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Trótski, o bolchevismo e a questão do partido (Michael Löwy)


Trótski, o bolchevismo e a questão do partido


Michael Löwy

Tradução de Pedro Barbosa



Recordemos, em primeiro lugar, muito brevemente, alguns traços da teoria do partido no próprio Marx.


Para Marx, como para Engels, a revolução social só pode ser obra dos próprios trabalhadores. Desde os anos 1846-1848, eles começam a refletir sobre o lugar de um partido comunista no processo revolucionário. Segundo eles, o papel dos comunistas, ou dos revolucionários, consiste não em permanecer – como as diversas seitas utópicas – à margem do movimento operário, pregando a verdade ao povo através da propaganda, mas em participar estreitamente da luta de classes, ajudando o proletariado a encontrar, na sua própria prática histórica, o caminho da revolução. Por outro lado, o partido não pode mais desempenhar o papel do chefe jacobino ou da sociedade conspiratória babouvista [G. Babeuf] ou blanquista [A. Blanqui]; ele não pode se erigir acima das massas e “fazer a revolução” em seu lugar. Em outras palavras, o interesse geral das classes dominadas não deve ser alienado na pessoa de um “chefe incorruptível” ou uma “minoria esclarecida”, localizada acima das massas. Para a filosofia da práxis de Marx, os oprimidos, os trabalhadores, pelo contrário, tendem para a totalidade através de sua prática de luta de classes. O partido comunista não é a cristalização alienada da totalidade; ele é o mediador teórico e prático entre tal totalidade – o objetivo final do movimento operário – e cada momento parcial do processo histórico da luta de classes. Em suma, o partido revolucionário de Marx não é o herdeiro do “salvador supremo” burguês e utópico; ele é a vanguarda das classes dominadas que lutam para se emancipar; ele é o instrumento da tomada de consciência e da ação revolucionária das massas. Seu papel não é agir no lugar ou “acima” da classe operária, mas de orientá-la para o caminho de sua autolibertação, para a revolução social.


É esta concepção do partido que Marx e Engels vão propor no Manifesto do partido comunista (1848) e, mais tarde, na Primeira Internacional, cujo preâmbulo de seu Estatuto (1864), redigido por Marx, proclama: “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. E é a partir de tal perspectiva que eles vão se solidarizar com a Comuna de Paris em 1871 e combater, no interior do partido social-democrata alemão, as tendências autoritárias e ditatoriais representadas por Ferdinand Lassalle – o fundador da primeira Associação Geral dos Trabalhadores Alemães (1863) – assim como, mais tarde, as tendências reformistas representadas pela ala direita ao redor de Eduard Bernstein.


Trótski e o bolchevismo


Trótski considerava sua desconfiança, anterior a 1917, com relação ao bolchevismo leninista um dos grandes erros de sua vida política [1]. Esta desconfiança, que se expressou pela primeira vez durante o histórico Congresso da ruptura, em 1903, foi justificada por ele, em termos bastante próximos aos que se encontram em Rosa Luxemburgo, no panfleto Nossas tarefas políticas (1904). Como Rosa Luxemburgo, o jovem Trótski destacava que era necessário escolher entre o jacobinismo e o marxismo, porque o social-democrata revolucionário e o jacobino representam “dois mundos, duas doutrinas, duas táticas e duas mentalidades opostas”. O fio condutor [leitmotiv] do panfleto era o perigo do “substitucionismo” representado pelos métodos defendidos por Lênin, métodos que tendem a substituir a classe operária pelo partido e que, no interior do próprio partido, resultavam na seguinte evolução: “a organização do partido (um pequeno comitê [petit comité]) começa a substituir o conjunto do partido; depois o comitê central substitui a organização e, finalmente, um ‘ditador’ substitui o comitê central”. Contra este perigo, Trótski proclama orgulhosamente sua esperança de que “(...) um proletariado capaz de exercer sua ditadura sobre a sociedade não tolerará um poder ditatorial” (Deutscher, 1962, pp. 134, 132 e 135) [2].


