Notas feministas para refletir sobre o nosso projeto de sociedade
Comissão de Mulheres da IV Internacional
Tradução de Bartira Mannini
Revisão de Pedro Barbosa
Em 2019 o CI (Comitê Internacional) da Quarta Internacional discutiu uma “Proposta para um debate programático”. Depois disso, decidiu realizar de maneira ampla e aberta a discussão sobre nossa concepção de uma nova sociedade. Nesse contexto, foram requisitadas a três de nossas comissões que, ao mesmo tempo em que organizam atividades com movimentos sociais, desenvolvessem nossa reflexão sobre o tipo de sociedade que queremos. Cada uma dessas três comissões, sobre Ecologia, questões LGBTQI e opressão contra a mulher e feminismo, escreveram uma pequena contribuição para desenvolver a discussão. Publicamos essas três contribuições, juntamente com o documento original, no espírito de promover tais discussões que são mais do que necessárias hoje em dia. Essas contribuições, é claro, foram escritas antes da pandemia de Covid-19.
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”. Rosa Luxemburgo
Este texto pretende contribuir com o debate que tomará lugar no próximo Comitê Internacional, unindo reflexões que temos desenvolvido a partir do feminismo.
1. A divisão sexual do trabalho em que a opressão contra a mulher se sustenta, e que serve aos interesses do capitalismo, produz uma separação entre o público e o privado, o produtivo e o improdutivo. Essa separação assume uma forma específica sob o capitalismo, de modo que podemos definir a reprodução social como o processo em que o trabalho doméstico e de cuidado que as mulheres exercem adquire um sentido político, de produção (maternidade) e reprodução da força de trabalho (assumindo todas as tarefas domésticas e de cuidado necessárias para que a classe trabalhadora sobreviva), tornando possível a reprodução do capitalismo. É essa lógica que queremos superar: essa é a raiz das desigualdades que as mulheres sofrem.
A necessidade de mudanças estruturais nas esferas econômica, política e social implica uma reorganização dos trabalhos e do tempo que fará surgir uma sociedade radicalmente diferente. O capitalismo, de mãos dadas com o patriarcado, controla o nosso trabalho (dentro e fora de casa) e o nosso tempo. Molda os nossos ritmos de vida, organiza o espaço em que vivemos (nossas casas, bairros, cidades...), a forma como construímos nossas identidades, determina o modo como nos relacionamos uns com os outros e construímos nossos afetos, o modo como nos alimentamos, a nossa relação com o meio ambiente, etc., etc., etc. Tudo é organizado em torno da lógica patriarcal e capitalista da acumulação de capital. Nossa lógica é oposta: colocar as pessoas e suas necessidades no centro. E isso significa quebrar com a cisão entre público e privado, acabando com a invisibilização do aspecto reprodutivo e colocando as pessoas no centro, portanto rompendo com as diferentes opressões e dominações que nos afetam.
2. O que significa colocar as pessoas no centro? Que, nós, mulheres, paremos de ser as responsáveis por garantir o bem-estar das pessoas com quem nos importamos e que paremos de ser as responsáveis exclusivas pela reprodução social. Isso significa também reconhecer a nós mesmas como pessoas, já que exercemos tais tarefas às custas de nós mesmas e de nossos projetos de vida. Quando falamos sobre a socialização dessas tarefas, não estamos falando sobre uma coletivização das tarefas, mas sim sobre repensar a sociedade e a forma como concebemos nosso modo de vida. É fundamentalmente sobre construir serviços públicos fortes e abrangentes, mas também sobre romper com a inércia do cotidiano. Não podemos continuar sendo as mulheres que preparam café-da-manhã ou lavam as roupas para os outros. Temos de questionar nossas rotinas, nossos ritmos de vida, para que sejam mais sustentáveis para o nosso corpo e para o planeta. Colocar as pessoas no centro também significa construir cidades onde as pessoas e suas necessidades estejam no centro. Redesenhar o transporte, não para chegarmos ao trabalho ou ao shopping mais rápido. Repensar o uso dos espaços públicos, diminuindo a distância entre o centro e a periferia de nossas cidades, ou entre os espaços urbanos e rurais. Atualmente, isso tem a ver com o que é importante e quem o faz. Também implica repensar quais trabalhos são socialmente necessários e quais não são. Nossas prioridades são diferentes.
