As mesmas disjuntivas que em 1917
Claudio Katz
Tradução de Andreza Sant’ana
Revisão de Cleusa Todescatto e Pedro Barbosa
Resumo
A revolução russa atemorizou as classes dominantes que aceitaram concessões sociais impensáveis. Ilustrou a dinâmica contemporânea de confronto com o capitalismo e as características que singularizam um perfil socialista. A radicalização dos bolcheviques inspirou processos equivalentes no século XX.
Os revolucionários não causaram os horrores de que padeceu a URSS, nem anteciparam o stalinismo. Agiram com grande respaldo popular, nas antípodas de um golpe. Seu projeto era factível, mas foi distorcido por uma burocracia que finalmente se aburguesou.
A imaturidade das forças produtivas não impedia o início do socialismo e as dificuldades dessa experiência não se superam esquivando-se do manejo do Estado. O exclusivismo proletário ignora a variedade de trajetórias inauguradas por 1917. A atualização desta ação exige uma ligação de Lenin com Gramsci, para lidar com o dilema do socialismo ou barbárie.
* * *
A revolução russa foi o principal acontecimento do século XX. Gerou enormes transformações sociais e suscitou uma inédita expectativa de emancipação entre milhões de oprimidos.
Esse impacto se verificou no pânico que invadiu as classes dominantes. Alguns temiam a perda de seus privilégios, outros achavam que seu controle sob a sociedade estaria extinto e muitos se prepararam para o ocaso final da supremacia burguesa. Esse medo explica as enormes concessões do pós-guerra. O estado de bem-estar, a gratuidade de certos serviços básicos, o pleno emprego e o aumento do consumo popular eram melhoras impensáveis antes do bolchevismo. Os capitalistas aceitaram essas conquistas pelo temor do comunismo.
Desse pavor surgiu o conceito de justiça social, como um conjunto de direitos aos desamparados e o registro da desigualdade como uma adversidade. Essa revolução impôs a maior incorporação de direitos coletivos da história. Os capitalistas copiaram normas estabelecidas pelo regime soviético para dissuadir a imitação desse modelo. Aceitaram a universalização das pensões e seguridade laboral.
O próprio esquema keynesiano de consumo massivo irrompeu pelo temor do socialismo. A dinâmica espontânea de acumulação privilegiava os lucros e não contemplava melhorias estáveis na renda da população.
Os fantasmas criados pela revolução perduraram por mais tempo que sua efetiva incidência. Ao cabo de muitas experiências, as potências ocidentais digeriram a existência da União Soviética e acordaram uma convivência, para garantir uma continuidade do capitalismo no “grosso” do planeta. Mas ainda que chamado bloco socialista tenha subsistido, a memória dos sovietes continuou inquietando os poderosos.
Somente o colapso desse adversário restaurou a confiança dos capitalistas. Eles reforçaram o neoliberalismo e recompuseram os mecanismos clássicos de exploração, com flexibilidade de mão-de-obra, desemprego em massa e ampliando brechas sociais.
As modalidades desenfreadas do capitalismo apareceram nas últimas décadas devido à ausência de contrapesos. Essa virulência tende a recriar as catástrofes que desencadearam o tsunami de 1917, repensando o que aconteceu cem anos atrás.
O impacto de outubro
A cronologia da revolução entre fevereiro e outubro de 1917 foi investigada em detalhes. Tudo começou com os protestos que forçaram a abdicação do czar e a constituição do governo Kerensky. Essa administração provisória atuou sob a pressão direta dos sovietes operários que floresceram nos centros industriais. Eles exigiram o cumprimento de demandas categóricas de paz, pão e terra.
Enquanto o governo continuava a guerra e adiava as reformas exigidas pelos trabalhadores, a influência dos bolcheviques aumentou junto com o descontentamento popular. Kerensky perdeu a autoridade e uma tentativa golpista da direita (Kornilov) sucumbiu diante da resistência dos trabalhadores.
Em um quadro de deserções massivas no fronte e de protestos dos camponeses, o partido de Lenin liderou a tomada do Palácio de Inverno. Esse resultado coroou uma estratégia revolucionária definida nas teses de abril e consumada com a insurreição. Nos dez dias que abalaram o mundo, se perpetrou a ação mais impactante da história contemporânea.
A revolução coroou sua antecedente de 1905 e fazia parte de um ciclo internacional de convulsões inaugurado no México (1910) e na China (1911). Mas a ação bolchevique não foi apenas vitoriosa. Ela incentivou a grande sequência de sublevações anticapitalistas que abalaram a Europa na década de 1920 (Hungria, Alemanha, Bulgária, Itália).
Essa onda foi projetada para a década seguinte e foi recém contida pelo ascenso do fascismo e pela derrota da república na guerra civil espanhola. Todas as comoções do entreguerras (incluindo a depressão dos anos 30) foram derivações da virada iniciada em 1917.
