Opressão e libertação das mulheres
(7 de março, 2019)
Soma Marik
Tradução de Isabela Martins
Teria Karl Marx alguma relevância para as atuais lutas pela libertação das mulheres? Suas teorias da sociedade e da transformação revolucionária ainda nos fornecem ferramentas que, de uma forma ou de outra, sejam úteis?
Estas e outras perguntas relacionadas continuam a ser feitas repetidamente – como vou argumentar – por duas razões muito diferentes. Excluo aqui os argumentos, se é que podemos chamá-los assim, da extrema-direita, que se opõem a qualquer forma de libertação humana, da exploração de classes e da opressão e discriminação racial, sexual e de gênero. Focarei aqui nas forças e ideais do que podemos chamar de centro e de esquerda.
Com o colapso mundial de partidos marxistas (ou socialistas) da classe trabalhadora – já maduros, organizados e, muitas vezes, bem amplos, – um segmento liberal de esquerda tornou-se mais influente, até mesmo dentro da velha esquerda. Podemos pensar na orientação de esquerda do Partido Democrata nos EUA – onde, mesmo depois de 80 anos, ainda não há um partido dos trabalhadores – ou, a exemplo da Índia, onde a esquerda, a fim de deter o fascista Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS) [Hindu extremamente nacionalista — ed.], não vê outra opção se não confiar na ala de direita liberal do Congresso Nacional Indiano.
Uma das consequências disso foi a aceitação de correntes intelectuais que rejeitam as contribuições do marxismo aos princípios de emancipação. Outra consequência do colapso da política de classes é o surgimento de uma ideologia que compreende a luta pela libertação como uma luta que deve ser segmentada por gênero, raça ou qualquer outro segmento da população baseado em "identidade". Estas opressões separadas, na melhor das hipóteses, estabelecem alianças morais, ao invés de uma unidade objetivamente enraizada.
Um segundo motivo, não menos importante, encontra-se na criação de uma reivindicação ideológica oposta de que o marxismo promove de fato a libertação das mulheres, dos Dalit[castas baixas — ed.] e a emancipação de outros povos oprimidos, mas, no entanto, deve ser contra o feminismo, a política Dalit (ou Ambedkarite), etc., sendo todas variantes da "política burguesa / pequeno-burguesa".”
Na Índia, em particular, buscando colocar a classe operária em primeiro lugar, esta segunda corrente está amplamente presente tanto na velha esquerda dominante quanto em grande parte da extrema esquerda. Podemos nomear essa questão de uma espécie de antifeminismo marxista. Ela tem influências tanto indígenas quanto internacionais.
Antifeminismo marxista na Índia
Kanak Mukherjee foi uma das primeiras mulheres a fazer parte do Partido Comunista da Índia, PCI, (Communist Party of India - CPI, em inglês) em Bengala e, também, foi líder do movimento de massa das mulheres, liderado pelos comunistas a partir do final da década de 1930. Mais tarde, ela se tornou uma figura chave no Partido Comunista da Índia (marxista) (CPIM, na sigla em inglês) e sua frente de Mulheres, a All India Democratic Women's Association (Mulheres Democráticas de toda a India, em tradução livre do inglês), teve grande parte nisso.
