Partidos de vanguarda
(março, 1983)
Ernest Mandel
Tradução de Vinicius Souza
Revisão de Pedro Barbosa
Abordar o problema dos partidos, da construção partidária e da necessidade do partido revolucionário de vanguarda, é apontar as peculiaridades de uma revolução socialista (ou, se você não gosta da palavra "revolução", uma transformação socialista da sociedade burguesa). A revolução socialista será a primeira revolução na história da humanidade que tenta remoldar a sociedade de um modo consciente, de acordo com um planejamento. Ela não entra em todos os detalhes, é claro, o que depende de condições concretas e da infraestrutura material da sociedade, que muda. Mas, no mínimo, é baseada em um planejamento de como uma sociedade sem classes deve ser e como se pode chegar lá. É também a primeira revolução na história que precisa de um alto nível de atividade e de auto-organização de toda a população trabalhadora, isto é, a esmagadora maioria dos homens e mulheres da sociedade. É a partir dessas duas características-chave de uma revolução socialista que se pode extrair imediatamente uma série de conclusões.
Você não pode ter uma revolução socialista espontânea. Você não pode fazer uma revolução socialista sem realmente tentar fazê-la. E você não pode ter uma revolução socialista comandada do topo, ordenada por algum líder ou grupo de líderes oniscientes. Você precisa dos dois ingredientes em uma revolução socialista: o nível mais alto de consciência possível e o nível mais alto de auto-organização e auto-atividade pelo segmento mais amplo possível da população. Todos os problemas das relações entre uma organização de vanguarda e as massas resultam dessa contradição básica.
Se olharmos para o mundo real, o desenvolvimento real da sociedade burguesa nos últimos cento e cinquenta anos (mais ou menos desde a origem do movimento operário moderno), novamente vemos essa notável contradição. Isso nos ajuda a superar uma das principais disputas sobre a classe trabalhadora e o movimento operário que tem existido há muito tempo, e que está bem no centro do debate político de hoje. A classe trabalhadora é um instrumento para a mudança social revolucionária? A classe trabalhadora está integrada na sociedade burguesa? Qual tem sido o seu verdadeiro papel nos últimos cento e cinquenta anos? O que o balanço histórico nos diz sobre essas questões?
A única conclusão que você pode extrair do movimento histórico real é que, em geral, na vida cotidiana, o que Lênin chamou de consciência sindical domina a classe trabalhadora. Eu a chamaria de consciência de classe elementar da classe trabalhadora. Isso não leva a uma revolta permanente e cotidiana contra o capitalismo, mas é absolutamente essencial e necessário, como Marx observou diversas vezes, para que uma revolta anticapitalista dos trabalhadores ocorra em algum momento. Se os trabalhadores não lutarem por salários mais altos, se não lutarem por uma jornada de trabalho mais curta, se não lutarem, digamos isso de maneira provocativa, pelas questões econômicas cotidianas, eles se tornam escravos desmoralizados. Com escravos desmoralizados você nunca irá fazer uma revolução socialista, ou mesmo obter uma solidariedade de classe elementar. Então eles têm de lutar por suas demandas imediatas. Mas a luta por essas demandas imediatas não os leva automática e espontaneamente a desafiar a existência da sociedade burguesa.
O outro lado da história também é verdade. Periodicamente, os trabalhadores se revoltam contra a sociedade burguesa, não em cem, quinhentos ou mil, mas aos milhões. No fim das contas, a história do século XX é a história das revoluções sociais. Qualquer um que negue isso deveria ler os livros de história novamente, para não mencionar os jornais. Não houve quase um único ano desde 1917, e em certo sentido desde 1905, sem uma revolução em algum lugar do mundo em que os trabalhadores não tenham participado de um modo bastante importante. É verdade que eles nem sempre constituíram a maioria dos combatentes da revolução. Mas isso vai mudar porque a classe trabalhadora se tornou uma maioria na sociedade em praticamente todos os países importantes do mundo. Então, periodicamente os trabalhadores se revoltam contra a sociedade burguesa, como atestam as estatísticas dos últimos vinte anos na Europa. Houve um real desafio dos trabalhadores contra a estrutura básica do capitalismo em 1960-61 na Bélgica, em 1968 na França, em 1968-69 na Itália, em 1974-75 em Portugal, parcialmente na Espanha em 1975-76. E o que estava acontecendo na Polônia em 1980-81 era, se não um desafio contra o capitalismo, certamente um desafio pelo socialismo. Portanto, esse é um quadro completamente diferente de uma classe trabalhadora permanentemente passiva, integrada e aburguesada. Mais de 45 milhões de trabalhadores participaram ativamente nessas lutas.
