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Rumo a um marxismo queer? (Peter Drucker)




Rumo a um marxismo queer?

Peter Drucker

Tradução de Marian Gabani

Revisão de Pedro Barbosa

Peter Drucker resenha dois livros sobre sexualidade, socialismo e marxismo queer.


Abordagens acadêmicas da sexualidade, desde os anos 1980, têm cada vez mais se divorciado da prática da política sexual, e ambas as esferas parecem ter desistido de tentativas anteriores de se engajar com o Marxismo. Agora, isso pode estar mudando. Um novo livro estimulante de Kevin Floyd (The Reification of Desire: Toward a Queer Marxism [A reificação do desejo: rumo a um marxismo queer], Kevin Floyd. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009, 271 páginas) argumenta que as pessoas nos estudos queer estão prestando mais atenção ao "poder explicativo" do marxismo. Do lado ativista, Sherry Wolf, da Organização Socialista Internacional (ISO, em inglês) realizou um esforço impressionante (Sexuality and Socialism: History, Politics, and Theory of LGBT Liberation [Sexualidade e socialismo: história, política e teoria da libertação LGBT], Sherry Wolf, Chicago: Haymarket Books, 2009) para apresentar um resumo da teoria e prática LGBT (lésbicas/gays/bissexuais/trans) a partir de uma perspectiva marxista.


Ambos os livros são contribuições muito úteis. O de Wolf tem, particularmente, como ponto forte, o ativismo de trabalhadores gays, os perigos do Partido Democrata e a lógica falha do determinismo biológico. Floyd aplica conceitos marxistas desenvolvidos pelo húngaro György Lukács de maneiras fascinantes a problemas de sexualidade e da teoria queer mais recente.


Infelizmente, ambas as obras refletem – de lados opostos da divisão – o estranhamento entre política e academia. Wolf leva pouco em conta a contribuição dos estudos queer e de gênero mais recentes. Floyd (que é professor de Inglês) foca mais em romances como "O sol também se levanta", de Hemingway, e em filmes como "Perdidos na noite" do que em política.


Ao mesmo tempo, esses livros tão distintos têm algumas limitações em comum. Nenhum deles retoma muito o pensamento feminista-socialista que foi se desenvolvendo desde os anos 1970. O marxismo de Wolf relaciona a libertação das mulheres com a das pessoas LGBT, mas sem integrar de forma satisfatória o feminismo. Floyd faz conexões importantes entre gênero e sexualidade, mas foca de maneira unilateral nos homens gays de classe média dos Estados Unidos. Ainda, embora ambos os livros mostrem o caráter histórico das categorias de heterossexualidade e homossexualidade, nenhum deles trata dos esforços queer radicais de hoje para desafiar o binarismo hétero/homo.


Os pontos fortes de "Sexuality and Socialism", de Sherry Wolf, são suas seções sobre classe e política partidária. Ela tem uma percepção afiada, apoiada por dados estatísticos, das divisões de classe nas comunidades LGBTs. Sua descrição da cena comercial gay, da burguesia lésbica/gay e da ascensão dos “homocons” [homossexuais conservadores] é implacável. O livro também apresenta um panorama sólido e útil da organização de trabalhadores lésbicas/gays. Acertadamente insiste que "Qualquer tentativa de viver uma vida de liberdade sexual sob as atuais circunstâncias materiais irá sempre se defrontar com as reais limitações de existência diária das pessoas” (276).


Um ponto particularmente forte explorado em "Sexuality and Socialism" é a história da subordinação de lésbicas e gays ao Partido Democrata. Apesar do cumprimento tardio, por parte de Obama, da promessa feita por Bill Clinton em 1992 de eliminar a discriminação aos homossexuais nas instituições militares, a conclusão de Wolf aponta bem: a relação de ativistas LGBT com o Partido Democrata tem sido "disfuncional... – os Democratas cortejam o dinheiro e os votos de gays e lésbicas, mas oferecem-lhes poucos ganhos" (139).


Os democratas no Congresso ajudaram a passar a Lei de Defesa do Matrimônio (Defense of Marriage Act) e impediram que os Estados Unidos tivessem uma lei nacional contra a discriminação, anos depois de a maioria dos outros países capitalistas avançados já terem aprovado algo dessa ordem.