Mukherjee, pertencente a uma geração mais antiga de ativistas, rejeitou as ideias feministas e outros movimentos pela autonomia em muitos de seus escritos. Seu foco era lutar contra o Congresso, assim como o PCI (depois que o partido se separou, em 1964, e ela foi para o PCIM), defendendo a frente de esquerda do Governo em Bengala Ocidental, a partir de 1977. No entanto, algumas observações esparsas em seus ensaios políticos nos mostram o antifeminismo marxista na prática. Ela via o feminismo como, além de uma categoria homogênea, um movimento que colocava as mulheres contra os homens ao invés de colocar uma classe contra outra. No Movimento de Emancipação das Mulheres na Índia (1989), ela escreveu:
"Agora os imperialistas estão lançando mais um problema ao saudável movimento democrático das mulheres. Estão propagando a enganosa ideologia "feminista" Ocidental para desviar e confundir as mulheres das aldeias e das cidades... Contra a ideologia marxista e sua análise do movimento de emancipação das mulheres como parte integrante do movimento revolucionário popular e das lutas de classe do proletariado, essas entidades defendem teorias "feministas" "sem partido" ou "acima do partido", para confundir e perturbar o movimento democrático das mulheres." (103)
No parágrafo seguinte, ela expõe suas opiniões sobre as posições teóricas do movimento feminista:
"Estas feministas, ainda que de vários pontos de vista, colocam a problemática da mulher em oposição à dos homens e responsabilizam o sistema patriarcal da sociedade pela exploração das mulheres. Assim, tentam desviar a luta de classes para uma luta entre homens e mulheres. Isso gera ódio no seio da família, na vida conjugal e na vida social, além de levar ao apagamento do movimento das mulheres em relação aos conhecidos movimentos populares... Algumas líderes desses grupos de ação apresentam-se como esquerdistas e criticam os ensinamentos de Marx-Engels-Lênin sobre a problemática das mulheres." (Ibidem)
Ativistas mais jovens, que tiveram que construir suas organizações mantendo constante diálogo com a ala esquerda das feministas – tais como Brinda Karat, que, por muitos anos, foi Secretária-Geral da AIDWA e é agora membra do Bureau político do PCI(M) – tomaram uma posição, de certa forma, mais sutil, mas explicaram a continuação de famílias patriarcais como uma ressaca da classe dominante, sem nenhuma raiz materialista dentro da classe trabalhadora. (Karat, Survival and Emancipation 36-39)
Uma das principais influências do exterior tem sido as forças "classistas" (reducionistas de classe) no Ocidente, em especial seu material disponível em inglês. Aqui não proponho analisar todas as facetas dessa problemática e sim apenas mencionar o exemplo do livro "Class Struggle and Women's Liberation", de Tony Cliff. Cliff levou em consideração a corrente mais conservadora do feminismo e a tomou como norma e, então, denunciou todas as feministas e as rotulou como um tipo de força homogênea e voltou-se para Marx, Zetkin, Lênin e outros, como prova de que ele estava ao lado da tradição Marxista.
O argumento de Cliff contra as feministas, retomado em meados da década de 1980 por alguns ativistas indianos ligados ao Partido Socialista dos Trabalhadores britânico (British Socialist Workers Party, no original), incluiu a posição de que as feministas estão erradas em criar uma diferença entre homens e mulheres, mesmo quando olham para a opressão feminina:
"Isto não é negar, no entanto, que os homens se comportam de maneira opressiva em relação às mulheres... Mas a culpa deve ser colocada diretamente na sociedade de classes, não em seus representantes enquanto indivíduos. A opressão das mulheres prejudica os interesses tanto das mulheres trabalhadoras quanto dos homens." (Cliff, 229)
Em outros momentos, Cliff mistura disputas teóricas em torno da violência contra as mulheres e as coloca como menores, ou como algo que divide as mulheres e os homens:
"Muitas mulheres dentro do movimento pela libertação feminina costumam focar em questões em que homens e mulheres estão opostos – estupro, violência doméstica, salários para atividade doméstica – e ignoram áreas em que as mulheres podem contar com o apoio dos homens – tais como oposição ao corte orçamentário em hospitais e escolas, o direito ao aborto e a luta por salários iguais ou pelo direito de participar dos sindicatos... o movimento pela libertação feminina passou a focar apenas em questões em que as mulheres são mais fracas." (177-8)
Pressupõe-se, então, que lutar bravamente para que acabe a cultura do estupro e a violência contra a mulher não deve ser prioridade na agenda de um partido marxista ou um movimento de mulheres liderado por marxistas – uma posição absurdamente chocante, ainda mais quando se leva em consideração a violência contra a mulher na India! (Minha resposta ao uso aproveitador de Zetkin por Cliff em sua posição tacanha aparece em meu ensaio "O socialismo alemão e a libertação das mulheres" ["German Socialism and Women's Liberation"], 2003.)
Antifeminismo marxista versus a verdadeira tradição
Para dar sentido aos ataques de Kanak Mukherjee, vale a pena olhar para um de seus ensaios anteriores, publicado em uma coleção Bengali de seus escritos, Nari Andoloner Nana Katha, intitulado "Patitar Paap". Originalmente publicado em 1958 no Periódico da Associação Das Mulheres Ghare Baire, este escrito trata da prostituição.