A conclusão que se pode extrair dessas características é que existe um desenvolvimento desigual da atividade de classe e um desenvolvimento desigual da consciência de classe na classe trabalhadora. Os trabalhadores não entram em greve todos os dias, eles não podem fazer isso da maneira como funcionam na economia capitalista. A maneira como eles têm de viver vendendo sua força de trabalho torna isso impossível. Eles morreriam de fome se entrassem em greve todos os dias. E eles certamente não podem fazer a revolução todos os dias, todos os anos, ou mesmo a cada cinco anos, por razões econômicas, sociais, culturais, políticas e psicológicas que não tenho tempo para explicitar. Então, você tem um desenvolvimento cíclico de militância e atividade de classe, que é parcialmente determinado por uma lógica interna. Se você luta por vários anos e a luta termina em derrotas graves, então você não começará a lutar no mesmo nível ou em um nível mais alto no ano seguinte à derrota. Você levará algum tempo para se recuperar; podem ser dez anos, quinze anos ou até vinte anos. O oposto também é verdade. Se você luta durante alguns anos com vitórias, mesmo vitórias médios, obtém impulso para lutar em uma escala cada vez mais ampla e em um nível cada vez mais alto. Portanto, temos esse movimento cíclico na história da luta de classes internacional, o que poderíamos descrever em detalhes. Muito estreitamente combinado com esse desenvolvimento desigual da militância de classe está um desenvolvimento desigual da consciência de classe, não necessariamente uma função mecânica da primeira. Você pode ter altos níveis de atividade de classe com um nível relativamente baixo de consciência de classe. E o oposto também é verdadeiro. Você pode ter níveis relativamente altos de consciência de classe com um nível mais baixo de militância de classe do que se poderia esperar. Estou falando, é claro, sobre consciência de classe de amplas massas, de milhões de pessoas, não consciência de classe de pequenas camadas de vanguarda.
A partir de todas essas distinções conceituais básicas, podemos concluir a necessidade de uma formação de vanguarda quase imediatamente. Você precisa de uma organização de vanguarda para superar o perigo potencial causado pelo desenvolvimento desigual da militância e da consciência de classe. Se os trabalhadores estivessem no ponto mais alto da militância e da consciência o tempo todo, você não precisaria de uma organização de vanguarda. Mas, infelizmente, eles não estão e não podem estar assim sob o capitalismo. Portanto, você precisa de um grupo de pessoas que encarnem um nível permanentemente alto de militância e atividade, e um nível permanentemente alto de consciência de classe. Depois de cada onda de aumento da luta de classes e aumento da consciência de classe, quando chega um ponto de inflexão e a atividade atual das massas diminui, a consciência cai para um nível mais baixo e a atividade cai para quase zero. A primeira função de uma organização revolucionária de vanguarda é manter a continuidade das aquisições teóricas, programáticas, políticas e organizativas da fase anterior de alta atividade de classe e alta consciência da classe trabalhadora. Ela serve como a memória permanente da classe e do movimento operário, memória que é codificada, de um modo ou de outro, em um programa no qual você pode educar a nova geração que, então, não precisa começar do zero em sua forma concreta de intervenção na luta de classes. Essa primeira função, então, é garantir a continuidade de lições extraídas da experiência histórica acumulada, porque é isso que um programa socialista é: a soma total das lições extraídas de todas as experiências de lutas de classe reais, revoluções reais e contrarrevoluções reais dos últimos cento e cinquenta anos. Pouquíssimas pessoas são capazes de lidar com isso e ninguém, absolutamente ninguém, é capaz de lidar com isso sozinho. Você precisa de uma organização, e dada a natureza mundial dessa experiência, você precisa simultaneamente de uma organização nacional e mundial para poder avaliar constantemente essa soma total de experiência histórica e atual de luta de classes e revolução, para enriquecê-la com novas lições extraídas de novas revoluções, para torná-la cada vez mais adequada às necessidades das lutas de classes e revoluções que estão acontecendo neste exato momento.
