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O marxismo do século XX – introdução (André Tosel)


O marxismo do século XX – introdução

André Tosel

Tradução de Tomás Pécora

Revisão de Pedro Barbosa


Este texto é a introdução da obra de André Tosel, “Le marxisme du 20e siècle”, Paris, Syllepse, collection “Mille marxismes”, 2009.


Os estudos aqui reunidos foram redigidos entre os anos 1996-2007. Eles pertencem a um gênero literário modesto e geralmente considerado como menor, a história do pensamento ou das ideias. Eles se dedicam ao exame de alguns momentos importantes da chamada história dos marxismos e de certas interpretações de Marx. Por mais paradoxal que possa parecer, uma tal história não conheceu na França um desenvolvimento, ainda que o marxismo tenha exercido no plano ideológico e político um papel importante no século XX, notadamente desde os anos 1930 até o início dos anos 1980. É o modo desta presença que explica o estado e a natureza deste fraco desenvolvimento. A obra de Marx esteve ligada à política do Partido Comunista Francês [PCF] e às vicissitudes de grupos comunistas dissidentes como, sobretudo, aqueles que reivindicavam Leon Trótski e, em menor grau, grupos anarquistas ou libertários.


Esta obra foi, em si mesma, difundida de maneira descontínua em razão de sua própria configuração. Marx pouco publicou em comparação com a massa de escritos mais ou menos elaborados que nos deixou: na França, estiveram disponíveis desde o começo o Manifesto do Partido Comunista, Miséria da filosofia, a Contribuição à crítica da economia política, o livro I do Capital, e alguns textos históricos. Engels, com seu Anti-Dühring e seus estudos históricos, foi o pedagogo do marxismo na França bem como noutros lugares. Foi preciso esperar os anos 1930 para que fossem descobertos os textos que seriam disponibilizados e um pouco lidos sobretudo após 1945, como os Manuscritos de Paris (1844) e A ideologia alemã (1845-1846). Foi preciso esperar os anos 1950 para que fossem apresentadas pelas edições do Partido Comunista, as Éditions Sociales, os livros II e III do Capital na versão de Engels e Kautsky; os anos 1960 e 1970 para que fossem traduzidos os Grundrisse: fundamentos da crítica da economia política (1857-1858), as Teorias da mais-valia, e o Manuscrito de 1861-1863. A primeira edição um pouco geral, de Costes e Molitor, teve o mérito de fornecer uma melhor visão do conjunto, principalmente no que concerne aos artigos dos anos 1841-1844. Uma edição comparável à MEGA alemã jamais existiu na França. Os volumes editados por Maximilien Rubel pela Bibliothèque de la Pléiade das Éditions Gallimard são cuidadosos, mas seu princípio é discutível. São temáticos, pois reúnem os textos distinguindo de maneira acadêmica a filosofia, a economia e a política, ao passo que o pensamento de Marx põe em xeque estas divisões. Apesar dos esforços de Lucien Sève, as Éditions Sociales não forneceram uma edição científica cronológica. O projeto existiu, mas foi interrompido por falta de meios, quando do declínio do PCF. Deve-se registrar que na Itália uma edição científica pôde ser publicada.


Isto significa que o próprio Marx só pôde ser lido na França com profundidade mais tardiamente, pouco e ainda sobretudo por teóricos germanistas. Isso não impediu a existência de marxismos, de intelectuais e de militantes se dizendo marxistas. Por outro lado, as interpretações marxistas ditas ortodoxas – aquelas que foram mantidas pelas social-democracias da 2ª Internacional ou, mais tarde, pelos partidos comunistas marxistas-leninistas da 3ª Internacional – foram, até o desaparecimento da questão política do comunismo, marcadas pelo desconhecimento acerca do caráter essencialmente inacabado da crítica marxiana da economia política, do caráter problemático de sua relação com a filosofia e das lacunas de sua teoria política.


Marx foi simplificado em função de necessidades próprias das linhas políticas oficiais, das exigências da tática, e foi frequentemente utilizado de maneira manipulatória no seio da ortodoxia que foi o marxismo-leninismo. As contribuições de outros marxistas – a começar por aquelas do maior dos heréticos, Trótski, para não mencionar teóricos dos conselhos como Rosa Luxemburgo, Max Adler, Pannekoek e Korsch – foram ou vilipendiadas sem serem lidas, ou pura e simplesmente ignoradas em razão da insondável incultura teórica das direções operárias. Os preconceitos e os a priori do combate político e o sectarismo stalinista tornaram impossível uma liberdade intelectual mínima para fazer justiça às análises dos oponentes. Este ostracismo permanente, este obscurantismo reivindicado, foram a regra que foi aplicada aos raros debates autorizados no interior do PCF, e conduziram à marginalização de pensadores de real valor. Tal foi o destino reservado a Henri Lefebvre, o mais importante teórico em atividade desde antes de 1939 e autor de obras realmente teóricas, das quais La somme et le reste foi atacada por Lucien Sève que, posteriormente, expressou seus arrependimentos.