O título resume sua opinião, pois "Patita" significa "a mulher perdida", e "paap", "pecado". Aparentemente, na década de 1950 já havia uma agitação entre as prostitutas para se organizarem e exigirem melhores condições. O ensaio analisa Engels, o diálogo de Lênin com Zetkin e as, alegadas ou reais, conquistas na URSS e na China, e discute as leis existentes para erradicar a prostituição na Índia.
Sobre as próprias prostitutas e suas demandas, há uma breve declaração: "O que as próprias mulheres perdidas estão dizendo ou fazendo não é importante. (...) A primeira exigência da mulher perdida é a exigência de liberdade de sua vida perdida. O que elas querem não é importante, a verdadeira pergunta aqui é o que queremos para elas e o que estamos fazendo a esse respeito.”
Em vez de criar uma longa polêmica sobre isso, eu quero ir para Marx, em uma idade muito jovem, fornecendo-nos uma abordagem diferente. Em "A Sagrada Família", há uma considerável discussão de gênero no contexto da crítica de Marx à análise de Szeliga do romance do socialista francês Eugene Sue, "Os Mistérios de Paris".
Para Sue, a ênfase está num altruísmo questionável mostrado pelo príncipe alemão Rudolph. Na discussão de Marx, encontramos uma análise de Fleur De Marie, uma prostituta de Paris, e de Louise Morel, uma serva de um homem burguês que era explorada sexualmente. A descrição de Marx de Fleur De Marie rejeita a ilusória filantropia de Sue, que mais tarde afeta a atitude de Mukherjee:
"Conhecemos Marie rodeada de criminosos, como uma prostituta atada à proprietária da Taberna dos criminosos. Nesta degradação, ela preserva uma nobreza humana de sua alma, uma falta de afetividade humana e uma beleza humana que impressiona aqueles ao seu redor e a eleva ao nível de uma poética flor do mundo criminoso, flor essa que deu a ela o nome de Fleur De Marie." (The Holy Family, in Marx and Engels, Collected Works, Vol. 4, 168)
Não é por um moralismo abstrato que Marx julga Fleur De Marie, mas pela forma como suas ações afetam a si mesma e aos outros. Apontando para as dificuldades das mulheres e meninas da classe trabalhadora, Marx rejeita a descrição do sacerdote de Fleur De Marie como pecadora. "O sacerdote tinha tomado uma decisão sobre a penitência de Marie; em sua própria mente ele já a condenou." (172)
Como os membros do proletariado não têm como sobreviver se não vendendo sua força de trabalho, quando não há trabalho suficiente, as mulheres são forçadas a vender seus corpos para sobreviver. Marx a vê entrar no Convento como uma ilusória consolação que foca na mente às custas do corpo. Os valores cristãos forçaram-na a concentrar-se em supostos crimes que ela tinha cometido, ignorando a sua realidade.
A observação afiada de Marx é: "A vida de Convento não se adequa à individualidade de Marie — ela morre. O cristianismo a consola apenas em sua imaginação, ou melhor, a sua consolação Cristã é precisamente a aniquilação da sua vida real e da sua essência — a sua morte." (176)
Pode-se argumentar que Kanak Mukherjee não pediu que todas as prostitutas fossem obrigadas a entrar em conventos, seja por uma persuasão à la Rudolph ou pela força da lei. No entanto, este é precisamente o ponto – que a sua condenação das prostitutas como "mulheres perdidas", quer queira, quer não queira, empurra-a na mesma direção de Sue e Szeliga.
É a degradação moral da prostituta que é enfatizada no artigo de Mukherjee, não a sociedade que a produziu. O ponto de vista de Marx sobre o que ela tinha feito é colocado em outros termos:
"A memória da catástrofe da sua vida – a sua venda à proprietária da Taberna dos criminosos – coloca-a num estado de melancolia. É a primeira vez, desde sua infância, que ela relembra esses eventos... Finalmente, ao contrário do arrependimento Cristão, ela pronuncia sobre o passado a sentença humana, ao mesmo tempo Estoica e Epicurista, de natureza livre e forte: "Enfin ce qui est fait, est fait." ["No final, o que está feito, está feito.” — ed.] (MECW v. 4, 169)
Vindo de Marx, a identificação epicurista precisa ser entendida como "materialista". E o ato de vender-se é causado pela sua necessidade de sobreviver. Assim, ela " compreende sua situação não como uma que ela criou por livre e espontânea vontade, não como a expressão de sua própria personalidade, mas como um destino que ela não merecia." (169)
A voz de Fleur De Marie merece ser ouvida: em vez de uma afirmação abrangente de que o que ela quer não importa, o que importa é o que "nós" (os libertadores de cima) queremos fazer com ela. É irônico que um fictício príncipe Rudolph apareça num traje marxista mais de um século depois de Marx tê-lo escrito.