Há uma segunda dimensão. É a dimensão organizacional, que realmente não é apenas organizacional, mas é, na realidade, também política. Aqui chegamos à famosa questão da centralização. Os marxistas revolucionários defendem o centralismo democrático. Mas a palavra centralização não deve ser tomada em primeiro lugar como uma dimensão organizacional, e de maneira alguma é uma dimensão essencialmente administrativa. É política. O que significa "centralização"? Significa centralização da experiência, centralização do conhecimento, centralização de conclusões extraídas da militância real. Aqui, novamente, vemos um tremendo perigo para a classe trabalhadora e o movimento operário se não houver tal centralização de experiência: esse é o perigo da setorialização e fragmentação, que não permite que ninguém extraia conclusões adequadas para a ação.
Se temos mulheres militantes engajadas apenas em lutas feministas, se temos jovens militantes engajados apenas em lutas de juventude, se temos estudantes engajados apenas em lutas estudantis, se temos trabalhadores imigrantes envolvidos apenas em lutas relacionadas às questões de imigração, se temos nacionalidades oprimidas engajadas apenas nas lutas de nacionalidades oprimidas, se temos desempregados engajados apenas em suas próprias lutas, se temos sindicalistas engajados apenas em lutas sindicais, se temos trabalhadores desorganizados, não sindicalizados e essencialmente não qualificados engajados apenas em suas próprias lutas, se temos militantes políticos envolvidos apenas em campanhas eleitorais ou na publicação de jornais, e se cada um desses operam separadamente uns dos outros, eles operam apenas sobre a base de experiências limitadas e fragmentadas e não podem (por razões epistemológicas básicas, eu diria) extrair conclusões corretas de sua própria experiência. Eles têm lutas fragmentadas, experiência fragmentada, consciência parcial fragmentada. Eles veem apenas uma parte de todo o quadro. As conclusões que eles chegarão serão, você pode dizer a priori, pelo menos parcialmente erradas. Eles não podem ter uma visão global e total correta da realidade, porque veem apenas uma parte fragmentada dessa realidade.
O mesmo é verdadeiro, é claro, de um ponto de vista internacional. Se você se concentrar apenas no leste europeu, terá uma visão parcial da realidade mundial. Se você se concentrar apenas nos países subdesenvolvidos, semicoloniais e dependentes, terá uma visão parcial da realidade mundial. Se você se concentrar apenas nos países imperialistas, terá uma visão parcial da realidade mundial. Somente se você reunir a experiência das lutas concretas conduzidas pelas massas reais nos três setores do mundo (que são também chamados de três setores da revolução mundial), então você tem uma visão global e correta da realidade mundial. Essa é a grande vantagem da Quarta Internacional, porque é uma organização internacional, que tem camaradas realmente lutando, não apenas analisando teoricamente, em todos esses três setores do mundo, e está concretamente relacionada às lutas em todos esses três setores da revolução mundial. Essa superioridade não se deve à grande inteligência dos líderes da Quarta Internacional. Se deve apenas à elementar centralização da experiência concreta de lutas em uma escala global, somada a um programa histórico correto.
