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Os protagonistas da disputa na América Latina (Claudio Katz)


Os protagonistas da disputa na América Latina

(19.11.2019)

Claudio Katz

Tradução de Luciana Villani das Neves

Revisão de André Coggiola



A América Latina registra uma abrupta mudança, no calor de grandes confrontos entre despossuídos e privilegiados. Essa disputa inclui revoltas populares e reações dos opressores. Em um polo aflora a esperança coletiva e no outro o conservadorismo das elites.


As batalhas ocorrem nas ruas e nas urnas. Os poderosos não recorrem somente à repressão. Manipulam a informação, difamam aqueles que lutam e encorajam o ressentimento da classe média empobrecida. Em toda a região os desejos de igualdade chocam-se com o fascismo e em nenhum país se observam resultados definitivos. Em um processo vertiginoso, as vitórias significativas coexistem com os preocupantes retrocessos.


As revoltas de outubro


A sublevação no Chile é o grande acontecimento do tsunami latino-americano. É a maior rebelião da história do país. Todos os dias milhares de jovens saem dos colégios, universidades e bairros para enfrentar aos gendarmes[1].


As faixas são categóricas: “O Chile se cansou e despertou”. Um povo farto de humilhações insurrecionou-se contra o modelo neoliberal. Os sofrimentos gerados por esse esquema vieram à superfície. Em 70% dos lares, a renda está comprometida com dívidas para pagar a educação, a saúde e a poupança de previdência privada. O país compartilha o pódio das oito nações mais desiguais do mundo.


A maior parte da população enfrenta um governo isolado, que surgiu de eleições marcadas pela abstenção. Piñera propaga uma repressão selvagem, que já causou mais de 20 assassinatos, milhares de detidos e incontáveis feridos. Os carabineros[2] se drogam para continuar o tiroteio e disparam nos olhos dos manifestantes a fim de cegá-los por toda vida. Existem esmagadoras denúncias de abusos sexuais contra as mulheres detidas.


O exército sustenta esse vandalismo para preservar os privilégios legados por Pinochet. Recebe um percentual fixo das exportações de cobre e seus membros estão isentos da velhice pauperizada da qual padece o restante dos aposentados. Mas alguns soldados têm se negado a reprimir e os superiores exigem garantias de impunidade para continuar distribuindo pauladas. A exigência de julgamentos aos seus abusos instalou-se na sociedade.


Piñera excede os limites. Impôs o toque de recolher e teve que suspendê-lo. Convocou o diálogo e reforça a sangria. Todos os dias anuncia alguma concessão social sem nenhum resultado. O pânico prevalecente em seu círculo íntimo é aflorado por confissões engraçadas (“teremos que diminuir nossos privilégios”) ou na descrição dos manifestantes como alienígenas.


As mobilizações persistem para não repetir as experiências frustradas de 2006 e 2011, que desembocaram em mudanças cosméticas. A atual onda começou de forma espontânea e sem liderança, mas já aparece uma organização por baixo. Nos cabildos[3] abertos discute-se como canalizar os protestos e as propostas.


O ativismo dos estudantes estendeu-se aos sindicatos e aos coletivos sociais, que exigem o fim de Piñera e a convocação de uma Assembleia Constituinte. A pressão é tão forte, que o próprio governo manobra para distorcer ambas reivindicações.


Também os políticos da Concertación[4] buscam diluir as exigências do levante. Sustentaram durante 30 anos o regime e validaram a militarização do último mês. Agora propiciam o chamado a um plebiscito que assegura a continuidade de Piñera e bloqueia a soberania de uma eventual Constituinte. Ensaiam uma nova barreira para frear as mobilizações.


O Equador tem sido o segundo epicentro das revoltas. As comunidades indígenas resistiram em escala local ao aumento dos combustíveis e incorporaram outros setores populares a sua monumental marcha sobre Quito.


Lenin Moreno fugiu para Guayaquil e apostou na selvageria repressiva, deixando sete mortos e milhares de feridos. Mas depois de vários dias de intensas batalhas rendeu-se. Anulou o aumento da gasolina e aceitou a vitória conseguida pela firmeza da CONAIE[5]. Quando os indígenas entraram no Parlamento, o presidente desertor recordou de que forma três antecessores seus foram derrubados por esse movimento (1997, 2000 e 2005).


O levante conseguiu a revogação de um decreto redigido pelo FMI, em um país asfixiado pelo endividamento externo. Todo o pacote de reforma trabalhista e abertura de importações tem sido afetado, em uma economia afogada pela dolarização. Essa ação impede compensar os ajustes com paliativos monetários.