A atitude de Marx em relação à questão é clara. Ele não está enaltecendo a condição inicial de Fleur De Marie, sendo que ela certamente não escolheu voluntariamente se tornar uma prostituta. Mas a vida alternativa que lhe foi dada era muito pior, como escreve Marx, pois ela foi obrigada a expiar-se por um feito que ela não era responsável. Tratar a prostituta como uma "mulher perdida" é colocar os holofotes nela e não no sistema social que a reprimiu.
Marx e Engels sobre a família
Vale também a pena olhar tanto para "A Ideologia Alemã" quanto para o "Manifesto Comunista", para vermos a forma como Marx e Engels olham para a família. Rejeitando a possibilidade de compreender a família como algo homogêneo através dos tempos, eles enfatizaram (isto foi, naturalmente, um trabalho conjunto) que se deve olhar para o contexto histórico e, particularmente, para as relações sociais envolvidas na produção:
"Não se pode falar isso ou aquilo da família como 'tal'. Historicamente, o burguês dá à família o caráter de família burguesa, em que o tédio e o dinheiro são o elo que os une e que inclui, também, a própria dissolução burguesa da família, o que não impede que as famílias em si continuem a existir. (…) Onde a família é realmente abolida, como acontece com o proletariado… o conceito de família não existe como um todo mas, aqui e ali, o afeto familiar baseado em relações extremamente reais é certamente encontrado. No século XVIII, o conceito de família foi abolido pelos filósofos, porque a família em si já estava se dissolvendo nos pináculos mais altos da civilização. Os laços internos da família, os diferentes componentes que constituem o conceito de família foram dissolvidos, por exemplo, a obediência, a piedade, a fidelidade no casamento, etc.; mas o verdadeiro corpo da família, a relação de propriedade, a atitude exclusiva em relação a outras famílias, forçam a convivência [cohabitation]…" (MECW v. 5, 180-81)
O argumento se repete, com mais retórica, no "Manifesto Comunista": "Em que se baseia a família atual, a família burguesa? Em capital, em lucro privado. Na sua forma mais desenvolvida, esta família só existe entre a burguesia. Mas este estado de coisas encontra seu complemento na ausência prática da família entre os proletários e na prostituição pública.”
Tal como acontece com grande parte do Manifesto, há uma compressão envolvida. O que eles parecem estar argumentando é que a família na sociedade burguesa precisa ser vista de forma distinta das famílias pré-capitalistas. Esta família, na sua forma ideal, existia entre a burguesia, ao passo que a ausência da propriedade dos meios de produção significava que, na prática, essa família tendia a não existir em meio à classe operária.
Nos últimos escritos de Marx podemos ver, com toda certeza, que ele reconheceu a existência de famílias entre os trabalhadores na prática. Mas não há uma idealização da família. Não há necessidade de argumentar que Marx tinha chegado a posições desenvolvidas pelas feministas. Claramente, não há elaboração alguma do conceito de patriarcado. O que eu quero dizer é que Marx está simplesmente nos apontando que não há nenhuma forma universal de família ao longo do tempo.
"A Ideologia Alemã" nos fornece, também, alguma evidência de uma atitude muito mais complexa em relação à suposta inferioridade das mulheres. A discussão sobre a divisão de gênero no trabalho ressalta que a divisão natural que existe devido à diferença biológica das mulheres, se transforma em algo social, com esposa e filho sendo descritos como os primeiros escravos do marido.