Os debates internos entre teóricos marxistas, efetivamente preocupados em tomar Marx a sério e confrontar seu pensamento com os desafios da história, não foram melhores. Ignorâncias recíprocas e interpretações precipitadas caracterizaram as polêmicas. O mais importante dos pensadores comunistas depois de Henri Lefebvre, Louis Althusser, jamais levou aquele em conta, nem julgou útil responder a certas objeções sérias feitas por Sève. Obras hoje tornadas essenciais, como a de Cornelius Castoriadis ou a de Jean-Paul Sartre – a Crítica da razão dialética – ou ainda as de Eric Weil e de Maurice Merleau-Ponty, não receberam por parte dos marxistas franceses, ortodoxos ou heréticos, a atenção que mereciam. O mesmo vale para contribuições mais recentes, como as de Guy Debord ou Gilles Deleuze. O marxismo na França viveu em circuito fechado e confundiu crítica intelectual com polêmica. Os marxistas frequentemente conduziram seus debates confundindo luta pelo poder simbólico com intervenção política. As elaborações de maior valor sempre se caracterizaram, inversamente, por sua capacidade de se aplicarem aos pontos altos do pensamento e de mensurar sua interpretação de Marx no interior destas confrontações. Lefebvre soube se apropriar de alguns temas de Nietzsche, da crítica surrealista e situacionista. Althusser interrogou a contribuição do estruturalismo (Braudel, Levi-Strauss, Lacan, Foucault) e a tradição da epistemologia histórica francesa (Bachelard, Canguilhem). Isso, contudo, não foi suficiente para tornar possível um início de historicização “marxista” das diversas correntes que se reivindicavam do marxismo. As regras mínimas de objetividade histórica e de reconstrução teórica interna raramente foram aplicadas.


O provincialismo francês contribuiu para agravar a situação. As grandes obras dos marxistas criativos do século ficaram desconhecidas: o jovem Lukács, aquele de História e consciência de classe, ressurge ao fim dos anos 1960, principalmente em torno das revoltas de 1968, mas o último Lukács, o da Ontologia do ser social e da Estética, é desconhecido. A obra de Ernst Bloch teve uma recepção confidencial apesar da existência de traduções. A Escola de Frankfurt recebeu menos suspeitas, sem dúvida porque o ceticismo que caracteriza suas produções entrou em sintonia com a crítica heideggeriana da modernidade. Walter Benjamin foi um pouco exceção em razão de sua dimensão de teólogo negativo e de teórico da modernidade estética. Gramsci, por muito tempo julgado pouco frequentável pelos dirigentes comunistas, teve seu momento nos anos 1970, mas desde então desapareceu da cena francesa, no instante mesmo em que as Éditions Gallimard publicavam os Cadernos do cárcere. Trótski, quanto a ele, interessou apenas aos trotskistas. Certas figuras permaneceram meros nomes, como Karl Korsch, ou Max Adler, o mais rico dos pensadores do austro-marxismo. Se saímos do circuito desses autores, a mesma constatação se impõe. Obras de teóricos da economia e da política tão significativas como as de Bukharin, Hilferding, Mattick, Renner e Neumann permanecem confidenciais.


Os estudos que aqui apresentamos buscam evitar ao mesmo tempo o sectarismo partidário e o conformismo acadêmico; eles tentam uma leitura conforme os cânones da crítica sem renunciar a assumir um engajamento ético-político fundamentado. Caberá ao leitor julgar se esta dupla finalidade foi honrada. Eles não são os únicos em seu gênero na França. Nós podemos e devemos fazer justiça a pesquisas que buscaram seguir esta via, trate-se das de Jacques Texier e Christine Buci-Glucksman sobre Gramsci, de Georges Labica sobre Lênin e o stalinismo, de Lucien Sève sobre Lênin, de Nicolas Tertulian sobre Lukács e Bloch, de Arno Munster sobre Bloch e Benjamin, do arrependido Jean-Marie Vincent sobre Adorno e Horkheimer, de Gérard Raulet sobre estes mesmos frankfurtianos, de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd sobre Benjamin, de Étienne Balibar e de Pierre Raymond sobre Althusser. Pedimos desculpas por eventuais esquecimentos nas menções.