Embora ele critique os bolcheviques, ele não se junta, no entanto, às teses puramente espontaneístas dos “economicistas”, mas tende a rejeitar os dois do mesmo modo: nenhum deles pode dirigir o proletariado, os primeiros (que ele chama “os políticos”) porque querem substituí-lo, os outros porque se arrastam atrás dele. Enquanto os “economicistas” “caminham na cauda da história”, os “políticos” “tentam transformar a história em sua própria cauda” (Trotsky, 1970, p. 127). Esta dupla demarcação também aparece nos escritos sobre a revolução de 1905, onde ele opõe o social-democrata marxista – para o qual a tomada do poder é “a ação consciente de uma classe revolucionária” – ao mesmo tempo ao blanquismo, que só se apoia na iniciativa de organizações conspirativas formadas independentemente das massas, e ao anarquismo, que remete à irrupção espontânea e elementar das massas. Na realidade, por trás desta “simetria” aparente está uma tendência visível a apagar o papel do partido no processo revolucionário, tendência que se expressa claramente em passagens como esta: “A vontade subjetiva do partido [...] é só uma força entre mil e ela está bem longe de aparecer como a mais importante” [3].


Um outro tema comum a Trótski e Rosa Luxemburgo, que surge após 1905 – tema que não será abandonado por Trótski em sua fase bolchevique, antes o contrário –, é o do conservadorismo ou da inércia organizacional dos grandes partidos socialistas, dos quais ele acredita, no entanto, que o proletariado europeu saberá se livrar, graças à influência da futura revolução russa [4].


O processo de conversão de Trótski ao bolchevismo começou sobretudo durante a guerra mundial. Os marcos principais desta “longa marcha em direção a Lênin” foram: a) a ruptura em fevereiro de 1915 do “bloco de agosto” (do qual Trótski participava, desde 1912, ao lado de mencheviques e certos bolcheviques dissidentes); b) a orientação pró bolchevique do jornal de Trótski, Naché Slovo, a partir de 1916; c) a colaboração de Trótski exilado na América com o círculo bolchevique que publicava Novyi Mir (1917). A adesão final se concluiu no fogo da revolução, em julho de 1917. Só se pode compreender a “bolchevização” de Trótski à luz dos acontecimentos chocantes do ano de 1917, que lhe mostraram os limites do movimento espontâneo das massas, o qual, deixado por si mesmo, permite as manobras dos “moderados” burgueses (fevereiro) ou leva a derrotas terríveis (julho); assim como a necessidade premente de uma organização de vanguarda solidamente enraizada no proletariado e capaz de dirigir a insurreição pela tomada do poder.


Duas outras considerações permitem esclarecer a decisão de Trótski: a) uma vez que seu “conciliacionismo” de 1912-1914 estava fundado sobretudo na hipótese de que uma crise revolucionária levaria à fusão das duas frações da social-democracia russa, a crise de 1917, criando um abismo entre o reformismo menchevique e a radicalização revolucionária do partido de Lênin, o obrigou a abandonar esta premissa equivocada e a escolher uma das duas correntes. É por esta razão que Lênin destacou, em um discurso de 14 de novembro de 1917, que depois de Trótski ter compreendido que a unidade com os mencheviques era impossível, “não houve melhor bolchevique do que Trótski”; b) o partido bolchevique ao qual ele aderiu não era idêntico ao de 1904. Não somente ele havia se tornado um partido inserido no movimento de massas, mas tinha operado, sob o impulso das teses de abril de Lênin, um giro à esquerda que incorporou o essencial da estratégia da revolução permanente de Trótski (alguns “velhos bolcheviques” até acusaram Lênin de ter se tornado “trotskista”...).


Para além disso, esta adesão não poderia ser feita sem uma “revisão dilacerante” por Trótski de suas antigas concepções organizacionais, revisão não somente em relação ao bolchevismo, mas, em geral, ao tema do papel da organização de vanguarda na revolução proletária. Uma leitura “sintomática” dos primeiros artigos “bolcheviques” de Trótski em 1917 permite identificar o início da virada em seu pensamento. Particularmente esclarecedor é um ensaio sobre a “tática internacional” de setembro de 1917, no qual ele cita suas observações de 1906 (do livro Balanço e perspectivas) sobre o conservadorismo dos partidos socialistas europeus. Mas, enquanto em 1906, esta análise concluía com uma proclamação vaga sobre a capacidade do proletariado a quebrar a camisa de força da rotina burocrática conservadora, em 1917 Trótski extrai uma conclusão totalmente diferente: “Novos tempos demandam organizações novas. No batismo do fogo, partidos revolucionários estão sendo criados em todos os lugares” (Trotsky, 1967, p. 42; destaque nosso) [5].


A derrota dos Espartaquistas alemães em 1919 foi provavelmente, aos olhos de Trótski, a confirmação final da justeza dos princípios organizacionais do bolchevismo. Ele via a causa principal das dificuldades da revolução alemã precisamente na “ausência de um partido revolucionário centralizado, liderado por uma direção combativa cuja autoridade seja universalmente aceita pelas massas trabalhadoras” (Trotsky, “Une révolution qui traîne en longueur”, 1959, p. 13). Desde esta época (1917-1919) e até a sua morte, a convicção da importância crucial do partido como direção revolucionária das massas e como condição absolutamente necessária para a tomada do poder pelo proletariado tornou-se um dos eixos centrais do sistema teórico elaborado por Trótski.