Os manifestantes também ocuparam os escritórios do FMI, para avisar aos banqueiros qual será o tom de sua resistência. Depois do êxito conseguido nas barricadas, os coletivos sociais organizaram um Parlamento dos Povos, que propôs aumento do salário mínimo, impostos progressivos e mecanismos para sair da dolarização, junto à titularidade das terras e a reestruturação das dívidas camponesas. Estas definições ilustram como as revoltas começam a amadurecer com projetos alternativos.


A irrupção dos fascistas


O golpe de estado na Bolívia introduziu um dramático contraponto às revoltas do Chile e Equador. A direita tomou a iniciativa e se apropriou do governo. Toda a controvérsia sobre a definição desse protesto é ridícula. Consumou-se o golpe de estado mais aberto, descarado e evidente das últimas décadas. Não houve disfarce institucional, nem máscaras brandas.


Foi uma ação violenta com protagonismo direto do exército. Evo renunciou sob a mira de uma arma, quando os generais se negaram a obedecê-lo. Não renunciou por simples sobrecarga da crise (como De la Rúa en el 2001). Foi expulso da presidência pela cúpula militar.


Mas a principal peculiaridade desta operação foi sua coloração fascista. Os gendarmes impuseram uma zona livre, que foi ocupada por bandidos para instaurar o terror. Forçaram ataques ao governo aplicando o manual das alas de extrema-direita. Sequestraram dirigentes sociais, tomaram instituições públicas e humilharam os opositores.


Camacho colocou em prática as proclamações de Bolsonaro. Com bíblias e rezas evangélicas queimou casas, raspou a cabeça das mulheres e acorrentou jornalistas. Ecoou gritos racistas contra o cholo[6], enquanto seus asseclas burlavam os coyas[7], queimavam a bandeira Whipala[8] e golpeavam os transeuntes da raça degenerada. Em La Paz imperou o vandalismo ensaiado em Santa Cruz. A valentia do macho Camacho esteve garantida pela proteção policial.


Esse ódio contra os índios lembra a provocação inicial de Hitler contra os judeus. Camacho não dissimula a irracionalidade de seus discursos contra os povos originários. Considera que as mulheres dessas nacionalidades são bruxas satânicas e que os homens são unicamente aptos para a servidão. Como na Alemanha durante os anos 30, criou legiões de ressentidos para humilhar os indígenas.


A classe dominante celebra a vingança. Como não digere que um índio tenha exercido a presidência, permite as descontroladas atrocidades de Camacho. Os poderosos esperam estabilizar o golpe, para equilibrar logo o controle do estado com seus homens de confiança. Sua prioridade imediata é consolidar a saída de Evo.


Por isso invertem o ocorrido e culpam o líder do MAS[9] de uma fraude que justificaria sua remoção. Convertem a vítima em responsável e transformam a impugnação do golpe em uma crítica à ambição de Morales. O presidente eleito é apresentado como um ditador e os golpistas são elogiados como salvadores da democracia. A versão light desta infâmia declara que ambos lados são culpados.


No entanto, os difamadores não apresentaram nenhuma prova da fraude alegada. Tampouco objetaram o triunfo de Evo. Apenas discutiam se obteve os 10% de diferença requerido para evitar o segundo turno. A oposição legitimou a eleição com sua participação e por isso no princípio apenas falava de irregularidades. Quando percebeu a possibilidade de perpetrar o golpe, improvisou a história de fraude.


O protagonismo dos Estados Unidos no complô foi confirmado com o elogio de Trump a intervenção do exército. Os frutíferos negócios internacionais que oferecem os golpistas, induziram também a benção da União Europeia aos usurpadores.


Mas teremos que ver qual é a consistência de um governo auto eleito em uma assembleia forjada. Añez tentará manter a presidência durante o tempo requerido para fraudar as eleições com proscrições. Ele oscila entre os compromissos necessários para armar essa farsa e o simples exercício de uma ditadura. Sob seu comando, a Bolívia retornou aos seus velhos parâmetros de ingovernabilidade.


A heroica resistência popular se desenvolve nas duras condições de militarização. Nos primeiros cinco dias foram 24 mortos. Mas as mobilizações se estendem desde o bastião de El Alto ao resto das cidades. Os cabildos organizam a luta de um povo muito experiente na luta de rua.


No curso dessa ação, a atitude adotada por Evo poderá ser avaliada. O principal problema não foi sua estratégia de permanência no governo (plebiscito e reeleição), mas a total imprevisão frente ao golpe. Ele estava vinculado à arbitragem da OEA e foi surpreendido pela insubordinação de um exército que reforçou com equipamentos e munição. O governo desmobilizado não teve reposta frente à ofensiva decidida da direita. Este balanço já está na mente dos militantes que agora priorizam a resistência.