É disso que se trata a centralização. Significa ter, eu não diria os melhores porque isso é exagerado, mas ao menos bons lutadores nos sindicatos, bons lutadores entre trabalhadores não qualificados e desempregados, bons lutadores entre nacionalidades oprimidas, bons lutadores entre mulheres, jovens e estudantes, bons lutadores anti-imperialistas, bons lutadores em todos esses setores de pessoas realmente militantes, oprimidas e exploradas em cada estado e em escala mundial, se reunindo para centralizar suas experiências, a fim de comparar as lições de suas lutas a escala estatal e mundial, extrair conclusões relevantes, examinar e reexaminar de maneira crítica em que estágio estão seu programa e sua linha política, à luz das lições a serem extraídas de todas essas experiências, a fim de ter uma visão global da sociedade, do mundo, de sua dinâmica e de nosso objetivo socialista comum e de como chegar lá. É isso que chamamos, em nosso jargão, um programa correto, uma estratégia correta e táticas corretas. Dado o desenvolvimento desigual da consciência de classe, e o nível desigual e descontínuo de atividade de classe, isso não pode ser feito pelas massas na sua totalidade. Acreditar no oposto é apenas um sonho utópico e espontaneísta.
Isso só pode ser feito por aquelas pessoas que reivindicam para si mesmas o mérito terrivelmente "elitista" de serem ativas de um modo mais permanente, de um modo mais contínuo, do que outras. Essa é a única qualidade que elas reivindicam para si mesmas, mas é uma qualidade provada na vida. E todos aqueles que não têm essa qualidade também provam isso na prática ao cessar a atividade política. Todos aqueles que têm essa qualidade, no entanto, continuam a lutar mesmo quando as massas periodicamente param de lutar, não param de desenvolver a consciência de classe quando as massas param (qualquer um que desafia esse direito, desafia um direito democrático e humano elementar), continuam elaborando políticas e teoria, e tentam constantemente intervir na sociedade de maneira permanente e contínua. A partir desse "mérito", por mais modesto e limitado que seja, decorre uma série de qualidades concretas e práticas que então constituem a base para a justificação de uma organização de vanguarda.
Como eu disse antes, há uma contradição real na relação entre uma organização de vanguarda e as massas mais amplas. Há uma tensão dialética real, se podemos chamar assim, e temos que nos dirigir a essa tensão. Antes de tudo, usei as palavras “organizações de vanguarda”; não usei as palavras “partidos de vanguarda”. Essa é uma diferença conceitual que introduzi de propósito. Não acredito em partidos autoproclamados. Eu não acredito em cinquenta pessoas ou cem pessoas de pé no mercado batendo no peito e dizendo: "Nós somos o partido de vanguarda". Talvez eles sejam em sua própria consciência, mas se o resto da sociedade não dá o mínimo para eles, eles ficarão gritando nesse mercado por um longo tempo sem que isso tenha qualquer resultado na vida prática, ou pior, tentarão impor suas convicções a uma massa não receptiva por meio da violência. Uma organização de vanguarda é algo que é permanente. Um partido de vanguarda tem de ser construído, tem de ser edificado através de um longo processo. Uma das características de sua existência é que ele se torna reconhecido como tal por pelo menos uma minoria substancial da própria classe. Você não pode ter um partido de vanguarda que não tenha seguidores na classe.
Uma organização de vanguarda se torna um partido de vanguarda quando uma minoria significativa da classe real, dos trabalhadores realmente existentes, camponeses pobres, jovens revolucionários, mulheres revolucionárias, nacionalidades oprimidas revolucionárias, o reconhecem como seu partido de vanguarda, ou seja, o seguem na ação. Se isso deve ser de dez por cento ou quinze por cento, isso não importa, mas deve ser um setor real da classe. Se isso não existe, então você não tem nenhum partido real, você tem apenas o núcleo de um futuro partido. O que acontecerá com esse núcleo será mostrado pela história. Permanece uma questão em aberto, ainda não resolvida pela história. Você precisa de uma luta permanente para transformar essa organização de vanguarda em um verdadeiro partido revolucionário de vanguarda enraizado na classe, presente na luta da classe trabalhadora e aceito por ao menos uma fração real da classe real enquanto tal.