Uma vez que esta divisão "natural" é originalmente vista em sociedades que têm forças produtivas subdesenvolvidas, o desenvolvimento social e produtivo tornaria essa divisão desnecessária. Ao mesmo tempo, uma vez que as mulheres são "escravizadas" (quer isto se baseie na análise de classe de Marx e/ou seja apenas uma escolha linguística), isto sugere que o desenvolvimento tecnológico, por si só, não levaria à melhoria das mulheres. Pelo contrário, há indícios de que elas teriam de lutar pela sua emancipação.
Em um ensaio de 1846, para o qual Michael Löwy chama a atenção em sua "A teoria da revolução do jovem Marx", Marx olha para as opressões baseadas na família e outras opressões "privadas". Löwy argumenta que o ensaio "equivale a um caloroso protesto contra o patriarcado, a escravização das mulheres, incluindo as mulheres burguesas, e a natureza opressiva da família burguesa". Löwy acrescenta que há poucas coisas assim nos escritos posteriores de Marx.
Falando sobre a Revolução Francesa e suas consequências, Marx escreveu:
"A revolução não derrubou todas as tiranias; os males de que as autoridades arbitrárias foram acusadas persistem na família, onde causam crises análogas às das revoluções." (MECW v. 4: 604)
Marx e o feminismo
Isto não quer dizer que Marx previu cada passo progressista dado pelo feminismo. No entanto, isto sugere que as ideias de Marx muitas vezes o colocam mais perto de muitos argumentos feministas e o distanciam do antifeminismo marxista. O argumento de que uma revolução política e econômica pode não significar automaticamente a derrubada de todas as outras opressões, incluindo, particularmente, a opressão de gênero, é um argumento que seria feito por socialistas-feministas e marxistas-feministas sobre a Revolução Russa e outras revoluções.
O livro de Kanak Mukherjee "Women’s Emancipation Movement in India" (Movimento de Emancipação das Mulheres na Índia", em tradução livre) termina com uma citação de Lênin. De fato, é um bom argumento que Lênin nos traz, já que fala do movimento de mulheres comunista como um movimento de massas, não só do proletariado, mas de todos os explorados e oprimidos. (Mukherjee, 107-8)
O que Mukherjee não diz e o que Karat, hesitante, admite em seu livro, é que a derrubada do capitalismo não significa igualdade de gênero. "Com a corrosão geral do compromisso com a teoria socialista por parte dos partidos comunistas dominantes em muitos desses países ao longo do tempo, a luta consciente, ideológica e cultural, contra as atitudes patriarcais, que foram a marca dos primeiros anos da Revolução Bolchevique, praticamente desapareceu." (Karat, 44).
O problema, no entanto, não foi apenas a ausência de "lutas ideológicas e culturais", mas o fracasso em entender as raízes materiais do sexismo. Foi aqui que, nos últimos tempos, as marxistas-feministas deram passos importantes, mas baseando-se firmemente em Marx.
Identidade, interseccionalidade e luta de classes
Os argumentos antimarxistas, por vezes, vêm daqueles que reivindicam a política de identidade, considerando cada tipo de opressão em si como uma entidade distinta. O que argumento aqui é que cada uma destas opressões é real. Mas elas não podem ser resolvidas (a) dentro da sociedade capitalista, ou (b) cada uma por si como se não estivessem conectadas. Assim, a casta Dalit e o gênero são, ambas, classificações reais. Como a campanha #Metoo na Índia tem mostrado, o assédio sexual de mulheres Dalit raramente é reconhecido.
Ruth Manorama, falando em uma reunião no final de outubro, enfatizou a necessidade de falarmos sobre o assédio sexual sofrido pelas mulheres Dalit, que tem sido ignorado por centenas de anos. Cynthia Stephen, escrevendo sobre ONGs em Tamil Nadu, aponta que, quando ela protestou contra um abusador (que tinha abusado de outra pessoa) ela foi expulsa. Ela observa:
"A informação sobre os vários erros do diretor executivo e dos membros do Conselho de administração foi passada, por outros, não por mim, aos financiadores da organização onde eu trabalhei. Mas, até onde eu sei, não fizeram nada para intervir na época, ou talvez tenham escolhido acreditar nas suas mentiras e ninguém me perguntou sobre o meu lado da história. Foi porque eu fui vista como uma mulher Dalit e, portanto, uma pessoa cuja opinião não importava?" [1]
Uma maneira de lidar com estes problemas é criar uma hierarquia, decidindo que certas opressões têm prioridade. Isto é, de certa forma, o que o marxismo antifeminista faz, preferindo discutir sobre classe primeiro, outros assuntos depois. Invertendo os sinais, isto é o que por vezes é feito por críticos antimarxistas.