Uma ressonante vitória


Os contrastes que dominam o contexto latino-americano tiveram outra manifestação na liberação de Lula. Essa liberação suscitou uma imensa alegria entre os participantes da campanha contra sua detenção. As marchas, acampamentos e pronunciamentos internacionais permitiram essa conquista.


Esse resultado propiciou uma grande derrota à farsa montada pelo juiz Moro e seus cúmplices de O Globo, para impedir a presidência do candidato mais popular. A conversão do inquisidor em superministro de Bolsonaro desmascarou aquela operação. Agora deverão lidar com as caravanas que exigiram a restituição dos direitos políticos de Lula.


Essa campanha terá ressonância continental frente a um mandatário desprestigiado. Bolsonaro carece da serenidade mínima, requerida para exercer uma função executiva. Mantém seu perfil carnavalesco e não consegue fazer um discurso. Responde com insultos a qualquer questionamento.


Essa brutalidade agrava os problemas ao seu entorno. Já são vários familiares comprometidos com lavagem de dinheiro e alguns depoimentos o vinculam diretamente com o assassinato de Marielle Franco.


Bolsonaro depende do apoio dos nove generais que exercem o poder efetivo. Sobrevive graças ao grande serviço que presta às classes dominantes, através de sucessivos pacotes de agressão aos trabalhadores.


O ex-capitão começou reduzindo o salário mínimo por decreto. Logo motorizou uma reforma trabalhista precarizadora e impulsiona mudanças regressivas no sistema previdenciário. Além disso, implementa privatizações nos setores estratégicos de energia, nas finanças e no transporte e propõe terminar, antes de 2022, com uma centena de empresas estatais. O corte no orçamento educativo tem sido tão brutal, como a caça às bruxas para destituir funcionários com ideias progressistas. Suas reclamações anticomunistas incentivam abusos aos direitos humanos, enquanto aumenta a selvageria dos policiais nas favelas.


Mas Bolsonaro não tem sido capaz de traduzir sua verborragia reacionária em um programa de concretização do fascismo. Carece de condições para materializar esse projeto. Ele não alcançou uma posição de liderança reconhecida no meio do sistema político conservador e continua suportando a resistência popular.


Já enfrentou uma greve de grande adesão contra a reforma previdenciária e uma marcha de três milhões de pessoas contra a homofobia. Também os protestos estudantis contra os cortes de orçamento alcançaram uma massa sem precedentes, sob a impactante palavra de ordem livros sim, armas não.


O exorbitante capitão programa vários contragolpes e uma mobilização de sua base social direitista para tentar um novo encarceramento de Lula. O próximo cenário emergirá desse confronto.


Um exemplo de resposta


A vitória democrática no Brasil complementa um triunfo mais significativo obtido na Venezuela. Nesse país, trava-se a disputa mais dura da região. Durante todo o ano a direita tentou capturar sua presa mais cobiçada e sofreu uma sucessão de contundentes fracassos. Trump não pode repetir a invasão de Granada (1983) ou do Panamá (1989) e teve de se contentar com a apropriação da filial de PDEVESA[10] nos Estados Unidos.


Seus lacaios venezuelanos tentaram todos os complôs imagináveis, mas sua capacidade de ação foi prejudicada pela fracassada autoproclamação de Guaidó. Falhou também a farsa da ajuda humanitária e não puderam consumar nenhum levante militar. A guerra elétrica não funcionou e a improvisada revolta de Leopoldo López naufragou sem sofrimento ou nem glória.

As ameaças de provocação militar também persistem na fronteira com a Colômbia. Por isso o Departamento de Estado dinamita as negociações com a oposição. Mas o governo conseguiu interromper uma conspiração atrás da outra.


Em um cenário social muito difícil (e agravado pelos gigantescos desacertos da política econômica), Davi conseguiu parar Golias. O campo bolivariano mantém um nível intenso de mobilizações de rua e disputa o espaço público, toda vez que a oposição surge. A coesão militar foi preservada, através de uma constante intervenção política no exército, utilizando a carta de condicionamento das milícias populares.


Esta conduta ilustra como atuar frente à direita. Confirma a necessidade de respostas da mesma escala que as ações golpistas e sem nenhum vislumbre de rendição. A Venezuela ratifica a conveniência de exibir a força junto às ações diplomáticas, mantendo a serenidade e as bandeiras da soberania e da paz. Para vencer os fascistas, é preciso agir sem hesitar.


Batalhas sem descanso


As tensões na Venezuela polarizam outros confrontos que se instalam na rua. Nesse escopo estabeleceu-se o protesto contra o presidente de Puerto Rico, que zombava das vítimas do furacão e apresentava comentários homofóbicos.