Aqui temos de trazer outro conceito. Eu disse anteriormente que a classe não está permanentemente ativa e permanentemente em um alto nível de consciência de classe. Agora eu tenho que introduzir uma distinção. A massa da classe não está, mas a classe não é homogênea, não apenas porque existem indivíduos que são membros de diferentes grupos políticos, em diferentes níveis de conhecimento [awareness] político, sob diferentes influências da ideologia burguesa, mas também porque há uma diferenciação em curso dentro de seu próprio quadro massivo. Há um processo de diferenciação social e política na classe trabalhadora real o tempo todo. Há uma destilação massa-vanguarda ocorrendo na classe trabalhadora durante certos períodos. Lênin escreveu muito sobre isso; Trótski escreveu muito sobre isso; Rosa Luxemburgo, surpresos como alguns de vocês devem estar, escreveu muito sobre isso. Pessoas que têm a ambição de serem ativas na construção de organizações revolucionárias, como eu tenho, podem lhes fornecer os nomes, endereços e números de telefone desses trabalhadores de vanguarda em seus próprios países. Não é uma questão misteriosa. É um problema prático. Quem são esses trabalhadores de vanguarda na Bélgica, França, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha Ocidental? São aqueles que estão liderando greves reais, que estão organizando oposições sindicais militantes, que estão preparando manifestações e lutas de massa e que estão se diferenciando do aparato burocrático tradicional.
É ao mesmo tempo uma diferenciação social e uma diferenciação política, ainda que se possa discutir o peso exato de cada elemento, que não é idêntico em cada situação. Mas as camadas enquanto tais são muito reais. A dimensão das camadas é diferente em diferentes períodos. O "líderes sindicais revolucionários" [do alemão Revolutionäre Obleute; em inglês, Revolutionary Stewards], como são chamados na Alemanha, dos sindicatos e das grandes fábricas de Berlim que estavam liderando a revolução de novembro de 1918 e construindo o Partido Socialista Independente, que depois se mudou para o Partido Comunista quando a ala esquerda do Partido Socialista Independente se fundiu com o Partido Comunista no Congresso de Halle, eram uma camada muito concreta na sociedade alemã, não somente em Berlim, mas também em várias das áreas industriais do país. Todos os conheciam, eles não eram uma quantidade desconhecida. Eram dezenas e dezenas de milhares de pessoas. Se você observar a vanguarda da classe trabalhadora alemã quinze anos depois, digamos por volta de 1930-33, essa camada havia diminuído fortemente em número, mas ainda estava lá.
Se você estuda a Rússia, vê a mesma coisa. Em 1905, todo mundo conhecia essas pessoas. Elas eram as que estavam liderando as greves, as verdadeiras lutas de massas a níveis de base contra o czar. Elas estavam, em sua maioria, fora da social-democracia [Partido Operário Social-Democrata Russo – POSDR] antes de 1905, tenderam a entrar na social-democracia durante a revolução de 1905-06 e de novo parcialmente deixaram o partido (mencheviques assim como bolcheviques) no período de reação. Elas voltaram à política e cresceram em uma escala massiva em 1912 e especialmente no início da revolução de fevereiro de 1917, e então a maioria delas foi absorvida pelo Partido Bolchevique depois de abril de 1917, depois que o Partido Bolchevique adotou uma linha direta e clara de "Todo o poder aos sovietes", isto é, de ditadura do proletariado.
Pode-se discutir se os bolcheviques se tornaram um partido de vanguarda no verdadeiro sentido da palavra em 1912-13, ou apenas em 1917. Eu tenderia a dizer que eles se tornaram isso em 1912-13; caso contrário, teria sido muito difícil para eles crescerem tão rápido quanto cresceram na primavera de 1917. Mas isso é apenas uma questão de análise histórica. A verdadeira noção é a da fusão na vida real entre essa camada de vanguarda da classe trabalhadora, os verdadeiros líderes de verdadeiras lutas de trabalhadores a níveis de fábrica e bairro, de lutas de mulheres, de lutas de jovens, de lutas de minorias nacionais, e a organização política de vanguarda. Quando essa fusão ocorreu, ao menos em parte, você tem um verdadeiro partido de vanguarda, reconhecido enquanto tal por uma minoria significativa da classe. Ela então se tornará uma maioria provavelmente apenas durante a crise revolucionária em si, sob a condição de seguir uma linha política correta. Se você não tem essa fusão, você tem apenas o núcleo de um futuro partido de vanguarda, você tem uma organização de vanguarda, que é uma pré-condição para essa fusão em um estágio posterior.