Deve-se notar, no entanto, que não existe em nosso país uma história analítica dos marxismos depois de Marx feita por franceses. A melhor história geral dada a um autor é a do filósofo polonês, ex-comunista erradicado na Inglaterra, Leszek Kolakowski, séria e informada, muito marcada pela derrota do comunismo soviético (o que se compreende). Trata-se do Main Currents of Marxism. Its Rise, Growth, and Dissolution, em três volumes (1978), parcialmente traduzida ao francês pela Fayard (dois volumes a partir dos três). Ela veio na sequência de L’Histoire du marxisme do croata Peter Vranicki (1970) e do estudo do alemão I. Fetscher, Karl Marx und der Marxismus (1967). Existem histórias coletivas do marxismo como a Storia del maxismo contemporaneo de Annali Feltrinelli (1973) que fora na mesma época parcialmente posta à disposição do público francês (coleção 10/18), mas que desde então desapareceu do catálogo. Não foi traduzida, contudo, a grande Storia del marxismo, dirigida entre outros por Eric Hobsbawm e Georges Haupt, em cinco tomos muito ricos, publicada entre 1978 e 1981 pela Einaudi. Devemos, porém, registrar algumas exceções na própria França, mas elas remontam aos anos 1970: se trata de Le marxisme après Marx (1970) de P. Souyri, Les marxismes après Marx (1970) de P. e M. Favre, “Le développement du marxisme en Europe occidentale depuis 1917” de André Tosel na Histoire de la philosophie (Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, 1974; reeditada pela Folio, 1999). O Dictionnaire critique du marxisme, dirigido por Gérard Bensussan e Georges Labica (PUF, 1985) pôde fornecer indicações úteis, assim como o Dictionnaire Marx contemporain, dirigido por Jacques Bidet e Eustache Kouvelakis (PUF, 2001) pôde completar lacunas.


Não obstante, muito ainda resta a ser feito se quisermos ser justos com o pensamento do século XX e os marxistas heréticos e críticos que tentaram dar um segundo sopro à obra de Marx e compreender o que é que se passava no primeiro país que havia conseguido fazer uma revolução que se pretendia comunista, a saber, a União Soviética (1917-1991). Será preciso abrir novamente a questão de Lênin e do bolchevismo, de Stálin – inventor do marxismo-leninismo –, de Mao e da revolução cultural chinesa, a questão do sucesso momentâneo e do fracasso das revoluções comunistas, de suas promessas e de sua grandiosidade, de seus erros e horrores, de sua derrota final. A crítica sustentada ao longo do século XX pelo liberalismo social e pelo libertarianismo puro e duro deve ser reexaminada: Weber, Croce, Kelsen, Schumpeter, Bobbio, Aron, assim como Pareto, Hayek, von Mises, devem ser ouvidos novamente. Lênin, o teórico e o político que orientou de maneira decisiva o marxismo do século e a experiência soviética, deve ser confrontado com seus críticos. Fazem parte desta história e deste debate os pensadores “malditos” do nazifascismo, como Giovanni Gentile e Carl Schmitt. Este retorno crítico sobre a função efetiva dos marxismos ortodoxos e heréticos na história do século passado não pode se resumir à mera vitória do liberalismo. Aliás, que liberalismo? A fase atual da mundialização capitalista faz reaparecer as tensões, os limites do capitalismo, sem que esteja disponível um pensamento crítico capaz, ao mesmo tempo, de levar em conta as duras lições da história e enfrentar o período em sua novidade. Os estudos aqui reunidos pretendem ser contribuições inscritas nesta perspectiva.


É necessário situar de maneira mais precisa estas pesquisas, situá-las num panorama histórico e político. Nós podemos seguir a periodização de Kolakowski tal como é retomada e modificada pelo filósofo italiano Costanzo Preve. Este último, em uma obra provocadora, mas estimulante, Storia critica del marxismo. Dalla nascita di Karl Marx alla dissoluzione del comunismo storico novecentesco (2007), distingue três períodos.