O povo fez valer suas exigências por meio da mobilização, em uma ilha oprimida pelo ajuste do FMI. A lei federal imposta pelos financiadores para afrontar a bancarrota fiscal gerou terríveis sofrimentos aos trabalhadores. Mas, pela primeira vez na história dessa nação, um governador foi derrubado pela pressão popular. A crise continua e não se vislumbram soluções, em uma colônia sem mecanismos políticos para processar as tensões habituais de qualquer estado.


No vizinho Haiti, as manifestações do último semestre têm sido monumentais. Todos os dias se levantam barricadas nas cidades, para protestar contra um governo que agravou o indescritível empobrecimento da população. A galopante inflação impede que metade dos haitianos completem sua alimentação cotidiana e a repressão tirou a vida de 51 pessoas. As principais exigências afetam três presidentes, que desviaram os fundos fornecidos pelo chavismo através da Petrocaribe[11]. Os mandatários incrementaram suas fortunas pessoais com os recursos destinados ao barateamento do combustível.


Os manifestantes exigem a renúncia do fantoche atual de Washington, que Trump sustenta para recompensar sua traição à Venezuela e seu alinhamento com a extrema direita. No entanto, a maré de protestos não cede e a exigência em processar os ladrões, já vem complementada com a exigência de uma Assembleia Constituinte, para introduzir drásticas mudanças no embaraçoso sistema eleitoral.


Também Honduras continua convulsionada por uma persistente resistência contra o regime sanguinário surgido de uma fraude (2017), que reforçou a fraude eleitoral precedente (2013). Os criminosos que conduzem o estado não carregam somente o assassinato de Berta Cáceres. Eles acabaram com 200 militantes populares que enfrentaram a máfia dos gendarmes. O país tem sido convertido em um narcoestado, gerido por um presidente com familiares condenados nos Estados Unidos por tráfico de cocaína.


O pavio das rebeliões tende a expandir-se por toda região e já atingiu o próspero Panamá. No istmo foi registrado uma grande marcha universitária, que repudiou o “pacotaço” de contrarreformas negociado na Assembleia Legislativa.


Enfrentamento nas urnas


A grande disputa na América Latina se processa também no terreno eleitoral. No ano passado, López Obrador conseguiu no México uma esmagadora vitória, que encerrou o ciclo de sufocantes governos do PRI[12] e do PAN[13]. Esse impulso eleitoral terminou com as manobras de fraude que os perdedores preparavam para eternizar seu controle do estado. A expectativa suscitada nessa mudança foi exposta na multitudinária manifestação que coroou a assunção da AMLO[14].


A esperança está centrada em pôr fim à violência, que tem convertido o país em uma grande tumba de 300.000 mortos reconhecidos e 26.000 cadáveres sem identificação. São incontáveis as lideranças sociais massacradas, em una guerra que ultrapassa os ajustes do crime organizado.


López Obrador foi eleito para terminar com o deslocamento forçado da população e para solucionar os massacres como o ocorrido em Ayozinatpa. Mas esse anseio de pacificação e justiça não tem sido satisfeito. O desmantelamento das quadrilhas e o esclarecimento de cumplicidades militares continuam pendentes.


A realização desses objetivos se choca com a recente sanção de uma norma de segurança interna, que legaliza a ação das forças armadas. Essa gravitação tem sido reforçada com a aceitação da chantagem de Trump, para impedir o deslocamento dos migrantes com aumento da implantação da Guarda Nacional.


AMLO recebeu também uma cachoeira de votos para frear as privatizações, recuperar a autossuficiência alimentícia e reduzir o pesado endividamento externo. Mas tampouco neste terreno aparecem as medidas prometidas, para implementar uma quarta transformação fundacional do México.


A outra comoção eleitoral na região foi suscitada pelo triunfo de Fernández na Argentina. Macri não pode forçar o segundo turno e a direita perdeu o governo, no país que serviu de catapulta à restauração conservadora.


A imprensa hegemônica dissimula este resultado com leituras invertidas do ocorrido. Apresenta os perdedores como se houvessem liderado as eleições, pela simples redução da distância de votos com a fórmula triunfante. Esse prêmio de consolação não altera o contundente veredito da população contra o ajuste.


Os direitistas insuflam sua performance para condicionar o novo governo. Desde seus órgãos de opinião lançam advertências contra qualquer medida progressista. Enquanto fazem o chamado para fechar as frestas, preparam as panelas para fazer valer suas exigências.