Isso se torna uma terceira dimensão: a auto-organização da classe. A auto-organização da classe passa por diferentes formas em diferentes estágios da luta de classes. As [formas de] auto-organizações mais elementares são os sindicatos. Então você tem partidos políticos de massa em diferentes níveis de consciência, partidos trabalhistas burgueses, partidos trabalhistas independentes e partidos operários revolucionários. Somente sob condições de crises revolucionárias você tem o nível mais alto de auto-organização; esse é o tipo de organização soviética, isto é, conselhos de trabalhadores, conselhos populares, chame-os como quiser, comitês populares.
Por que eu digo mais alto? Porque eles englobam a grande maioria dos trabalhadores que geralmente, em condições não revolucionárias, você não encontra em sindicatos nem em partidos políticos. A auto-organização direta através de um tipo de auto-organização de classe baseada em conselhos de trabalhadores é a forma mais elevada, não porque eu tenho uma predileção teórica, ideológica, moral ou sentimental por eles – o que é claro que eu tenho –, mas pela seguinte razão simples e objetiva: eles organizam uma porcentagem muito maior de trabalhadores e de massas exploradas. Sob condições normais, não restringidas por aparatos e lideranças burocráticos, eles devem organizar de 90 a 95% das massas exploradas, que você nunca encontra em sindicatos ou partidos políticos. Portanto, elas são as formas mais altas de auto-organização.
Além disso, não há absolutamente nenhuma contradição entre as organizações separadas de militantes revolucionários de vanguarda e sua participação nas organizações de massa da classe trabalhadora. Pelo contrário, a história geralmente confirma que, quão mais consciente e melhor você estiver organizado em organizações de vanguarda, mais construtivamente você opera nas organizações de massa da classe trabalhadora. Isso significa que você deve evitar os fundamentos teóricos do sectarismo, que deve respeitar a democracia dos trabalhadores, a democracia socialista, os conselhos soviéticos ou de trabalhadores ou a democracia de conselhos populares, de uma maneira muito profunda. Mas dito isso, não há nenhuma contradição sequer. Novamente, o único direito que você reivindica para si mesmo dentro dos sindicatos, dentro dos partidos de massa, dentro dos sovietes, é ser um mais devoto, mais enérgico, mais dedicado, mais corajoso, mais lúcido e mais abnegado construtor dos sindicatos, construtor dos partidos de massa, construtor dos sovietes e defensor dos interesses gerais da classe trabalhadora, sem atribuir a si mesmo nenhum privilégio especial diante de seus companheiros trabalhadores, exceto o direito de tentar convencê-los.
Nossa posição em relação à democracia da classe trabalhadora, à democracia socialista, ao pluralismo socialista, é baseada em uma compreensão programática de que não há contradições entre os interesses dos comunistas, militantes de vanguarda, a classe trabalhadora e o movimento operário em sua totalidade. Não existem condições nas quais subordinamos os interesses da classe como um todo aos interesses de qualquer seita, capela ou organização separada. É a partir de uma compreensão teórica dessa verdade que podemos lutar com entusiasmo, que podemos lutar com devoção e com profundo entendimento pela frente única dos trabalhadores, por uma política de unificação de todas as diferentes tendências do movimento operário e a classe trabalhadora para objetivos comuns, porque acreditamos que a vitória do socialismo é impossível sem a vitória da luta por esses objetivos comuns.
Há também um fundamento teórico básico dessa posição. Nós não acreditamos que o marxismo seja uma doutrina, dogma ou Weltanschauung completa e final. Não acreditamos que o programa marxista, que encarna a continuidade da experiência da luta de classes real e das revoluções reais dos últimos cento e cinquenta anos, seja um livro definitivamente fechado. Se você acredita nisso, então o melhor marxista revolucionário seria um papagaio que apenas leria de memória, ou esperaria que a resposta viesse ao digitar todas as lições do passado em um computador. Para nós, o marxismo é sempre aberto, porque há sempre novas experiências, há sempre novos fatos, inclusive fatos a respeito do passado, que têm de ser incorporados ao corpo do socialismo científico. O marxismo é sempre aberto, sempre crítico, sempre autocrítico.