Teoria desigual


A base teórica da política de Wolf é um tanto desigual. Seu ponto de partida é, creio, correto: "A opressão das LGBTs, assim como a opressão das mulheres, está amarrada à centralidade da família nuclear como um dos meios do capitalismo de inculcar normas de gênero e terceirizar o cuidado de atuais e futuras gerações de trabalhadores, de forma a manter um baixo custo ao Estado” (19).


Como ela escreve, a partir da coleta de evidência história, foi o capitalismo que "criou as condições para que as pessoas tivessem uma vida íntima baseada em desejo pessoal" (21). Ela cita o ensaio de John D’Emilio “Capitalism and Gay Identity” [Capitalismo e identidade gay] para explicar como isso se deu no desenvolvimento das comunidades e identidades lésbicas e gays nos séculos XIX e XX. Wolf apresenta uma breve resenha de trabalhos recentes sobre a história gay e lésbica nos EUA.


Em um dos capítulos mais valiosos, Wolf mostra a superioridade da abordagem sócio-histórica em detrimento do determinismo biológico que permeia a mídia. Contrariando a maioria dos "jornalistas científicos", ela disseca as falácias que subjazem aos estudos que apontam para a possível existência de um "gene gay”.


Ela analisa de maneira luminosa e com profundidade os estudos sobre desenvolvimento sexual na infância. Em suas palavras, "a prevalência do binarismo sexual na maior parte dos estudos sobre o gene gay se opõe tanto à pesquisa empírica de longa data quanto às experiências vividas de ao menos algumas pessoas LGBTs: muito da identidade sexual é fluido, não fixo” (217-8).


Dessa forma, a análise de Wolf converge com as análises feministas-socialistas da opressão e libertação de LGBTs que se desenvolveu no início dos anos 1970. No entanto, ela evita usar a palavra "feminista". Isso não é uma mera questão semântica. Tem raízes profundas na tradição marxista, assim como raízes mais recentes na corrente política da própria Wolf.


Quase todos os marxistas da Segunda e da Terceira Internacionais, incluindo pensadoras pioneiras na questão da libertação das mulheres, como Clara Zetkin, rejeitavam o feminismo como uma ideologia de classe média, e recusavam a ideia de um movimento de mulheres independente, amplo e inter-classes [policlassista] [“cross-class”]. Foi apenas na década de 1970 que feministas-socialistas começaram a elaborar uma nova síntese do marxismo e do feminismo, que, gradualmente, foi incorporada por muitas correntes marxistas.


A própria organização de Wolf, a ISO, teve, em princípio, um papel significativo nesse avanço feminista-socialista; uma de suas primeiras líderes, Barbara Winslow, foi uma proeminente militante pelos direitos reprodutivos, assim como uma teórica feminista-socialista. No início da década de 1980, no entanto, a organização irmã da ISO no Reino Unido, após mudar seu nome para Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party, SWP), desviou-se de aprender com os movimentos sociais mais amplos e caminhou em direção a uma versão autoproclamatória da construção partidária leninista. A organização dissolveu o jornal de mulheres autônomo que até então patrocinava, o Women's Voice, declarou que o livro "A origem da família, da propriedade privada e do Estado", de Friedrich Engels, ainda era um texto básico sólido sobre a emancipação das mulheres, e essencialmente expurgou Winslow quando ela protestou.


A ISO rompeu com o SWP britânico há alguns anos, e agora está livre para repensar seu posicionamento sobre o feminismo. Infelizmente, "Sexuality and Socialism" sugere que isso não tenha acontecido. Wolf raramente menciona o feminismo, a não ser para atacar o que ela chama de "teoria do patriarcado", a ideia de que a dominação das mulheres pelos homens é um sistema independente de opressão separado do capitalismo.


Em momento algum Wolf menciona o extenso e sofisticado debate entre as feministas-socialistas sobre esse tema, começando com o artigo pioneiro de 1980 de Iris Young, “Socialist Feminism and the Limits of Dual Systems Theory[i]. Ela não se engaja de forma alguma na análise que muitas feministas-socialistas compartilham hoje do capitalismo patriarcal como um sistema unificado no qual tanto gênero quanto classe são "contradições em movimento" (nas palavras de Stephanie Coontz).