O primeiro período começa com o trabalho de referência de Friedrich Engels, o Anti-Dühring, em 1875 e termina em 1914 com a Primeira Guerra Mundial. Ele corresponde à 2ª Internacional. É o período da fundação. Ele conhece a emergência dos partidos social-democratas e a afirmação do movimento operário. Esses partidos se relacionam de modo desigual com Marx, mas alguns são oficialmente marxistas, em particular a social-democracia alemã dominada por Bernstein e Kautsky, que são os herdeiros testamentários de Engels e que contribuem para a publicação dos manuscritos inéditos de Marx. A crise do revisionismo em 1899-1900 faz aparecer hesitações políticas de fundo. Os revisionistas – Bernstein e na França, de certa maneira, Jaurès – se recusam a continuar se referindo à perspectiva de uma revolução violenta e à ditadura do proletariado. Eles definem o socialismo no marco de uma república democrática e de uma socialização da economia. Os ortodoxos, tendo à frente Kautsky na Alemanha e Plekhanov na Rússia, aceitam a democracia como um meio, mas afirmam a necessidade da supressão do Estado e de uma certa violência revolucionária, sem acreditarem realmente nisso. Este debate pode ir até o ponto de colocar em questão certas previsões julgadas economicistas e catastrofistas de Marx e à eliminação da filosofia objetivista da história e da teoria do valor-trabalho. Uma ala de esquerda pretende realmente prosseguir a reflexão e reorientar a política para além do debate em um sentido efetivamente revolucionário, como Rosa Luxemburgo na Alemanha e o jovem Lênin na Rússia, que trazem importantes elementos de análise sobre a acumulação mundial do capital, mas se dividem acerca da questão da organização e da democracia. O teórico mais agudo segue sendo o italiano Antonio Labriola. Nem uns nem outros puderam impedir a integração ao Estado dos partidos social-democratas, a esclerose da ortodoxia e a impotência do reformismo. A Internacional se pretendia pacifista, mas não compreende em sua maioria a função dos imperialismos coloniais e se deixa nacionalizar. A guerra estoura e os partidos votam os créditos militares na espera por dias melhores.


O segundo período (1914-1956) é o da construção comunista após a vitória da revolução de outubro de 1917 e a criação do primeiro Estado proletário, a URSS. Ele é fundado por Lênin, estrategista sem par, capaz de transformar a luta pela paz em guerra civil revolucionária. Ele integra a 3ª Internacional, que funciona de 1917 a 1945 [na verdade, a III Internacional foi dissolvida em maio de 1943], e acompanha um formidável movimento de libertação nacional dos países dominados pelo colonialismo e imperialismo. Ele termina com o 20º congresso do Partido Comunista da URSS em 1956, que reconhece os crimes do período stalinista e abala irreversivelmente o movimento comunista mundial. Este último parecia ter atingido um apogeu, na medida em que a ditadura stalinista parecia haver conseguido, uma vez eliminadas todas as oposições internas, construir uma economia planificada relativamente estável e garantir condições mínimas de existência aos trabalhadores, malgrado as terríveis repressões exercidas sobre o campesinato e os militantes opositores. Este apogeu era composto também pela vitória sobre a Alemanha nazista, pela construção de um campo comunista na Europa oriental, pela organização, em alguns países (França, Itália), de partidos comunistas populares, pela vitória dos comunistas na China (1949) e pelo movimento anti-imperialista impulsionado pela revolução bolchevique. Esta construção era a base de referência da nova ortodoxia, o marxismo-leninismo, forjado por Stálin. Esta doutrina, com sua divisão em materialismo dialético, supostamente o fundamento mais metafísico da filosofia marxista, e em materialismo histórico, este posto como a verdadeira ciência da história das sociedades humanas e da edificação do comunismo, se torna, a partir dos anos 1930, uma ortodoxia no sentido do dogmatismo obscurantista. A liberdade de pensamento se torna impossível e numerosos estudiosos e dirigentes de valor terminam seus dias nos campos do gulag. De muitas maneiras, esta doutrina manteve e endureceu traços da primeira ortodoxia – economicismo, crença nas leis da história, culto da organização, perspectiva utópica da extinção do Estado e das classes. Mas as reformulava no sentido de um voluntarismo forçado que justificava todas as escolhas táticas da direção política e de um niilismo ético total, fundado sobre o fetichismo do partido. De todo modo, este corpus se torna uma ideologia de legitimação de uma nova formação social de classes não prevista por Marx. A percepção dos limites de tal construção é o elemento que une os intelectuais marxistas capazes de pensar. A questão da coerção, do lugar da dimensão ético-política, da hegemonia intelectual e moral, a crítica ao economicismo e ao culto das forças produtivas, a tomada de distância em relação ao determinismo em prol da possibilidade real e da ação e a necessidade de compreender a contribuição de Marx em sua relação com Hegel constituíram o fundo comum dos grandes heréticos. Lukács, Bloch, Gramsci, Korsch e a primeira Escola de Frankfurt debateram nesse terreno. Eles se dirigiram ao Príncipe moderno para que ele se reformasse, mas não puderam fazer nada no plano político, embora tenham salvado a honra do marxismo teórico. De qualquer maneira, eles lidaram com a questão da natureza do novo Estado soviético e, lhe criticando, muitos tiveram que se envolver com a tese de Trótski. A nova construção, para este último, se embasava em uma mistura contraditória de rudimentos de socialismo e de capitalismo de Estado burocrático. Esta tese foi fervorosamente discutida em um amplo espectro de posições. Em um polo, alguns apostavam na natureza ainda potencialmente revolucionária do Estado soviético e trabalhavam por uma reforma que incluísse um momento democrático (Gramsci, Bloch, Lukács). No polo oposto, outros concluíam que a revolução havia fracassado e se transformado em uma nova ditadura condenada a combinar economia de comando com regressão política e cultural (Horkheimer, Adorno, Korsch). De todo modo, a necessidade de fazer um bloco contra o nazismo contribuiu por um longo momento para manter as fileiras cerradas, uma vez que o cerco capitalista permanente havia imposto um estado de urgência tornado normalidade e impedido qualquer evolução no sentido de uma hegemonia das massas subalternas fundada sobre um centralismo orgânico e não-burocrático.