O confronto será decidido segundo as respostas à catástrofe econômico-social que deixa Macri. A direita atribui esse colapso à sociedade, à cultura e à história dos argentinos. Entretanto, o colapso obedece a razões mais terrenas: o modelo neoliberal, as políticas de endividamento e os ajustes impostos pelo FMI. Esse cenário dramático induz o recomeço da mobilização, no país com maior nível de organização sindical e social de toda a região. Sem esse ressurgimento da luta, a renda deteriorada da população não pode ser restaurada.


Outros países também enfrentam importantes confrontos eleitorais com resultados mais contraditórios. Na Colômbia, verifica-se o lento surgimento de forças da centro-esquerda, que pela primeira vez disputam municípios e províncias com a oligarquia e os paramilitares.


No Uruguai, no entanto, pode ser visto um cenário difícil para a Frente Ampla, no segundo turno contra a direita, após 15 anos de governo. Há poucos meses em El Salvador, um direitista improvisado conseguiu a presidência, pondo fim a uma década da questionável gestão de Farabundo Martí.


As eleições constituem um terreno muito relevante do confronto em andamento. A direita articula suas estratégias no Grupo de Lima e o progressismo define seu perfil no núcleo de Puebla. Constrói essa alternativa tomando distância dos Encontros Anti-imperialistas, da ALBA[15] e do Foro de São Paulo.


Estas últimas instâncias contribuem com um suporte explícito à mobilização popular. Como não restringem sua ação ao campo das urnas, mantém vasos comunicantes com os organismos que emergem das lutas sociais. Essas modalidades já são vislumbradas nos Cabildos do Chile, no Parlamento dos Povos do Equador, nos Encontros de Movimentos na Bolívia e nos Organismos Coordenados do Haiti.


Pretextos e manipulações


É evidente que o golpe de Estado tem ressurgido como instrumento das classes dominantes. Sua recente implementação na Bolívia coroa a sequência iniciada em Honduras (2009), seguida pelo Paraguai (2012) e estendida ao Brasil (2016).


Os golpistas atuam com o apoio direto dos gendarmes e asseguram sua permanência com algum sócio civil. No Paraguai, destituíram Lugo, colocaram Cartes e se fortaleceram com Abdo, em eleições marcadas por abstenção e a ilegitimidade dos presidentes.


Em todos os casos o exército volta a ocupar o primeiro plano, como fiador de novas formas autoritárias mantidas no estado de exceção. O colombiano Duque encarna a modalidade mais perfeita desses mecanismos. Gerencia o assassinato de militantes populares, legaliza a ação dos paramilitares e enterra os Acordos de Paz para ultimar ex-combatentes.


Outros golpistas justificam o uso da força ressuscitando velhos fantasmas da guerra fria. Atribuem os protestos sociais em qualquer lugar do continente a um plano de subversão monitorado pela Venezuela e Cuba.


Eles difundem essas besteiras sem nenhum pudor, enquanto afinam grosseiras operações judiciais proibir líderes progressistas. Sem magistrados viciados, as causas que inventam não poderiam passar da primeira instância de qualquer tribunal. No entanto, eles contam com os meios de comunicação para proclamar os julgamentos, que são repetidos pelo público em geral.


A mídia manipula a informação, apresentando a corrupção como uma doença dos governos que se distanciam das normas conservadoras. Eximem desse mal a direita e por essa razão os subornos da Odebrecht ou as fraudes ao fisco nos paraísos fiscais recebem pouca atenção na imprensa. Não se tem gasto tinta para descrever, por exemplo, a trama mafiosa dos presidentes peruanos, que encobriram suas fraudes com pactos de impunidade. Os grandes meios operam como usinas de fake news, que são elaboradas pelos serviços de inteligência a pedido dos grupos direitistas.


O duplo discurso dos jornais e emissoras ultrapassa também todas as fronteiras. Diariamente difundem novas denúncias sobre a Venezuela − calcadas nos informes elaborados pelo Departamento de Estado contra Cuba − enquanto silenciam o assassinato de 648 líderes sociais na Colômbia.


A direita complementa suas mentiras com diversos dispositivos para obstruir a reflexão popular. A cegueira que propicia o fanatismo religioso é o instrumento predileto dessa operação. Os evangélicos contribuem com seus recursos multimilionários para criar medos e destruir solidariedades.


Pressões e demolições


Washington não desiste de seu assédio contra a Venezuela. Sua prioridade é recuperar a principal jazida petroleiro do hemisfério. Tem reforçado também o embargo contra Cuba e conspirou contra a Bolívia, para dirigir as enormes reservas de lítio que acumula o Altiplano. Evo mantinha relações muito avançadas para ampliar a exploração desse estratégico recurso com empresas chinesas.


Trump tenta reconquistar o controle estado-unidense das riquezas naturais latino-americanas. Assegura a subordinação de seus vassalos tradicionais e explora uma nova sociedade com Bolsonaro. Mas terá que ver se a classe dominante brasileira irá manter esse eixo geopolítico, às custas de seus florescentes negócios com a China.