Wolf ainda acredita que "Marx e Engels... fornecem as ferramentas teóricas necessárias tanto para analisar quanto para conduzir uma batalha vitoriosa contra a opressão [LGBT]” (9-10). Ela faz a afirmação questionável (baseada em apenas algumas poucas referências de um extenso debate feminista) de que "as conclusões de Engels [na “Origem da Família...”] têm sido confirmadas por pesquisas históricas mais recentes” (26).


Essencialmente, ela atribui aos marxistas o entendimento de que a classe dominante divide para dominar. Essa é uma ideia útil, até certo ponto. Mas não é suficiente para entender o poder da norma heterossexual, ou a persistência do preconceito anti-LGBT mesmo na ausência de uma influência direta ou visível da classe dominante.


“Polindo uma merda”


Wolf acertadamente defende algumas das primeiras iniciativas do Partido Social-Democrata Alemão e da Revolução Russa, refutando distorções puramente anti-socialistas. Ela destaca a descriminalização da homossexualidade nos primórdios do regime soviético. Mas seu relato, baseado amplamente no indispensável trabalho do historiador Dan Healey, escolhe a dedo os pontos fortes e minimiza os problemas.


Por exemplo, ela rejeita a crítica de Healey aos comentários depreciativos de Lenin a respeito dos esforços de Zetkin e Alexandra Kollontai para a promoção da liberdade sexual. Wolf atribui a culpa das limitações dos bolcheviques inteiramente às "condições impossíveis com a qual os revolucionários se depararam” (99). 90 anos mais tarde, os bolcheviques não necessitam desse tipo de defesa acrítica.

Os leitores de "Against the Current" irão concordar com Wolf que, mais adiante, a homofobia soviética, chinesa e cubana refletiram o desvio, por parte desses regimes, da essência democrática do marxismo, não a inerente homofobia do marxismo. Mas ela vai além: descarta como um mito a ideia de uma pressão homofóbica dentro do Marxismo [ii].


Após citar alguns notórios comentários homofóbicos das cartas de Marx e Engels – com direito a um comentário jocoso sobre o medo de serem fodidos – ela comenta: "Não faz sentido tentar polir uma merda aqui" (77-8). No entanto, ela segue tentando fazer algo muito semelhante. Diante da sugestão feita por Marx de que Engels atacasse o socialista gay Johann von Schweitzer fazendo circular piadas homofóbicas a seu respeito, a discussão de Wolf a respeito dos pecados políticos de Von Schweitzer é, na melhor das hipóteses, irrelevante.


A ausência, em Wolf, de um marxismo crítico que integre teoricamente o feminismo tem consequências políticas. Com base em seu entendimento da dominação masculina e da dominação de classe como distintas, embora entrelaçadas, feministas-socialistas defendem um movimento independente de mulheres que escolha suas lideranças e se desenvolva em paralelo a um movimento independente de trabalhadores – em ambos os movimentos, feministas-socialistas precisam lutar por suas políticas.


Na ausência dessa base teórica, Wolf nunca advoga em seu livro por um movimento independente de mulheres ou LGBT. Dadas as práticas manipulativas de alguns grupos que ajudaram a desacreditar o marxismo no movimento LGBT e em outros movimentos, isso é um problema.


O debate sobre o casamento


A ausência, em Wolf, de uma política feminista explícita tem consequência também no debate político em que "Sexuality and Socialism" mais se foca: casamento entre pessoas do mesmo sexo. Sua defesa enérgica da igualdade de direitos nos casamentos entre pessoas do mesmo sexo se baseia nas necessidades práticas de parceiros do mesmo sexo, como acesso à saúde, questões tributárias, de imigração e de moradia. Mas ela não deixa espaço o bastante para uma crítica da própria instituição do casamento enquanto tal.


Isso é inconsistente com sua crítica do modo pelo qual a família nuclear no capitalismo privatiza a satisfação de necessidades sociais. Wolf argumenta que a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo "cria um confronto óbvio com a própria ideia de que há algo de natural na família nuclear heterossexual” (36), sem, no entanto, considerar como a expansão do casamento entre pessoas do mesmo sexo poderia ampliar o domínio da família nuclear.


Ela reconhece em uma frase que Judith Butler, provavelmente a teórica queer mais influente hoje, se opõe a ataques homofóbicos contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo; então, na frase seguinte, Wolf se vira para atacar Butler por sugerir que um foco nessa demanda "de algum modo desvaloriza os estilos de vida alternativos de pessoas LGBTs sem parceiros ou com múltiplos parceiros, e procura promover uma imagem de pessoas gays como 'casais íntegros, sancionados pelo Estado ou pela religião'". Bem, e não é isso? [iii] Por mais que o casamento tenha evoluído ao longo do último século, não é ainda parte da família nuclear?


