Revolução e democracia (François Sabado)
- Editor MRI
- 31 de mai. de 2020
- 6 min de leitura

Revolução e democracia
François Sabado
Tradução de João Vicente
Revisão de Pedro Barbosa
Se a democracia é definida como “o governo do povo, pelo povo, para o povo”, ela não tem limites. Tudo o que diz respeito à vida da "cidade" – a economia, a política, o social – não pode escapar dela. Toda arquitetura democrática deve, portanto, primeiro responder a esse imperativo: dar aos cidadãos/cidadãs os meios para decidir sobre todas as questões essenciais, no nível em que essas questões surgem.
A principal acusação que lançamos contra a democracia burguesa é que o essencial das escolhas políticas, sociais e econômicas escapam à vontade popular. Fundada sobre a propriedade privada e a exploração capitalista, ligada à uma estrutura de classes específica da sociedade burguesa, a democracia atual só poderia ser limitada a tal sociedade.
A democracia até o fim
Os objetivos, as prioridades e as necessidades da nossa sociedade são decididos, não pelas instituições da "democracia" (governo, parlamento, municípios...), mas sim pelo mercado. Essas decisões são tomadas por um punhado de grandes patrões e financistas que dominam o mercado e apenas prestam contas a seus acionistas.
Nossa concepção de democracia passa pela ruptura com essas regras do jogo para integrar o conjunto das atividades sociais e econômicas ao campo de tomada de decisão de todas as assembleias. As assembleias eleitas devem poder legislar sobre o conjunto das prioridades econômicas. Elas devem, se julgarem conveniente, poder proibir as demissões, executar medidas de emergência social, aumentar os salários, ponderar sobre esta ou aquela reestruturação econômica.
Esta democracia integral exige questionar o sacrossanto direito de propriedade e o controle absoluto do patronato sobre a economia, em outras palavras, [exige] caminhar na direção da apropriação pública e social das principais atividades econômicas, para melhor as controlar e dirigir. Ela é acompanhada também de um planejamento consciente da economia socializada no período de transição entre o capitalismo e o socialismo. A democracia até o fim, ou realizada, é anticapitalista.
Generalização do sufrágio universal
A democracia significa igualmente a generalização do voto e da eleição. “Um homem ou uma mulher equivalem a um voto”, sobre a base de um determinado território, é a fórmula do sufrágio universal. Antiga reivindicação do movimento operário contra todas as fórmulas de sufrágio censitário ou sufrágio restrito, a extensão e a generalização do sufrágio universal em uma sociedade em transição para o socialismo não devem sofrer hesitações ou ambiguidades. A eleição por sufrágio universal de todos os responsáveis estava no cerne da experiência da Comuna de Paris.
Estado burguês e democrático, instituições burguesas e sufrágio universal foram colocados no mesmo saco, ao passo que – tanto do ponto de vista histórico quanto do programático – é preciso, ao contrário, distingui-los. O sufrágio é a estrutura para a expressão de toda democracia. O Estado e as instituições burguesas constituem os instrumentos de dominação das classes dominantes no sistema capitalista.
Uma vez libertado de sua subordinação às relações mercantis, o sufrágio universal é, então, o princípio elementar de organização e de expressão da democracia. Esta apreciação tem implicações táticas e estratégicas para o movimento operário. Este último deve aparecer como a força que eleva a um nível jamais alcançado a prática da democracia. A generalização do voto sobre todas as questões essenciais, tanto na sociedade quanto nas empresas, a eleição democrática de todos os responsáveis.
Nesse sentido, tudo que está ligado ao sufrágio universal e mais geralmente às liberdades democráticas deve ser garantido e desenvolvido: direitos de expressão, direitos de organização, liberdade de imprensa, pluralismo sindical e político, representação proporcional das posições das correntes políticas, paridade homem-mulher, não cumulação de mandatos, possibilidade de destituição dos eleitos, referendos de iniciativa popular...
Nossa concepção não se reduz à eleição de representantes para as assembleias, ela deve integrar toda uma combinação de iniciativas e estruturas que favoreçam a participação popular. Finalmente, um governo do povo também é um governo "próximo" ao povo. A democracia supõe uma descentralização do poder e uma redistribuição das competências nos níveis local, regional e nacional, o mais próximo possível dos cidadãos. Todas as decisões devem ser tomadas soberanamente pelos conselhos municipais ou de empresas, salvo aquelas que exigem uma deliberação e uma decisão em nível superior.
Ruptura com o Estado burguês
No entanto, se o sufrágio universal exprime claramente o princípio necessário para o funcionamento da vida democrática, não é suficiente para estabelecer a lógica do conjunto das instituições que formam o "governo do povo, pelo povo, para o povo". Ele não anula a divisão da sociedade em classes sociais, nem o caráter de classe do Estado e das instituições, nem a dinâmica da luta entre as classes sociais fundamentais da sociedade, nem as perspectivas de transformação da sociedade.
As instituições da democracia parlamentar burguesa (aparelho de repressão, administração, Constituição, leis, regulamentos), que se apoiam na propriedade privada do capital e dos grandes meios de produção e de comunicação, estão a serviço da dominação das classes dominantes. Elas não podem servir de instrumento para derrubar essa dominação e para transferir o poder da classe burguesa para a classe operária.