Durante um curto período (1920-1921), esta convicção assumirá uma forma extremada, caracterizada por um ultracentralismo autoritário (aliás, condenado por Lênin e pela maioria do partido bolchevique): a militarização do trabalho e a estatização dos sindicatos. Depois da superação do episódio “autoritário-militarista”, Trótski começa a desenvolver uma concepção nova de partido, que ele considerará sempre como a continuação autêntica do bolchevismo (seu movimento de oposição na URSS e depois no exílio será nomeado “bolchevique-leninista”). Esta concepção traduz uma confiança inabalável na potencialidade revolucionária das massas, ao mesmo tempo em que atribui uma importância absolutamente decisiva ao partido de vanguarda. O tema que une estas teses aparentemente contraditórias é o do papel conservador das direções burocráticas no interior do movimento operário.


Este tema é também o primeiro que aparece nos escritos após o interlúdio de 1920-1921. Ele surge desde 1922, quase imperceptivelmente [6], e se torna o centro de suas preocupações em 1923, quando ele denuncia, no Novo curso, a tendência progressiva do aparelho a “opor [...] os quadros dirigentes ao resto da massa, que não é para eles mais do que um objeto de ação”, assim como o perigo do “substitucionismo”, que surge quando os métodos do aparelho eliminam a democracia viva e ativa no interior do partido, isto é quando “a direção pelo partido é substituída pela administração por seus órgãos executivos (comitê, bureau, secretário, etc.)” (Trotsky, 1957, pp. 13 e 19).


A primeira formulação articulada e desenvolvida da teoria trotskista do partido se encontra na História da revolução russa (1932), onde ele estuda o problema do papel da direção e das massas na crise revolucionária, à luz da experiência de 1917 (mas também daquela das derrotas de 1919 e 1923 na Alemanha, de 1925-1927 na China e de 1931 na Espanha). Esta teoria é construída sobre dois eixos dialeticamente complementares: a) o traço mais incontestável de toda revolução é a intervenção direta das massas na história; b) “do mesmo modo que um ferreiro não pode agarrar de mãos nuas um ferro quente, o proletariado não pode, de mãos nuas, tomar o poder: ele precisa de uma organização apropriada a esta tarefa”: o partido, instrumento necessário e insubstituível das massas operárias revolucionárias.


No início da revolução, as massas são colocadas em movimento sobretudo pelo “sentimento amargo de não poder tolerar por mais tempo o antigo regime”. Apenas a direção da classe, o partido, possui um programa político claro. Mas este programa, por seu turno, só se torna efetivo quando é aprovado pelas massas, quando as massas tomam consciência dos problemas graças à sua experiência concreta no curso do processo revolucionário. É à luz desta dialética complexa entre partido/classe que é necessário compreender o papel dos bolcheviques em 1917: de um lado, “(...) o bolchevismo era absolutamente estranho ao desprezo aristocrático da experiência espontânea das massas. Ao contrário, os bolcheviques partem desta experiência e constroem a partir dela. Nisto residia uma de suas grandes vantagens.”; de outro lado, em outubro, o partido soube combinar a conspiração com a insurreição das massas, conspiração não de estilo blanquista, no lugar da insurreição, mas ao contrário, no interior dela, regulada com base no estado de espírito das massas [7].


Em 1933, após a derrota catastrófica do PC alemão (ou, mais exatamente, da “linha alemã” da Comintern [Internacional Comunista]), Trótski decide iniciar a construção de um novo partido mundial, a Quarta Internacional. A crítica implacável às direções burocráticas (social-democratas e/ou stalinistas) será então um dos temas políticos característicos do movimento trotskista em vias de se constituir. Nessa crítica, Trótski reivindica fortemente a herança espiritual de Rosa Luxemburgo, que “(...) opôs apaixonadamente a espontaneidade das ações das massas à política conservadora da direção social-democrata, particularmente após a revolução de 1905.”, oposição que era “de um extremo ao outro revolucionária e progressista” (Trotsky, “Rosa Luxemburg et la Quatrième Internationale”, 1959, p. 14).