Isso segue o padrão geral em "Sexuality and Socialism" de desconsiderar o que Wolf chama de "separatismo gay" ou "políticas identitárias" – incluindo muito do ativismo radical LGBT. Ela tem uma longa diatribe contra a organização ACT UP, na qual se utiliza de críticas da direita e da esquerda quase que indiscriminadamente. Sua narrativa minimiza o alcance da organização – quantos grupos progressistas são capazes de levar 500 pessoas semanalmente a um encontro geral, como a ACT UP de Nova Iorque fazia em seu auge? – e suas vitórias conquistadas.


Em ao menos um ponto ela traz uma informação incorreta: argumenta que a ACT UP iniciou sua luta por um sistema de saúde universal apenas em 2007 (189). Um comitê da ACT UP já trabalhava duro no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 na criação de uma coalizão para uma marcha nacional para pagantes individuais de seguro de saúde. Os esforços falharam, não por falta de suporte da ACT UP, mas porque os sindicatos progressistas e a NOW nunca se comprometeram com dinheiro ou pessoal. O tom de auto-afirmação, e mesmo de ressentimento, da Queer Nation no início dos anos 1990 era em larga medida uma resposta à falta de solidariedade daqueles que deveriam ter sido aliados das pessoas LGBTs [iv].


Wolf tem pouca simpatia por atuais ativistas radicais com identificação queer, admitindo um desgosto pessoal pelo termo "queer". Seu pedido por uma "trégua na questão da nomenclatura LGBT" e seu argumento de que ela, assim como outras pessoas oprimidas, tem o direito de escolher por qual termo quer ser chamada parecem razoáveis (17-8). Mas o problema é mais profundo. Ela vê a linguagem provocativa e as táticas dxs ativistas queers como um "abraço ao exílio social” (184).


Wolf falha em reconhecer a raiva legítima das pessoas queer em relação à norma heterossexual que permeia a sociedade, assim como a criatividade queer ao desafiá-la [v]. Ela até mesmo rejeita o conceito de "sociedade hétero" de imediato, argumentando que é errado aplicar o mesmo conceito para pessoas hétero da classe trabalhadora e da classe média (198).


Sem qualquer simpatia pelo ativismo queer, Wolf demonstra pouca compreensão da teoria queer que algumas vezes a inspira. Sua longa crítica a Michel Foucault e à teoria queer levanta pontos válidos a respeito do distanciamento de classe. Mas joga em um mesmo balaio todxs xs pensadores que já foram chamados de "pós-modernistas".


Não há praticamente nenhuma menção às contribuições de Foucault e Butler. Por exemplo, ela não discute como Butler explora o modo como o gênero é "performativo": não apenas socialmente construído, mas criando papéis que devem ser reencenados e reinventados diariamente. Ela dá crédito a Butler pela ideia luminosa – crucial para o ativismo trans e intersexo – de que até mesmo o sexo, não apenas o gênero, pode às vezes ser uma construção sexual. Mas ela sugere que o questionamento de Butler da identidade mina a organização coletiva – uma implicação já rejeitada por Butler [vi].


Construindo a virilidade


Kevin Floyd é mais familiarizado que Wolf com a teoria queer contemporânea e mais afinado com essas ideias. Ele mostra que a masculinidade e a feminilidade "performativas" analisadas por Butler não são eternas, mas emergem de condições histórias específicas.


As sociedades capitalistas do século XIX estavam menos preocupadas com a masculinidade do que com a "virilidade" [manhood]. Tal como a masculinidade, virilidade era uma construção social, mas enfatizava o tipo de estrutura de personalidade rígida que era demandada para a participação masculina no processo de produção e na reprodução da classe trabalhadora. Masculinidade e feminilidade contemporâneas, com seu foco no comportamento diário e em vestimentas, são mais adequadas ao capitalismo de hoje, com sua dependência do consumo e do desejo que são necessários para estimular o consumo.