As marxistas-feministas têm estado na vanguarda de uma nova análise. Desde Lise Vogel, entre outras, até Tithi Bhattacharya, nos últimos tempos, um novo argumento vem sendo desenvolvido, salientando que as ferramentas analíticas de Marx e suas próprias discussões no Capital e em outros lugares podem ser ampliadas.
Os trabalhadores são sustentados por seu trabalho remunerado e não remunerado, que inclui o cuidado dos trabalhadores, eles mesmos, bem como o cuidado dos membros não-trabalhadores da família da classe operária (os idosos, as crianças, os doentes). A sua sobrevivência assegura a substituição da sua geração de trabalhadores pela seguinte. Isto tem sido chamado de teoria da reprodução social.
No ensaio "How Not to Skip Class", Tithi Bhattacharya escreve: "ao invés da compreensão complexa de classe, historicamente proposta pela teoria marxista, o que revela uma visão de um poder insurgente da classe trabalhadora capaz de transcender categorias seccionais, os críticos de hoje se apoiam em uma visão muito estreita de uma 'classe trabalhadora' na qual trabalhador é simplesmente uma pessoa que tem um tipo específico de trabalho.”
Bhattacharya segue de perto a análise de Marx do capitalismo e enfatiza, não que ele tenha feito todas essas conexões, mas que dentro de sua análise há espaço para a expansão de uma teoria completa da reprodução social. Bhattacharya aponta que lutas no local de trabalho não são a única forma em que as lutas de classes são travadas:
"As lutas no local de trabalho têm, portanto, duas vantagens insubstituíveis: primeiro, têm objetivos claros e metas; segundo, os trabalhadores estão concentrados em pontos do próprio circuito de reprodução do capital e têm o poder coletivo de desligar certas partes da operação. (...) Mas vamos repensar a importância teórica de lutas fora do local de trabalho, como as que clamam por ar mais limpo, por melhores escolas, contra a privatização da água, contra as alterações climáticas ou por políticas mais justas de habitação. Estas lutas refletem as necessidades sociais da classe operária que são essenciais para a sua reprodução social. Essas lutas são, também, um esforço da classe para exigir 'sua parte da civilização’. Neste caso, são também lutas de classes.” (Viewpointmag.com, 31 De Outubro De 2015.)
Bhattacharya, assim como David McNally em "Intersections and Dialectics: Critical Reconstructions in Social Reproduction Theory", seu ensaio em um volume de Social Reproduction Theory (2017), editado por Bhattacharya, argumenta que a teoria da interseccionalidade não explora o potencial de uma teoria unificada de opressão e exploração.
No entanto, se olharmos para a teoria interseccional no contexto dos EUA, onde o feminismo negro surgiu como uma resposta a exclusões, ou se olharmos para os atuais programas na Índia, onde mulheres Dalit e ativistas queer têm falado sobre o tema como uma resposta às suas exclusões do "mainstream" eu diria que nós não podemos tratar a interseccionalidade como algo como um quadro frágil.
Patricia Hill Collins argumenta que as opressões deveriam ser vistas como um único sistema historicamente criado. Há, de fato, diversas camadas de opressão e, a menos que os mais oprimidos e suas condições sejam compreendidas e eles tenham a sua própria voz, podemos acabar caindo em um discurso estilo Cliff em que os homens "dispostos" a ajudar devem estar em evidência, enquanto problemas desconfortáveis como estupro e agressão devem ser deixados para trás.
A política interseccional dos grupos socialmente oprimidos não é necessariamente revolucionária. Mas também não é reacionária. O que é chamado de "política de identidade" envolve lutas de diferentes grupos sociais. A política de identidade interseccional é um passo para reconhecer que é possível ser oprimido num contexto e privilegiado/opressor noutro.