A recente cúpula dos BRICS em Brasília incluiu pronunciamentos chamativos propiciados pelo gigante asiático a favor do livre-comércio. O próprio Bolsonaro tem começado a avaliar um Tratado de Libre Comércio com a China e tem na pasta o patrocínio de Huawei[16] para as novas redes informatizadas de 5G. Outra tentação conflituosa provém da oferta europeia em celebrar um TLC[17], que dinamitaria com o MERCOSUR.


Frente a dura rivalidade que antecipam estas jogadas, Trump aumenta a presença regional do Pentágono. Estreita relações com os militares latino-americanos, para fazer valer os interesses econômicos das empresas estado-unidenses.


Essa intervenção também obriga a consolidar o neoliberalismo, que tem sido desafiado pela sublevação chilena. Esta revolta destrói todos os mitos do modelo mais exaltado pelos capitalistas da região. Agora, percebe-se com nitidez que o universo transandino não é um paraíso de crescimento, senão um inferno de desigualdade. Por essa razão, o descontentamento contra os 30 pesos do metrô transformou-se em um levante contra os 30 anos de neoliberalismo.


A rebelião transandina tem grande impacto internacional porque colocou em xeque o menino mimado da ortodoxia econômica. A denúncia que no Chile torturam, matam e violam já invadiu os grandes festivais. Todos os circuitos de comunicação mundial recolhem esses dados.


Parece prematuro predizer quão afetados estão os fundamentos do neoliberalismo. Mas veio à tona a enorme vulnerabilidade desse modelo, frente à estagnação dos preços das matérias-primas, o aumento do endividamento e a redução do crescimento.


Os protestos puseram também em evidência que o neoliberalismo é o principal responsável pela desintegração social da América Latina. Gera as migrações em massa que sucedem à abertura comercial e à destruição da pequena propriedade agrária. Os despossuídos engrossam as caravanas rumo ao Norte, que nenhum muro ou gendarme pode conter.


Os hipócritas liberais ponderam o fluxo irrestrito de capitais e mercadorias, enquanto exigem o fortalecimento do controle do movimento internacional de migrantes. Propiciam a perseguição e estigmatização de quem cruza a fronteira, para enviar remessas a seus empobrecidos familiares.


O neoliberalismo tem provocado, também, a expansão da delinquência e uma aterradora escala de violência. Das 50 cidades mais perigosas do planeta 43 se localizam na América Latina. As gangues dominam a estrutura de muitos países centro-americanos corroídos pela engenharia social regressiva que ensaiaram os economistas de Chicago.


Esse modelo é também responsável pela destruição do meio ambiente e dos recentes incêndios na Amazônia. A queima de grandes áreas de floresta é perpetrada deliberadamente para plantar soja ou abrir pastos para a criação de gado, sob a regra mercantil de maximizar os ganhos.


Interpretações e posturas


A direita não só desconhece os desastres provocados por sua gestão. Afirma que seu modelo forjou uma próspera classe média, que agora exige maior participação na vida pública. Considera que esse grupo social se rebela contra os políticos que defendem sua casta, sem escutar as demandas dos representados. Nesta curiosa interpretação, os dilaceradores efeitos do modelo neoliberal não estariam em questão. Apenas haveria uma falha no sistema político de um esquema econômico florescente.


Este olhar ilustra até que ponto os privilegiados vivem em uma redoma em Miami e em condomínios fechados. Ignora que os protestos não se limitam a contestar o comportamento dos políticos. A desigualdade, as privatizações, o endividamento e os ajustes são invariavelmente questionados. O FMI, os banqueiros e as empresas transnacionais são colocados no banco dos réus. As revoltas tampouco julgam todos os partidos ou legisladores. Quando expressam interesses populares, os protestos objetam aos servidores da ordem capitalista.


A verdadeira classe média não guarda, também, o menor parentesco com o retrato direitista. De fato, a ascensão social é muito limitada no duro contexto regional e coexiste com a precarização ou o crescente desemprego. Por isso as revoltas − que encabeçam trabalhadores, camponeses e estudantes − incorporam às vezes os comerciantes e donos de pequenos negócios. Todos buscam conter a degradação do nível de vida.


A classe média é uma etiqueta utilizada pela direita para improvisar explicações. Mesclam peras com maçãs, para forçar interpretações adaptadas a seus preconceitos. Por isso situam em uma mesma sequência qualquer ação das multidões descontentes, omitindo o sentido de cada mobilização.


