, caluniado e fragmentado, será condenado a uma tortuosa travessia do deserto às margens do movimento operário até a brecha do 68 internacional e o retorno das esperanças revolucionárias no Vietnã, em Praga, no México ou em Paris lhe permitirem emergir novamente das catacumbas (Anderson).
Construir à contracorrente diante do apocalipse
Dissemos acima que o jovem Trótski centrará sua atenção nas dinâmicas espontâneas de auto-organização, depois pensará as políticas unitárias e nos últimos anos de sua vida enriquecerá sua concepção do papel e das modalidades de construção da organização revolucionária. No período entre a ruptura definitiva com a Internacional Comunista estalinizada e seu assassinato em 1940, ele levantará até três hipóteses de construção partidária estreitamente ligadas às dinâmicas gerais e às diferenciações reais do movimento operário de cada país. Numa primeira etapa, buscará o diálgo com todas as correntes resultantes de diferenciações e rupturas produzidas pela estalinização dos partidos comunistas e pela radicalização das formações de origem social-democrata de esquerda ou “centristas” – ou seja, organizações em evolução mas sem uma perspectiva estratégica clara e que, por consequência, oscilam entre postulados revolucionários e reformistas.
Aqui se inscrevem os debates com o chamado Bureau de Londres e com as correntes que confluirão no POUM, o principal partido comunista independente da época. A segunda hipótese está relacionada à reação de radicalização anticapitalista experienciada por camadas significativas da social-democracia tradicional – particularmente entre suas juventudes – após o choque provocado pela vitória de Hitler na Alemanha. Aqui Trótski propõe a incorporação à social-democracia mantendo uma identidade pública para acompanhar a evolução revolucionária dessas correntes. Isso é conhecido como o “giro francês”. Infelizmente, apesar de avanços importantes em alguns países, esse potencial foi, em boa medida, recuperado e desviado pelo estalinismo no marco das frentes populares – um exemplo espetacular disso será a evolução das Juventudes Socialistas durante a Segunda República espanhola (Broué). A terceira hipótese foi a construção, em países sem tradição de representação política independente da classe trabalhadora, de partidos amplos e pluralistas apoiados na força dos sindicatos. Alguns de seus últimos escritos sobre os Estados Unidos vão nesta linha. Certamente, o mínimo que se pode dizer é que suas propostas se basearam em dinâmicas reais em andamento e não em hipóteses incertas e que sua aposta na construção de organizações revolucionárias sempre esteve relacionada com as grandes tarefas de desenvolvimento do movimento operário em seu conjunto. Nada mais distante das interpretações autoproclamatórias e autorreferenciais que tanto têm prejudicado e dilacerado o nosso movimento.
É verdade que o brilhantismo de muitas das propostas de Trótski nem sempre foi acompanhado pelos melhores métodos de direção da Quarta Internacional e, às vezes, seu estilo categórico e até excomungador não ajudou a construir no melhor dos climas de confiança e fraternidade. No entanto, também é verdade que a sua extraordinária lucidez quanto ao desenrolar dos acontecimentos, a tragédia pessoal em que esteve imerso no “planeta sem visto”, vendo a liquidação de familiares, camaradas e amigos, a acumulação de derrotas e a segunda guerra mundial como pano de fundo, por um lado, e a terrível desproporção entre tarefas e recursos humanos e materiais disponíveis, por outro, tornavam inevitável a exasperação e a violência de determinados debates.
Do pão às rosas: as reivindicações transitórias
Dissemos na seção anterior que Trótski, embora afirmasse a especificidade da construção partidária como tarefa, sempre relacionou suas modalidades aos objetivos gerais do movimento da classe trabalhadora em cada fase. Neste contexto, o desenvolvimento da abordagem transitória no manifesto de fundação da Quarta Internacional desempenhará um papel chave até os nossos dias. Consiste em pensar as palavras de ordem a serem desenvolvidas, não como um fetiche mágico com potencial intrínseco, mas como instrumentos de propaganda e agitação capazes de se conectar com o nível real de combatividade e consciência das maiorias populares, de relacionar as reivindicações mais imediatas e sentidas pela classe trabalhadora com reivindicações incompatíveis com o funcionamento normal do capitalismo e que questionem na prática os seus fundamentos. Em outras palavras, as reivindicações transitórias partem da defesa das necessidades básicas das massas e procuram conduzi-las, graças às suas experiências cotidianas de luta, à conclusão da necessidade da revolução socialista.
Sem dúvida, no período atual, reivindicações como a gratuidade da água e dos suprimentos básicos, a proibição de despejos e demissões em empresas com lucros, a nacionalização dos setores estratégicos de energia, transporte e financeiro, a reconversão ecológica da indústria, a expansão da saúde e da educação públicas e a expropriação imediata da máfia farmacêutica que está lucrando com a COVID-19 poderiam desempenhar esse papel transitório e contribuir para a generalização da consciência anticapitalista em todo o mundo.