O terceiro período é o da dissolução do marxismo em complexa relação com a autodissolução da URSS e do comunismo do século em 1991. Tudo se precipita. Em 1956, a revolta húngara, os movimentos de dissidência na Polônia e noutros lugares fazem aparecer o déficit democrático do bloco soviético. Por sua vez, o movimento internacional se divide rapidamente. A China de Mao denuncia o revisionismo de uma direção soviética tornada nova classe dominante, incapaz de dinamizar a economia planificada e de libertar uma cultura sob ordens. A Revolução Cultural pôde realmente levar alguns (Althusser e seu grupo) a crer que ela começava uma crítica de esquerda ao stalinismo fundada sobre uma mobilização de massas. Na verdade, é a revisão de tipo democrático que constituiu a esperança dominante em muitos círculos comunistas e fazia do Welfare State a antessala de um comunismo democrático. Foi o breve período do eurocomunismo na França, Itália e Espanha e do humanismo marxista no Leste. Mas essa corrente não conseguiu jamais precisar qual seria a diferença entre o eurocomunismo e um retorno a uma social-democracia fortemente reformadora. De fato, as divisões do campo socialista, o endurecimento do controle soviético no leste europeu (Polônia, Tchecoslováquia, República Democrática Alemã) pesavam muito. É em 1968 que este período se revira, já que todas as correntes, todos os marxismos se manifestam: emergência da mais potente demonstração de força do movimento operário europeu, levante da Tchecoslováquia apoiado pelos comunistas reformadores, insurreição libertária da juventude estudantil e do feminismo, efervescência da Revolução Cultural, radiação da luta anti-imperialista da Cuba de Castro, do Vietnã de Ho Chi Min, onde os soldados comunistas obrigam o colosso americano a se retirar derrotado. É o momento no qual os grandes heréticos são lidos (Gramsci) ou concebem suas obras mais significativas (o último Lukács, Bloch). O marxismo é declarado por Sartre como insuperável e se torna referência obrigatória. Pensadores de real estatura, como Lefebvre e Althusser na França, Della Volpe na Itália, Kosik na Tchecoslováquia, experimentam uma nova relação com a obra de Marx, se esforçam por historicizar o próprio marxismo e compreender no quê se tornou a revolução de outubro. 1968 é a última ocasião para uma reforma intelectual e moral do comunismo do século. Mas o declive da derrota se precipita após 1968. A revolução cultural se revela inutilmente terrorista e a nova direção chinesa faz do partido único o agente de uma restauração capitalista suscetível de dar ao país o status de grande potência. A URSS não consegue se reformar. Sufocada também pela corrida armamentista imposta pelos Estados Unidos, perfurada pelos nacionalismos reprimidos, ela implode e se transforma em capitalismo de Estado, a nomenklatura se reciclando em elite administradora niilista. Os países capitalistas dominantes fazem bloco em torno de suas empresas internacionais para desagregar o movimento operário, direcionar a democracia no sentido do neoliberalismo. A hegemonia gramsciana é realizada de forma invertida, reforçando a associação dos partidos socialistas por um social-liberalismo que só existe para fazer valer uma diferença marginal diante do liberalismo-libertarianismo. Os Estados Unidos se tornam a única superpotência e identificam a ordem mundial com seus interesses geoestratégicos. A nova fase de mundialização manifesta seu poder uma vez que o capitalismo consegue se desenvolver explorando suas contradições internas. A referência ao marxismo se esvai, ainda que trabalhos de valor sejam produzidos. Marx, de fato, deixa de ser lido. A figura emblemática de todo o período é a de Louis Althusser: tendo se proposto a redefinir a ciência marxiana do continente história, ele inverte sua abordagem, saúda a crise final do marxismo e procura uma saída em um materialismo do encontro, esperando pelo acontecimento miraculoso que fará revirar a história. Maquiavel, Hobbes e Heidegger se tornam suas referências. Passa-se de um programa de reconstrução total a uma desconstrução radical. O marxismo está terminado em todos os sentidos do termo. Ele completa sua parábola com o comunismo e fica circunscrito enquanto configuração teórica.