Não foi por acaso que quando Marx foi chamado a responder à pergunta no jogo da sala de estar "Qual é o seu principal ditado de vida?", ele deu a resposta "De omnibus est dubitandum" ("Você precisa duvidar de tudo"). Essa é na verdade a atitude oposta àquela que é tão frequentemente e de modo estúpido e tolo atribuída a Marx, de que ele estava construindo uma nova religião sem Deus. O espírito de duvidar de tudo e de colocar em questão tudo o que você mesmo disse é exatamente o oposto da religião e do dogma. Os marxistas acreditam que não há verdades eternas, nem pessoas que sabem tudo. A segunda estrofe do nosso hino comum, The Internationale, começa com as maravilhosas palavras, em francês:
Il n’y a pas de sauveur suprème
Ni Dieu, ni César, ni tribun,
Producteur sauvons – nous mêmes
Decrétons le salut commun.
Em alemão é ainda mais claro:
Es rettet uns kein höh’res Wesen,
Kein Gott, kein Kaiser, kein Tribun
Uns aus dem Elend zu erlösen,
Können wir nur selber tun.
Somente toda a massa dos produtores pode se emancipar. Não há Deus, César, Comitê Central infalível, Presidente infalível, Secretário geral ou Primeiro secretário infalíveis que possam substituir os esforços coletivos da classe. É por isso que tentamos simultaneamente construir organizações de vanguarda e organizações de massa.
Você não pode enganar a classe trabalhadora ou "dirigir" a classe trabalhadora a fazer algo que ela não quer fazer. Você tem que convencer a classe trabalhadora. Você precisa ajudar a classe trabalhadora a entender coletivamente e massivamente a necessidade de uma transformação socialista da sociedade, da revolução socialista. Essa é a relação dialética entre o partido de vanguarda e a auto-organização em massa da classe trabalhadora. E é por isso que, para nós, o pluralismo socialista, o debate, mesmo quando assume uma forma não saudável e infeliz de briga de frações e desavenças que irritam todos os militantes sérios (eu simpatizo completamente com eles, porque é em grande parte um desperdício de tempo), é um preço inexorável a ser pago para manter esse processo autocrítico. Se ninguém, de antemão, possui toda a verdade e nada além da verdade, se cada situação tem sempre de ser reexaminada de uma maneira crítica diante de novas experiências de luta da classe trabalhadora e de revoluções reais, então é claro que você precisa de crítica, você precisa da confrontação de diferentes soluções propostas, precisa de variantes. Não é um luxo somente para ser fiel a uma fórmula abstrata de democracia dos trabalhadores. NÃO! É uma pré-condição absolutamente essencial para fazer uma revolução vitoriosa que levará a uma sociedade sem classes.
A revolução não é um objetivo em si mesma. A revolução é um instrumento, como um partido é um instrumento. O objetivo é construir uma sociedade socialista sem classes. Tudo o que fazemos, mesmo hoje, mesmo em perspectivas de curto prazo como liderar as massas nas suas lutas cotidianas, nunca pode ser feito de tal modo que conflite basicamente com o objetivo de longo prazo que é o objetivo da autoemancipação da classe trabalhadora, e autoemancipação de todos os explorados, através da construção de uma sociedade sem classes, sem exploração, sem opressão, sem violência de homens e mulheres uns contra os outros. A democracia socialista não é um luxo, mas uma necessidade absoluta e essencial para derrubar o capitalismo e construir o socialismo. Deixe-me dar dois exemplos.
Nós entendemos hoje o aspecto funcional da democracia socialista na sociedade pós-capitalista (as sociedades da Europa Oriental, União Soviética, China, Vietnã e Cuba). Sem a democracia socialista pluralista você não consegue encontrar soluções corretas para os problemas básicos do planejamento socialista. Nenhum partido pode substituir a maioria do povo para determinar o que a maioria do povo quer como prioridades na forma de consumo, na divisão entre o fundo de consumo e o fundo de investimento, entre consumo individual e coletivo, entre o fundo de consumo produtivo e improdutivo, entre o fundo de investimento produtivo e improdutivo, e assim por diante. Ninguém pode fazer isso. Novamente, acreditar no oposto é um sonho utópico.