Mudar a vida, transformar a sociedade
Não podemos concluir essas notas sem alguns apontamentos sobre a reflexão de Trótski a respeito da relação entre mudança política, transformação social, vida cotidiana e o lugar da cultura e da arte. Certamente Davidovich Bronstein seguiu claramente o lema de Rimbaud que abre esta última seção, bem como aquele que se tornaria famoso no movimento feminista, “o pessoal é político”. Na verdade, Trótski, sem dúvida o melhor escritor da tradição marxista (não à toa seu primeiro pseudônimo foi “A Caneta”), além de teórico marxista, historiador da Revolução Russa e biógrafo de Lênin e Stálin (algo que, pelo visto, precipitou seu assassinato), foi um grande pensador da cultura e da vida cotidiana e um extraordinário crítico literário (acredito que a compilação de escritos em Literatura e revolução é verdadeiramente fascinante).
Além disso, sua atenção às opressões específicas mostra que sua concepção de revolução permanente também incorporou uma dimensão de revolução político-cultural. Ele apoiará com Lênin o trabalho feminista no Partido Bolchevique e nos primeiros momentos da URSS, compreenderá a dimensão estratégica da emancipação das mulheres na construção de uma sociedade sem classes, centrando sua atenção em aspectos fundamentais até hoje, como a socialização do trabalho reprodutivo e o combate à violência e ao autoritarismo na instituição familiar. Compreenderá e estudará a opressão de povos racializados (como o afroamericano, de triste atualidade nos EUA), as discriminações religiosas (a questão judaica, sempre rejeitando as tentações separatistas e sionistas) e as opressões nacionais (tem escritos magníficos sobre a Catalunha). Ou seja, ele fugia do simplismo obreirista e entendia que nem todas as injustiças, de ontem e de hoje, se reduzem à exploração capitalista, abordando as profundas raízes do racismo, do machismo, da opressão nacional ou da perseguição religiosa. Eu modestamente acredito que sua abordagem destaca a densidade de sua concepção do socialismo como nova civilização, como início de uma verdadeira história humana.
Como crítico cultural participará de duas grandes polêmicas. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao debate sobre a cultura proletária na Rússia Soviética na década de 1920. Ele lembrará do contrassenso de desenvolver uma cultura operária dando as costas à cultura clássica, quando a tarefa do momento era lançar as bases de uma cultura socialista que superaria as limitações sociais e antropológicas da exploração de classe. Nesse sentido, Trótski (como já havia feito a propósito do debate militar) alertará contra a tentação populista de construir uma nova cultura baseada no mero voluntarismo, ignorando marcos culturais, científicos e técnicos anteriores. Afirmará sem ambiguidade a impossibilidade de construir uma cultura socialista verdadeiramente superior sem antes assimilar a cultura clássica. Ligada a esta está a outra grande polêmica, a defesa absoluta da liberdade como condição sine qua non para o desenvolvimento da arte e da cultura. Trótski, um grande conhecedor da literatura realista e da pintura francesa do século XIX (suas visitas ao Prado durante sua passagem por Madrid ou sua leitura altiva dos romances de Zola são conhecidas como demonstração de desprezo diante dos ataques sofridos durante as sessões do bureau político após a morte de Lênin), atacou frontalmente o mal chamado “realismo socialista”, uma espécie de vulgata de funcionários públicos que limitava a arte à mera função de propaganda exaltadora da obra do “pai dos povos” no país com a maior taxa de suicídio de intelectuais e artistas de seu tempo.
Menção especial merece a iniciativa lançada com o líder surrealista André Breton de um Manifesto por uma arte revolucionária independente, no qual é conhecida a anedota de que Breton defendeu um esboço inicial proclamando “toda liberdade na arte exceto para atacar a revolução”, ao que vai se opor Trótski, afirmando a liberdade absoluta da arte sem poréns nem condições. Acredito que esta afirmação tão libertária e tão necessária se conecta muito bem com uma das últimas frases pronunciadas pelo “O Velho” antes de morrer e que resume perfeitamente nossas tarefas hoje: “A vida é bela. Que as gerações futuras a libertem de todo o mal, da opressão e da violência e a desfrutem plenamente ”. Que assim seja.
* Andreu Coll é militante da organização Anticapitalistas, seção da IV Internacional no Estado Espanhol. Texto publicado originalmente na revista Jacobin América Latina. Esta tradução é de Ricardo Alves de Souza e Gabriel Casoni, publicada agora no Blog MRI com revisão de Pedro Barbosa
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