Os estudos desta coletânea têm a princípio por objeto as elaborações que pertencem ao segundo período da história do marxismo, com importância particular fornecida a Gramsci, considerado, dentre os pensadores heréticos, o mais orgânico e o mais completo. Eles têm ainda por perspectiva essa reforma intelectual e moral de um príncipe que se revelou incapaz de se reformar. São levados em conta também os esforços pouco conhecidos de cientistas franceses de alto nível para dar à dupla temática do materialismo e da dialética um conteúdo irredutível à ortodoxia. A construção é considerada sempre possível e fecunda, como ilustra a reflexão de Lefebvre antes de 1940 em La conscience mystifiée. Os outros estudos em sua maioria se inscrevem no terceiro período, o da dissolução do marxismo histórico. Mas eles não se pretendem liquidacionistas. Sua dimensão crítica está a serviço da produção de uma teoria crítica à altura do desafio que constituem a derrota do comunismo histórico e a hegemonia do capitalismo mundializado.


Todos pressupõem a possibilidade de outras interpretações de Marx livres da vontade de ortodoxia, interpretações nutridas da confrontação com os pontos altos da modernidade teórica. Esta exigência é compartilhada por todos para quem a referência a Marx é, a uma só vez, a de um clássico e a de um território ainda a explorar. É uma alegria, por exemplo, que Jacques Bidet se confronte com o melhor da tradição social-liberal de Rawls e de Habermas em sua ambiciosa Théorie générale, que Hannah Arendt ou Cornelius Castoriadis sejam explorados neste sentido por outros. Não pretendemos nestes estudos fazer obra nova, mas participar, pela rememoração crítica, de um novo compromisso. O que é certo é que está definitivamente morta a vulgata frequentementeconsiderada como o fundo comum dos marxismos com as suas três teses: a) crença historicista em um sentido teleológico da história; b) fé economicista na apropriação ilimitada das forças produtivas; c) politicismo exclusivo centrado nas lutas de classes governadas por organizações com pretensões totalizantes.


Na verdade, desde 1991, como aponta Costanzo Preve, nós entramos no aprofundamento da mundialização capitalista. Para o marxismo e o estudo de Marx e do que se refere a ele, põe-se a questão de saber se este período é o de um pós-marxismo destinado a se diluir em mil marxismos sem um minimum teórico e político comum, ou o de uma outra fundação da teoria tornada capaz de refletir sobre seus limites, suas aporias, capaz de se reformar em um outro continente com outras confrontações, como o mostra o ensaio dedicado à bela figura de Gérard Granel tentando pensar com e contra Marx, Heidegger e Wittgenstein. O ponto de vista que, em definitivo, subjaz ao nosso percurso é este que emerge da passagem do terceiro período (renascimento da construção comunista comprometida) ao quarto período ainda aberto que se entrelaça em torno da questão “pós-marxismos ou refundação do marxismo?”. Esta questão não está resolvida. Ela não cessa de nos provocar, assim como é tarefa nossa trabalhá-la. As mais significativas obras teóricas francesas que operam neste novo período não são hostis a Marx: Bourdieu, Deleuze, Foucault, Derrida e Badiou são a prova. Todas conservando elementos e fornecendo, por sua vez, outros que são pedras para uma nova construção. Um terreno se abre e ele tem por tarefa uma crítica do capitalismo mundializado.

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