E se a massa do povo não aceitar a sua escolha de prioridades, nenhum poder na terra, mesmo o maior terror de Stálin, pode forçá-los a fazer a única coisa-chave que você precisa para construir o socialismo: ter um participação construtiva, criativa e convencida no processo de produção. Existe uma forma de oposição que a burocracia não conseguiu esmagar. Está se tornando cada vez maior: a oposição que se expressa por não se importar com o que está acontecendo na produção. Você conhece a famosa piada que eles contam na Alemanha Oriental: o jornalista chega a uma fábrica e pergunta ao diretor: “Camarada gerente, quantos trabalhadores estão trabalhando na sua fábrica?” Ele responde: “Ah, pelo menos metade deles”. Isso é realidade em todos os assim chamados “países socialistas” burocratizados. Nenhum terror pode superar isso. Somente a democracia socialista pode superar isso, somente o pluralismo, somente a possibilidade da massa dos produtores e dos consumidores escolherem entre diferentes e variáveis do planejamento que melhor se adequam a seus interesses tal como os entendem.
A democracia socialista não é um luxo e sua necessidade não se limita aos países industriais mais avançados. Ela vale para a China; vale para o Vietnã. É a única maneira de corrigir rapidamente os efeitos desastrosos de graves erros de política. Sem o pluralismo, sem um amplo debate público, sem uma oposição legalizada, pode levar 15 anos, pode levar 25 anos, pode levar 30 anos antes de você corrigir tais erros. Vimos o registro histórico e ele nos mostra o terrível preço que a classe trabalhadora tem de pagar se você demorar um tempo tão longo antes de corrigir seus erros.
Erros em si são inevitáveis. Como o camarada Lênin disse, a verdadeira chave para um revolucionário não é que ele evite cometer erros (ninguém evita cometer erros), mas como ele os corrige. Sem a democracia interna do partido, sem o direito de demonstrar esses erros, sem a não-proibição de frações ou partidos, sem debates públicos livres, você tem grandes obstáculos na correção de erros e pagará um preço alto por isso. Portanto, somos absolutamente a favor do direito a diferentes tendências, da plena democracia interna e da não proibição de frações ou partidos.
Não digo o direito a frações, porque essa é uma formulação falsa. Frações são um sinal de doença em um partido. Em um partido saudável, você não tem frações; um partido saudável do ponto de vista da linha política e do regime partidário interno. Mas o direito de não ser expulso do partido, se você criar uma fração, é um mal menor do que ser expulso e sufocar a vida interna de um partido através da proibição excessiva de debate interno.
Não é uma questão fácil, especialmente em um partido proletário. Quanto mais as organizações revolucionárias de vanguarda estão enraizadas na classe trabalhadora, menor é o seu número de estudantes e outros membros não proletários (não digo que seja ruim ter estudantes ou intelectuais; você precisa deles, mas eles não devem ser o maioria em uma organização revolucionária). Quanto mais trabalhadores você tiver em sua organização, melhor você está implantado na classe trabalhadora, maior é a probabilidade de você se trazer à tona os problemas concretos da classe. Dentro desse quadro geral deve ser localizada a natureza funcional de uma organização de vanguarda para a luta de classes, para a revolução e para a construção do socialismo. Você nunca deve esquecer que existe uma relação dialética estreita entre os três. Caso contrário, saímos dos trilhos e não cumprimos o papel histórico que queremos cumprir: ajudar as massas, os explorados e os oprimidos do mundo, a construir uma sociedade sem classes, uma federação socialista mundial.
Nota
Este artigo é baseado em um discurso proferido por Ernest Mandel na Conferência: o centenário de Marx – “Marxismo: as próximas duas décadas” – realizada na Universidade de Manitoba em Winnipeg, Manitoba, Canadá, de 12 a 15 de março de 1983. Foi publicado no Bulletin in Defense of Marxism, nº 44 (que o reimprimiu da Mid-American Review of Sociology, 1983, vol. VIII, Nº 2: 3-21).
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