A experiência histórica, assim como a política atual das classes dominantes, mostra a sua recusa de toda transformação radical e a violência com que elas se opõem à vontade popular. E quando os povos conquistam vitórias parlamentares, como na Espanha em julho de 1936 ou no Chile entre 1971 e 1973, as classes dominantes não hesitam em desprezar o sufrágio universal.
Esta abordagem permanece uma de nossas diferenças fundamentais em relação ao reformismo. Uma transformação radical da sociedade não pode se fazer no quadro das instituições burguesas, confiando nas eleições parlamentares para uma acumulação gradual de reformas e de conquistas de posições. A reação das classes dominantes e a forte coerência do sistema capitalista exige uma ruptura com ele.
A realização plena e completa da democracia exige o questionamento da propriedade privada do Capital e da velha máquina do Estado. Ela leva ao enfrentamento com o Estado burguês, em particular com seu aparelho de repressão que deve então ser quebrado. Dessas situações de crise revolucionária emergem novas estruturas de auto-organização e de poder popular.
Combinação de democracia direta e de democracia representativa (assembleias eleitas), essas instituições deverão constituir a expressão, ao mesmo tempo, do processo revolucionário e da soberania popular. Elas estarão então em posição de substituir as velhas instituições burguesas. Para assegurar sua legitimidade, essas novas instituições da democracia social (conselhos nas empresas e assembleias nos municípios, assembleias locais, regionais, nacionais de cidadãos ou de assalariados) deverão recorrer ao sufrágio universal.
Desse ponto de vista, se definirmos o sufrágio universal como a expressão do voto democrático – “um homem/uma mulher equivalem a um voto” –, ele pode abranger tanto o território do município quanto o das empresas. Se existem fórmulas em Lenin, Trotsky e sobretudo em Gramsci apresentando a democracia socialista ou o poder dos conselhos como uma democracia de “conselhos de fábrica” apoiada “sobre os grupos de produção”, a experiência histórica nos lembra que os eleitos da Comuna de Paris representavam assembleias eleitas por sufrágio universal e que os sovietes da revolução russa eram conselhos territoriais, acompanhados por conselhos operários nas empresas, conselhos de camponeses e conselhos de soldados.
Autogestão social e definhamento do Estado
Esta abordagem permite também considerar, depois da conquista do poder, uma democracia dos produtores livremente associados, baseada no sufrágio universal. Assembleias populares territoriais ou conselhos municipais eleitos podem coexistir com conselhos de trabalhadores eleitos pelos assalariados das empresas do município ou de um determinado território.
As estruturas de auto-organização (assembleias gerais, encontros, reuniões) apoiam e controlam permanentemente todos os conselhos, assembleias e representantes eleitos, favorecendo assim a construção do socialismo pela base. Certas experiências históricas colocaram na ordem do dia a possibilidade de um sistema de duas assembleias: uma eleita diretamente por sufrágio universal, a outra representando os setores sociais e as diversas formas de organização do poder popular. Elas podem expressar a exigência por expressão da democracia social e política.
Mas, em um tal sistema, as duas assembleias devem ter a mesma legitimidade democrática e, portanto, estar sujeitas à eleição por sufrágio universal. A assembleia dos setores sociais ou conselhos de trabalhadores não é um simples contrapoder [em relação] às assembleias territoriais. É um poder soberano.
Isso, portanto, nos leva a essa hipótese de optar, em uma sociedade em transição, por uma certa forma de "dualidade de poder", assegurando uma tensão entre a democracia política e social. Mas não é essa a expressão das contradições de uma sociedade de transição para o socialismo, em que dois processos coexistem e se cruzam: um definhamento do Estado e de suas instituições políticas, por um lado, e, por outro, a autogestão social, uma sociedade “dos produtores” livremente associados? E se surgirem conflitos ou contradições entre assembleias, caberia, então, ao povo soberano decidir, via referendo ou voto, por sufrágio universal.
Os ensinamentos das experiências históricas, da Revolução Francesa de 1789/1793 à Revolução Russa de 1917, passando pela Comuna de Paris de 1871, nos levam, após a liquidação das velhas instituições do Estado burguês, a colocar a ênfase na democracia autogerida do município ou da empresa e em uma combinação de assembleias de cidadãos e produtores que ampliam as condições do debate político e econômico.
Uma democracia socialista deveria significar não uma restrição, mas uma ampliação sem precedentes das liberdades democráticas, garantir um pluralismo político, o sufrágio universal mais equitativo possível, a representação de minorias.
Ela deveria começar a superar a divisão entre o econômico e o político, a cisão entre o produtor e o cidadão. Deveria estabelecer a responsabilidade dos eleitos diante de seus mandantes, favorecer tudo o que reduz a delegação de poder, a fim de que o Estado possa começar a definhar, enquanto corpo separado da sociedade.
Em resumo, a democracia socialista significa sempre mais democracia.
* Publicado em “Critique Communiste” nº 175, primavera de 2005.
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