Da mesma forma, assumir as tarefas de reprodução social como algo social e político evita que cada um de nós fique em casa negociando a distribuição das tarefas. No sentido em que isso é atualmente compreendido como algo individual e pessoal, fora da esfera política. Sabemos que essa negociação não existe sob condições de igualdade, dado o papel e posição que cada gênero possui. A família deve parar de ser o espaço onde a dominação se reproduz. Deve parar de ser a única forma de vivermos juntos. Isso implica repensar as formas de educação/criação de maneira mais coletiva. Implica abolir a família como instituição de reprodução do sistema. Implica politizar nossas casas e cada uma de nossas decisões pessoais sobre maternidade e educação/criação. Devemos também refletir sobre como entendemos a infância, os idosos, as pessoas com diversidade funcional e seus papeis em nossa sociedade, as relações sociais que estabelecemos com eles e como podemos ser capazes de quebrar com a lógica da dominação que internalizamos. Os quarteirões, as ruas os locais de trabalho, os centros educacionais e cada um dos espaços onde socializamos devem se tornar nossos, visando a construção de outras relações interpessoais e sociais. O modo como compreendemos nossas relações afetivas também deve ser questionado, na medida em que hoje em dia elas se articulam sobre desigualdades. Questionar a monogamia, construir outros modelos de relações. Tudo isso deve ser feito com respeito pela decisão pessoal de cada um, partindo da premissa de que não há apenas uma opção ou uma opção que seja melhor do que a outra. Apenas desta forma poderemos construir nossos projetos de vida, compartilhados ou não com outra pessoa ou pessoas, livremente e na diversidade. Desta forma podemos abrir espaço para a diversidade de formas de ser, se expressar, se relacionar, construir relações, de escolher entre diversas opções e romper com uma forma única de fazer as coisas, em um sentido democrático e plural, possibilitando decisões pessoais a partir do desmantelamento das normas hegemônicas do atual sistema econômico, político, social e cultural.
3. Reconhecer o trabalho reprodutivo e de cuidado não significa necessariamente reconhece-lo em termos monetários ou converte-lo em emprego (mesmo que com parâmetros diferentes dos do capitalismo). O debate sobre salário doméstico versus socialização do cuidado não é novo, mas está se tornando relevante novamente. Nosso compromisso com a socialização do cuidado não envolve somente pensar sobre uma rede de serviços públicos que garanta esse trabalho, mas envolve também repensar os próprios serviços públicos a partir de um ponto de vista mais democrático, mais descentralizado, mais participativo, menos autoritário, menos rígido e mais comunitário.
4. Quando pensamos sobre essas mudanças profundas não devemos esquecer que isso nos força a repensar nossa existência mais íntima, como nos comportamos e nos relacionamos com nós mesmos, nossos corpos, nossa sexualidade e com as outras pessoas. A divisão sexual do trabalho não é baseada somente na separação entre o produtivo e o reprodutivo, mas também na complementariedade de gêneros, de homem e mulher, os estereotipando e excluindo outras possibilidades de ser, estabelecendo normas que nos limitam. Nosso projeto de sociedade deve incluir a ruptura com o binarismo e a normatividade (heteronormatividade e cisnormatividade) como algo central e estratégico. O modo como vivemos nossos desejos e prazeres, como construímos nossa identidade de gênero e nossa orientação sexual, e como as expressamos, está intimamente vinculado a essa divisão sexual do trabalho, e também faz parte do patriarcado buscamos derrubar. É necessário construir uma nova cultura que seja oposta à cultura do estupro, que reconheça os corpos de todas as mulheres – cis ou trans – e seus desejos, que as reconheça como sujeitos capazes de tomar decisões sobre seus próprios corpos, suas vidas e sua sexualidade, que torne visível o fato de que há centenas de formas de ser uma pessoa, de sentir e expressar nosso gênero e sexualidade. Não como algo complementar ou secundário, mas como parte fundamental de nossa estratégia, na medida em que a acumulação de capital também passa pela despossessão de nossos corpos e nossa sexualidade enquanto serve à sua própria lógica e sobrevivência.
Comments