Por mais perspicaz que Floyd tenha sido nesse ponto, seu trabalho teria se beneficiado do trabalho de historiadoras feministas-socialistas que mapearam essa e outras transições na história social dos EUA. Stephanie Coontz, por exemplo, escreveu há cerca de vinte anos sobre as tendências socioeconômicas da década de 1890 a 1920 que motivaram essa mudança nos papéis de gênero:


“Os homens tiveram sua própria crise de identidade nesse período. Enquanto uma ordem política e de trabalho impessoal ignorava os valores, habilidades e reputações individuais dos homens, a masculinidade perdeu sua conexão orgânica com o trabalho e a política, sua base material. A perda de oportunidades para homens de classe média serem bem sucedidos como trabalhadores independentes, assim como a crescente subordinação de trabalhadores qualificados a uma gerência, entraram em contradição com as definições tradicionais do ‘ser homem’ [manliness]. As qualidades necessárias para que homens trabalhassem na América industrial agora eram quase femininas: tato, trabalho em equipe, capacidade de aceitar comandos. Novas definições de masculinidade que não derivavam diretamente do processo de trabalho precisavam ser construídas” [vii].


Infelizmente, não se encontram Coontz e outras feministas-socialistas nas notas de rodapé de Floyd. No entanto, Floyd não pode ser acusado de modismo ao se apoiar em pensadores marxistas do passado, como Lukács, que tornou o conceito de "totalidade" central em sua apresentação do marxismo na obra "História e Consciência de Classe", de 1922.


Para o materialismo histórico, economia, política e ideologia não podem ser entendidas como domínios separados, mas apenas como parte de uma estrutura integral. Floyd mostra que as estruturas de gênero e sexualidades podem e devem ser vistas como parte integral da totalidade capitalista. Gênero e sexualidade não são meros aspectos locais da formação social – embora muitos marxistas os considerem como tal – mas centrais para o processo de acumulação capitalista. Produção, reprodução e consumo são "generificados" desde sua concepção.


Outro conceito-chave que Floyd pega emprestado de Lukács é o de "reificação". Marx mostrou em “O capital” que mercadorias são fetichizadas nas sociedades capitalistas; pessoas atribuem um poder quase mágico a elas, o que tende a esconder as relações sociais que as tornam mercadorias e que lhes atribuem sua função social. Lukács se aprofundou na ideia ao desenvolver o conceito de reificação: um termo abrangente para os modos pelos quais as relações entre seres humanos estão disfarçados, nas sociedades capitalistas, como relações com, ou até mesmo entre, as coisas.


Para Floyd, homossexualidade e heterossexualidade, duas categorias que emergiram apenas no capitalismo, são exemplos de reificação. Apenas sob o capitalismo pessoas classificam de forma consistente e centralizam seu desejo de acordo com o sexo da pessoa ao qual ele é dirigido, abstraindo as categorias de masculinidade e feminilidade da rede de parentesco e laços sociais às quais outras sociedades as incorporaram.


Corpos masculinos e femininos são, pois, reduzidos a coisas que podem e devem ser obtidas, especialmente através da aquisição de todos os tipos de outras coisas (desde o corpo de academia até determinada marca de desodorante). Essa aplicação do conceito de reificação ao gênero e ao sexo explica o forte apego que as pessoas têm a suas identidades sexuais e de gênero de forma mais convincente que a invocação de Wolf do "dividir para dominar" por parte da classe dominante.


Como nota Floyd, Lukács criticou em 1967 seu uso anterior do conceito de reificação em "História e Consciência de Classe", ao escrever que ele havia ofuscado a diferença entre reificação e objetificação. Nas interações humanas, incluindo na produção e no sexo, as pessoas se alternam continuamente em serem sujeitos ativos e objetos passivos que são influenciados por outrem. Ao confundir essa objetificação temporária com a reificação permanente – ao sugerir que pessoas são reduzidas a coisas sempre que são influenciadas por outras pessoas – Lukács escreveu mais tarde que ele havia repudiado a base materialista do marxismo [viii].


Estranhamente, o próprio Floyd repete a confusão de Lukács, ao mesmo tempo em que a inverte. Ele enxerga a objetificação como uma parte inocente e até inevitável da sexualidade, e conclui que a reificação (como a reificação do desejo em desejo heterossexual ou homossexual) é igualmente inocente e inevitável. Ele vai além, argumentando que a reificação é essencial para a libertação sexual. Seguindo Foucault, Floyd diz que a reificação do desejo deveria ser celebrada como uma "condição de possibilidade para uma história complexa dos discursos, práticas, locais, subjetividades, imaginários, formações coletivas e aspirações coletivas sexuais não-normativas” (74-5). Ele sugere, por exemplo, que as imagens homossexuais em revistas de físico da década de 1950 tenham sido uma ruptura com a produção em massa do pós-guerra e minado a masculinidade dominante.