No entanto, as polêmicas sobre o cenário atual não envolvem somente a direita. Também incluem certos pensadores distraídos que se auto localizam na esquerda. Esses analistas não conseguem registrar as diferenças que contrapõem uma revolta popular e um clamor reacionário.


Essa distinção deve ser mostrada de forma categórica. A guarimba de escuálidos[18] na Venezuela se localiza no lado oposto aos protestos indígenas do Equador. Os seguidores de Camacho na Bolívia são nossos inimigos e os que defendem Evo são nossos aliados.


É importante lembrar o óbvio frente às posturas neutras, que pretendem naturalizar a grande divisão entre os campos em disputa. Esses olhares questionaram com igual virulência Maduro e Guadió na Venezuela e agora estendem a mesma equivalência à Bolívia. Objetam as tentativas de reeleição do MAS com a mesma vara que o furor racista dos Comitês Cívicos. Também repetem a apresentação midiática das ações direitistas como legítimos protestos da cidadania.


Salta aos olhos as gravíssimas consequências políticas desse daltonismo político que ignora o perigo do fascismo. A caracterização do confronto na Bolívia não é uma atividade acadêmica. É a condição para atuar contra os golpistas, intensificando as marchas de solidariedade. É impossível desenvolver essas ações caso se desconheça a quem combater e a quem defender.


Lições do ocorrido


Derrotar o golpismo, o imperialismo e o neoliberalismo é o grande objetivo das lutas atuais. Para conseguir essa meta é necessário redobrar a mobilização e intensificar a ação política. Mas essa intervenção também requer aprender com os erros, dos quais a direita se aproveita para se recompor.


É muito difícil vencer os inimigos que são iluminados pelo próprio campo. Essa auto gestação tem sido uma desventura permanente da década passada. O ultrarreacionário Lenin Moreno foi o caso mais extremo. A própria coalisão progressista o ungiu como presidente para enfrentar a candidatura dos conservadores. Moreno não só reverteu as melhorias anteriores, implementando a agenda das classes dominantes. Posicionou o país no eixo desenhado pela OEA desmantelando a sede de UNASUR[19] em Quito.


Tampouco convém esquecer que o golpista Temer foi vice-presidente de Dilma e surgiu da frustrante estratégia de ampliar as frentes. Essa mesma política levou o México a formar uma aliança de governo com evangélicos, conservadores e capitalistas, em detrimento ao velho pilar radical da AMLO.


O neoliberalismo também se recompõe, quando suas bases são preservadas pelos modelos alternativos que implementa a heterodoxia. Promete-se erradicar os esquemas regressivos, mas acaba-se facilitando sua reconstituição. Foi o que ocorreu no Brasil e Argentina na década passada, com a manutenção dos privilégios aos financiadores e ao agronegócio. É o que acontece atualmente no México com a renovação do NAFTA, aceitando às exigências de direitos aduaneiros, patentes e investimentos postulados por Trump.


A direita costuma recuperar terreno quando os governos progressistas identificam ingenuamente seus êxitos eleitorais com o respaldo político duradouro. Se esquecem que as eleições constituem um momento da disputa pelo poder. Quando o controle efetivo da economia, justiça, exército e os meios de comunicação permanece nas mãos dos grupos dominantes, o retorno da direita é uma questão de tempo.


Essa volta costuma coincidir com o fim de gestões progressistas que incluíram melhoras no nível de vida popular. Esse paradoxo foi verificado na Argentina, Brasil e El Salvador e poderia repetir-se no Uruguai. Em todos os casos, os governos de centro-esquerda fornecem à população um alívio, que resultam na gestação de eleitorados mais conservadores.


Essa contradição subjaz também a crise da Bolívia. O MAS enfrentou nos últimos anos um significativo retrocesso eleitoral, apesar dos inéditos êxitos que obteve na gestão da economia. Conseguiu altas taxas de crescimento, uma importante redução da pobreza e fortes investimentos com o uso produtivo da renda de gás natural.


A despolitização do movimento popular é a explicação mais frequente dessa desconexão entre melhorias socioeconômicas e retrocesso eleitoral. Alguns estimam que os eleitores se tornam mais individualistas à medida que ampliam seu raio de consumo. Consideram que, nessa mutação, assimilam a propaganda conservadora e esquecem o processo progressista que permitiu sua melhoria.


Mas essa despolitização é consequência da continuidade de um sistema que reproduz os privilégios dos capitalistas. A ideologia vigente em uma sociedade não flutua no vazio. Se o poder das classes dominantes está preservado, essa preeminência tende a estender-se aos comportamentos eleitorais. Os poderosos recuperam os governos porque nunca perderam o poder.