Embora ele prestasse com prazer homenagem à Rosa Luxemburgo, Trótski via sobretudo o seu movimento como o herdeiro legítimo do bolchevismo, que ele defende em um texto polêmico contra Boris Souvarine e outros, rejeitando categoricamente a tese que fazia dos bolcheviques os responsáveis pelo stalinismo e destacando novamente o papel de um partido de tipo bolchevique como instrumento indispensável à autoemancipação das massas [8]. Essa problemática se encontra em um célebre panfleto da mesma época, A nossa moral e a deles (1938), onde ele defende a tradição bolchevique contra as acusações de “imoralismo maquiavélico”. Seu ponto de partida metodológico é a interdependência dialética entre fins e meios. Ou, como “a emancipação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores”, um verdadeiro partido revolucionário não pode empregar meios, procedimentos e métodos que “(...) tentem fazer as massas felizes sem seu próprio apoio ou que diminuam a confiança das massas em si próprias e em sua organização, substituindo isso pela adoração dos ‘chefes.’”.


No entanto, em um escrito de janeiro de 1940, pouco antes de seu assassinato, Trótski (Trotsky, 1969, p. 97) reconhece que sua crítica do centralismo bolchevique, em 1904, em Nossas tarefas políticas, não estava inteiramente equivocada: embora fosse verdade que o panfleto fosse injusto em relação a Lênin, ele ao menos continha uma apreciação correta das atitudes dos “homens de comitê” do aparelho bolchevique.


Nota da tradução: este artigo corresponde a duas passagens extraídas do artigo “A teoria marxista do partido” (2009), de Michael Löwy. O artigo foi integralmente traduzido e será publicado, em um futuro próximo, na revista Crítica Marxista.


Notas [1] Lênin, por outro lado, insistiu em seu “Testamento” de dezembro de 1922: não se deveria repreender Trótski por seu “não-bolchevismo” passado. [2] Na visão de Deutscher, este panfleto era completamente injusto em relação a Lênin, mas constituía, por outro lado – com uma intuição visionária –, um espelho fiel do futuro stalinista da URSS (ibid., pp. 138-140). [3] Ver L. Trotsky (1962b, p. 229, e 1923, p. 221). [4] L. Trotsky (1962b, p. 246) : “Os partidos socialistas da Europa, sobretudo o maior deles, o partido social-democrata alemão, desenvolveram seu conservadorismo na medida em que as grandes massas abraçaram o socialismo e se tornaram organizadas e disciplinadas [...]. A enorme influência da revolução russa mostra que ela destruirá a rotina e o conservadorismo do partido, e colocará na ordem do dia a questão da prova de forças aberta entre o proletariado e a reação capitalista”. Trótski citará o início desta passagem em 1917, mas extraindo uma outra conclusão. [5] Em um outro artigo do mesmo período, Trótski declara, enquanto bolchevique: “Incumbe hoje ao nosso partido, à sua energia, solicitude e insistência, extrair todas as conclusões inexoráveis da situação presente e, à frente das massas exaustas e deserdadas, engajar-se numa batalha determinada por sua ditadura revolucionária” (ibid., p. 33). [6] Ver sobre este tema I. Deutscher (1964, pp. 84-87). [7] Ver L. Trotsky (1962a, pp. 13, 908, 13, 717 e 909-911). [8] L. Trotsky, Bolchévisme ou stalinisme (1937): “Na vanguarda revolucionária do proletariado organizado em partido se cristaliza a tendência das massas para alcançar sua emancipação. Sem a confiança da classe na vanguarda, sem o apoio da classe à vanguarda, não pode haver conquista do poder”.


Referências bibliográficas

DEUTSCHER, Isaac. Trotsky: I – Le prophète armé. Paris: Julliard, 1962.

TROTSKY, Léon. 1905 (1909). Paris: Librairie de l’Humanité, 1923.

_____. “Cours nouveau” (1923). In: Les bolcheviks contre Staline 1923-1928. Paris: IVe Internationale, 1957.

_____. Histoire de la Révolution Russe. Paris: Le Seuil, 1962a.

_____. Nos tâches politiques. Paris: Pierre Belfond, 1970.

_____. Results and Prospects (1906). London: New Park Publications, 1962b.

_____. “Rosa Luxemburg et la Quatrième Internationale” (1935). In: “La Révolution allemande de 1919-1920”, La Vérité, 1-2-1959.

_____. Stalin (1940). Vol. 1. London: Panther, 1969.

_____. “Une révolution qui traîne en longueur”, Pravda, 23 avril 1919. In: “La Révolution allemande de 1918-1919”, supplément à La Vérité, 1-2-1959.

_____. What Next? (1917). Colombo, Ceylon: A Young Socialist Publication, 1967.

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