As mulheres Dalitnos últimos tempos têm confrontado a campanha #Metoo na Índia, não porque elas sejam misóginas, mas porque elas sentem que a campanha está excessivamente, ou completamente, concentrada em mulheres em uma posição confortável de classe superior, ignorando o assédio sexual muito mais sistemático e a violência sexual perpetrada sobre as mulheres Dalit.
Quando, recentemente, um ativista queer fez um post no facebook mostrando estar feliz porque a campanha #Metoo estava mostrando que as mulheres heterossexuais também poderiam estar enfrentando problemas, a maioria dos outros ativistas queer discordaram.
A interseccionalidade é, portanto, uma consciência de que não há um explorador homogêneo e simplificado batendo da mesma forma sobre todos os oprimidos. E é uma tentativa de despertar a consciência de que, se a luta pelo progresso social não incorporar conscientemente todas as opressões, elas não poderão ser superadas de uma maneira automática. A luta pelo empoderamento e representatividade de um grupo oprimido pode aumentar ainda mais a opressão de outro grupo oprimido se não agir de forma autocrítica em relação a sua própria tática e retórica.
A interseccionalidade pode não levar a caminhos revolucionários. Mas o conceito do proletariado como uma "classe universal" em Marx sugere como Marx também fornece uma possível ligação entre a luta de classes e a intersecção. Se a emancipação do proletariado não é possível sem a emancipação de todos os oprimidos, isso precisa ser entendido, não como uma função automática de uma revolução proletária ideal, mas como um processo em que várias opressões serão vistas, discutidas e a devida representação será dada.
Por exemplo, isso pode nos sugerir a necessidade de construir organizações de massa da classe trabalhadora onde mulheres, Dalits, mulheres Dalit, a comunidade queer, estejam representadas no programa, na organização e na liderança em números cada vez maiores.
Portanto, precisamos compreender que o método de Marx nos fornece ferramentas para integrar diferentes opressões e nos mostra como o capitalismo as une. A interseccionalidade nos mostra que estas opressões distintas têm dimensões autônomas. Hoje vemos que nos voltarmos (novamente) [a (re)turn] para Marx tem muito a ver com a pressão das lutas concretas.
Se não compreendermos isso, podemos acabar voltando, mais uma vez, para um marxismo enrigecido que reduziria a classe a seres humanos abstratos, sem castas, sem raça e sem gênero que simplesmente vendem a sua mão de obra no mercado de trabalho. A teoria e a prática marxistas devem avançar, não recuar.
* Tradução de Isabela Martins (contato: isabela.gc@hotmail.com)
Referências:
Brinda Karat, Survival and Emancipation, Three Essays Collective, Gurgaon, 2005.
Heather A. Brown, Marx on Gender and the Family, Haymarket, Chicago, 2013.
Michael Löwy, The Theory of Revolution in the Young Marx (Historical Materialism book), Haymarket paperback, 2005; Brill hardcover, 2016.
Kanak Mukherjee, Women’s Emancipation Movement in India, National Book Centre, New Delhi, 1989.
Kanak Mukhopadhyay, Nari Andolaner Nana Katha, National Book Agency, Kolkata, 2001.
Kanak Mukhopadhyay, Marxbad O Narimukti, Paschimbanga Ganatantrik Mahila Samiti, Kolkata, 2001.
Karl Marx and Frederick Engels, The Holy Family, in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, Progress Publishers, Moscow, vol.4, 1975.
Karl Marx, “Peuchet: On Suicide,” in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, Progress Publishers, Moscow, vol.4, 1975.
Karl Marx and Frederick Engels, The German Ideology, in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, Progress Publishers, Moscow, vol.5, 1976.
Karl Marx and Frederick Engels, Manifesto of the Communist Party, in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, Progress Publishers, Moscow, vol.6, 1976.
Lise Vogel, Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory (with an introduction by Susan Ferguson and David McNally), Haymarket, Chicago, 2013.
Soma Marik, “German Socialism and Women’s Liberation,” in Anuradha Chanda, Mahua Sarkar and Kunal Chattopadhyay (Eds), Women in History, Progressive Publishers, Kolkata, 2003.
Tithi Bhattacharya (Ed), Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression, Pluto Press, London, 2017.
Tony Cliff, Class Struggle and Women’s Liberation, Bookmarks, Second Printing, London, 1987.
Notas de rodapé:
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