O retorno da direita não é inexorável, nem expressa um pêndulo natural da vida política. Deriva da ausência de radicalidade que prevalece no progressismo. No lugar de fomentar transformações substanciais nos momentos oportunos, essa corrente se adapta ao status quo. Como evita a possibilidade de remover o poder dos grandes capitalistas, termina consolidando essa dominação. A experiência dos governos de centro-esquerda confirma que o freio à radicalização abre as comportas para a vingança da direita.


A centralidade da esquerda


Frente à grande onda de mobilizações populares, a direita prepara contragolpes do mesmo alcance. Por isso confrontos maiores se aproximam com resultados abertos.


O contexto atual inclui certas semelhanças com o quadro dominante do princípio do século, quando a sucessão de rebeliões na Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina criou as condições para a estreia do ciclo progressista. Esse período concluiu-se com a restauração conservadora, que enfrenta agora a contestação de uma nova geração de movimentos e dirigentes.


A semelhança com o ocorrido em 1989-2005 se observa na familiaridade do levante equatoriano com o Caracazo[20]. Ambas revoltas se originaram na mesma reação contra o aumento dos combustíveis imposto pelo FMI. Também existem equivalências entre a sublevação chilena com o 2001 da Argentina. A demanda contra os expoentes do regime político (“que se vayan todos”), concentra-se agora na figura de Piñera e no esquema de governo deixado por Pinochet.


Mas o que chama a atenção no ciclo atual é a magnitude da participação popular. O número de manifestantes nas ruas supera os registros das últimas duas décadas. No Equador se computam marchas várias vezes superiores aos picos de massividade, no Haiti se estima que cinco milhões de pessoas participaram dos protestos, no Chile foram dois milhões e em Porto Rico um milhão.


Existem grandes possibilidades em alcançar conquistas e mudanças nas relações de força. Não está em jogo apenas a reabertura do ciclo progressista. A batalha em curso pode derivar em cenários inovadores e imprevistos.


O importante é compreender o conteúdo dos confrontos. Os interesses de uma minoria de capitalistas chocam com os anseios da maioria popular. O alienamento direitista dos poderosos contrasta com as propostas emancipatórias da esquerda. O triunfo de nossos povos exige construir, fortalecer e renovar esse projeto.


19/11/2019


Claudio Katz, economista, pesquisador do CONICET, professor da UBA, membro do EDI. Sua página web é: www.lahaine.org/katz


* Tradução – Luciana Villani das Neves – Pós-graduada em História, Sociedade e Cultura (PUC/SP) e Professora do Ensino Fundamental I da Rede Estadual Paulista.


Notas da tradução

[1] N.T: Os gendarmes são policiais que fazem parte da Gendarmería de Chile (GENCHI) que é uma instituição armada penitenciária de segurança pública.


[2] N.T.: Os carabineros pertencem à instituição de polícia ostensiva do Chile, responsável também por atuar na área de defesa civil.


[3] N.T.: Uma espécie de mecanismo para auto-organização do tipo assembleia popular, no qual os cidadãos são os protagonistas das decisões que escolhem para o país, tendo em vista a falta de representatividade do atual governo chileno.


[4] N.T.: “Concertación de Partidos por la Democracia” é uma coalizão formada entre partidos de esquerda, centro-esquerda e centro.


[5] N.T.: CONAIE: Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador.


[6] Cholo: mestiço de povos andinos.


[7] Coya: conjunto culturalmente sincrético e homogêneo dos povos indígenas andinos.


[8] Whipala: mais que uma bandeira, representa o emblema das nações andinas e dos Aimaras, muito utilizada durante os anos 70 nos movimentos sindicais camponeses da Bolívia.


[9] MAS: sigla do partido político Movimento para o Socialismo.


[10] N.T.: Sigla da empresa estatal venezuelana Petróleos de Venezuela.


[11] N.T.: Aliança que envolve países caribenhos e Venezuela no que se refere à compra e pagamentos preferenciais do petróleo venezuelano por esses países.


[12] N.T.: Sigla do Partido Revolucionário Institucional.


[13] N.T.: Sigla do Partido da Ação Nacional.


[14] N.T.: Abreviatura de Andrés Manuel López Obrador, presidente do México.


[15] N.T.: Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA) é uma plataforma de cooperação internacional entre os países da América Latina.


[16] N.T.: Empresa multinacional sediada na China, que é considerada a maior fornecedora de equipamentos para redes e telecomunicações do mundo.


[17] N.T.: Tratado de livre comércio.


[18] N.T.: Guarimba de escuálidos é o nome dado aos grupos armados e mascarados antichavistas que provocam o terror na Venezuela.


[19] N.T.: Sigla que significa união das Nações Sul-Americanas.


[20] N.T.: Explosão social espontânea ocorrida na Venezuela.

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