Homonormatividade


Como mostra Floyd, Herbert Marcuse foi um marxista que fez um trabalho excepcional em reconhecer o potencial papel das "perversões" reificadas na libertação sexual. No entanto, Floyd critica Marcuse por celebrar o Eros homossexual e outras "fantasias subversivas utópicas", mas não "a própria forma do termo 'heterossexual'" (150). Aqui Floyd rompe com os pioneiros mais radicais do movimento de libertação lésbica/gay da década de 1970 que, influenciados por Marcuse, viam como objetivo último a abolição tanto da heterossexualidade quanto da homossexualidade como categorias sociais [ix].


Teóricxs queer contemporâneos, como Lisa Duggan, estão explorando também os limites e tabus ("homonormatividade") da sexualidade gay contemporânea, desafiando organizações gays que ganharam respeitabilidade, e inspirando ativistas queer a desafiar limites. Como os liberacionistas gays dos anos 1960, queers de hoje criticam a cena comercial gay, que Marcuse via como parte da "dessublimação repressiva" do capitalismo tardio.


Por comparação, o modo pelo qual Floyd usa o marxismo para defender identidades gays reais – apesar de estar mais interessado em imagens do que em movimentos políticos, e menos ainda em esboçar um programa – deixa algumas questões políticas chave sem resposta. Ele sugere que as revistas de físico da década de 1950 e a cultura "gay clone" da década de 1970 "ativamente causaram estragos consideráveis na pretensa heterossexualidade da própria masculinidade” (164). Mas a história da libertação lésbica/gay em seu início sugere que tanto o potencial de subversão quanto o de conformação do gênero estavam presentes desde o início.


As duas tendências entraram em conflito, por exemplo, em 1969 em Nova Iorque no racha entre a Gay Liberation Front [Frente de Libertação Gay] – substancialmente radical e com muitas pautas – e a Gay Activists Alliance [Aliança de Ativistas Gay], de tática radical, mas de pauta única. Floyd contrasta os homens gays da New Left que admiravam os revolucionários "machos" heterossexuais com os gays "anti-macho", como xs Effeminists, Flaming Faggots e Revolucionárixs de Ação Travestis de Rua [Street Transvestites Action Revolutionaries], sem indicar qualquer preferência (168-70).


O argumento de Floyd de que o nicho de mercado gay constitui uma ruptura com a produção fordista de massa não se sustenta na história recente do capitalismo neoliberal. Os mercados de massa fordistas, embora em processo de relativo encolhimento devido à redução da renda do trabalhador, têm coexistido confortavelmente com o crescimento dos mercados de nicho capitalistas. Ele descreve como a expansão da cena comercial gay tem marginalizado e despossuído pessoas queer mais pobres, menos normativas e queers de cor, mas ele não explica a diferença crucial entre gay e queer.


Embora a aplicação de Floyd do conceito de reificação à sexualidade seja brilhante, não está isenta de críticas. O mesmo se aplica à sua concepção do capitalismo como totalidade. O marxista francês Louis Althusser, em seu "Ler o Capital", critica Lukács e outros por uma concepção de totalidade na qual desenvolvimentos em um nível do capitalismo são expressos simultaneamente em outros níveis. Formações sociais capitalistas de fato não se desenvolvem de maneira sincrônica, seja em diferentes níveis (econômico e cultural, por exemplo) ou em diferentes regiões (América do Norte e África). Floyd por vezes negligencia essa desigualdade no desenvolvimento capitalista e a relativa autonomia dos diferentes níveis.


Por exemplo, Floyd não dá nenhuma atenção ao passo mais lento e menos extenso com o qual a categoria "homossexualidade" influenciou no início os homens da classe trabalhadora em comparação com os homens de classe média (como documentado por Foucault e George Chauncey) [x]. Ele afirma que há uma "incerteza radical em curso, que questiona se a prática sexual gay masculina feminiliza algum dos homens envolvidos” (64); de fato, essa incerteza existe principalmente em momentos ou locais transicionais, entre um modelo transgênero que insiste que a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo feminiliza umx dxs parceirxs e um modelo gay que insiste que isso não acontece.


Floyd escreve sobre uma "matriz heterossexual" na qual "a identificação com o masculino pressupõe a exclusão do desejo por um objeto masculino" (164); mas é precisamente esta matriz que gradualmente pavimentou o caminho, no século XX, para um binarismo homo/heterossexual igualmente rígido, no qual tanto mulheres heterossexuais quanto homens gays podem desejar homens masculinos [xi].


Tampouco Floyd reconhece a importância desproporcional da transgeneridade entre as pessoas mais pobres de países dependentes. Também nos Estados Unidos, a política transgênera é cada vez mais a linha de frente do ativismo LGBT atual. Isso sugere que categorias de lésbica/gay, bissexual e heterossexual possam já estar perdendo alguma centralidade na política sexual. No entanto, Floyd ainda prioriza o homem gay de classe média em sua análise, e negligencia as brechas no capitalismo movido a crises que poderiam tornar possível começar a ir além dele.


Mas todas essas são discussões que o trabalho pioneiro de Floyd levanta e torna possíveis. Esperamos que os livros de Wolf e Floyd sejam apenas os primeiros de muitos a abrir o caminho para um marxismo queer revigorado.


ACT 151, março-abril 2011.


Notas

[i] Socialist Review no. 50/51 (summer 1980), 169-88, reimpresso em Rosemary Hennessy and Chrys Ingraham, Materialist Feminism: A Reader in Class, Difference, and Women’s Lives, New York: Routledge, 1997. [ii] Socialist Review no. 50/51 (summer 1980), 169-88, reimpresso em Rosemary Hennessy and Chrys Ingraham, Materialist Feminism: A Reader in Class, Difference, and Women’s Lives, New York: Routledge, 1997. [iii] Para ler uma tentativa de defesa do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo em articulação com uma crítica à instituição do casamento, ver o texto “On lesbian/gay liberation” adotado pelo 15º Congresso Mundial da Quarta Internacional (2003), http://www.internationalviewpoint.org/spip.php? Artigo 177, ponto 17. [iv] Para ler minha análise à época, ver Peter Drucker, “What is queer nationalism?” em Against the Current 43 (Mar./Apr. 1993).

[v] Para uma análise com mais nuances sobre o ativismo queer, ver Peter Drucker, “The new sexual radicalism,” Against the Current 146 (May-June 2010), http://www.solidarity-us.org/current/node/2803.

[vi] Para uma visão marxista crítica a respeito da teoria queer, ver Gabriel Girard, “Théories et militantismes queer: réflexion à partir de l’exemple français” (2009), http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article14760; uma versão mais curta e em inglês está disponível em http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article14759

[vii] Stephanie Coontz, The Social Origins of Private Life: A History of American Families, 1600-1900, London/New York: Verso, 1988, 339.

[viii] Georg Lukács, “Preface to the new edition” (1967), em History and Class Consciousness: Studies in Marxist Dialectics, Cambridge [Ma]: MIT Press, 1968, xxiii-xxv.

[ix] Ver Dennis Altman, “The end of the homosexual?” in Homosexual Oppression and Liberation, New York: Avon Books, 1971, 227-38; Mario Mieli, “Polymorphous ‘perversity,’ bisexuality and trans-sexuality”, in Homosexuality and Liberation: Elements of a Gay Critique, London: Gay Men’s Press, 1980, 23-31; David Fernbach, “Sexual liberation and gender liberation,” in The Spiral Path: A Gay Contribution to Human Survival, London: Gay Men’s Press, 1981, 105-12.

[x] Ver Michel Foucault, The History of Sexuality, Volume 1: An Introduction, New York: Pantheon, 1978, 121; George Chauncey, Gay New York: Gender, Urban Culture, and the Making of the Gay Male World, 1890-1940, New York: Basic Books, 1994, 27.

[xi] Floyd (91) dá um exemplo da localização dessa transição, quando uma personagem masculina em “O sol também se levanta”, de Hemingway, dirige-se a outra, estando na Espanha: “Eu gosto mais de você do que de qualquer outro no mundo”, acrescentando “Eu não poderia dizer-lhe isso em Nova Iorque. Isto significaria que eu era um viado” [“I’m fonder of you than anybody on earth,” adding, “I couldn’t tell you that in New York. It’d mean I was a faggot.”].

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