O triunfo dos bolcheviques levou a revisar o sentido contemporâneo da revolução. Os grandes feitos da Inglaterra (1648), Estados Unidos (1776) ou França (1789) foram conceituados após o seu surto. O mesmo aconteceu com a Comuna de Paris (1871).
Na Rússia, pelo contrário, prevaleceu uma consciência plena do evento. Os seguidores de Lenin inauguraram o costume de teorizar as revoluções sobre sua própria marcha. Todo o pensamento marxista foi desenvolvido em estreita conexão com esses processos e distintas teorias (dependência, desenvolvimento desigual e combinado, imperialismo) foram concebidas para esclarecer o momento, a oportunidade ou a localização da revolução.
A ação bolchevique confirmou a diferença qualitativa que separa uma revolução contemporânea de qualquer rebelião. Destacou não apenas a existência de um levante dos oprimidos, mas também o peso dos desenlaces militares, o colapso do Estado e o surgimento de organismos de poder popular. Ilustrou como estes últimos pilares sustentam a construção de uma ordem alternativa. Os sovietes inauguraram as modalidades de poder dual [dualidade de poder], que emergiram em outras revoluções do século XX através de conselhos, movimentos ou exércitos.
O que aconteceu em 1917 também confirmou que as revoluções irrompem em situações extremas e frequentemente por influência da guerra. A batalha frontal contra o capitalismo não emergiu, como se supunha, de uma crise econômica, mas do tormento criado pela conflagração entre impérios. O envolvimento forçado da Rússia nesse sangramento causou dois milhões de mortes e uma enorme resistência dos soldados a se oferecerem como bucha de canhão. A demolição do Estado czarista pela guerra facilitou a vitória fulminante dos bolcheviques, que conquistaram adesão popular quando Kerensky se recusou a negociar a paz.
Lenin acordou o fim das hostilidades a um preço muito alto. Assinou acordos que entregavam territórios vastos e populosos para cumprir com o prometido. A audácia exibida para tomar o poder foi complementada por um grande realismo no manejo do Estado.
Cada passo dado pelos bolcheviques foi estudado com fascinação por várias gerações de militantes. Todos assimilaram a nova cultura comunista com o objetivo de repetir a insurreição de outubro.
Revolução socialista
A principal novidade de 1917 foi o caráter socialista da revolução. Essa singularidade foi definida por um conjunto de objetivos, práticas, sujeitos, direções e horizontes geográficos.
Os bolcheviques explicitaram imediatamente seus objetivos comunistas. Enunciaram essa finalidade e apontaram caminhos para alcançá-la. Propuseram avançar em direção à igualdade social, por meio de um sistema político de autoadministração popular e um regime econômico de propriedade coletiva dos meios de produção. Discutiram a eventual temporalidade desse processo e o tipo de transição necessária para coroá-lo. Conceberam esse futuro como um resultado de ações humanas conscientes, muito longe de qualquer expectativa religiosa em um futuro destinado.
Mas a prática anticapitalista definiu o curso da revolução mais do que as previsões teóricas. A intensidade do confronto com as classes dominantes resultou em uma guerra civil feroz e uma sucessão imprevista de expropriações. O controle dos trabalhadores sobre as empresas se transformou em uma anulação da propriedade e derivou uma série de contramarchas, para adaptar a atrasada economia russa à necessária subsistência do mercado.
O modelo de estatização plena (comunismo de guerra) foi substituído por uma combinação de planejamento com mecanismos de oferta e demanda (NEP). Esse vai-e-vem ilustrou que a construção socialista não segue uma cartilha prévio.
A revolução foi liderada pela classe trabalhadora. Um setor numericamente minoritário, mas altamente concentrado, definiu o resultado das principais batalhas, corroborando a grande incidência de sua coesão social e peso econômico. Mas a vitória foi conquistada mediante uma aliança com os camponeses, que forjaram nas trincheiras o mesmo tipo de sovietes erigido pelos assalariados nas cidades. Essa rede comum de organização popular sustentou a queda do czar, a substituição de Kerensky e a insurreição bolchevique.
Lenin consolidou essa união decretando o confisco de grandes propriedades e sua entrega aos camponeses. Implementou uma gigantesca transformação social que permitiu a vitória do exército vermelho na guerra civil.
O segredo dessas realizações foi o partido construído por Lenin em um minucioso trabalho de organização. Esse agrupamento se encaixou às ações necessárias para derrubar uma autocracia repressiva e liderar um processo insurrecional. Essa estrutura permitiu aos bolcheviques lidar com o desastre econômico, o isolamento internacional e a invasão estrangeira.
O partido introduziu uma combinação inédita de disciplina e convicção. Conformou uma rede de ação muito eficaz e poucos precedentes desde as ordens monásticas da Idade Média.
Mas mais significativa foi a consolidação de uma nova forma de militância inspirada na fascinação suscitada pelos bolcheviques. Três gerações de lutadores se uniram em todo o planeta aos partidos que promoviam a imitação do exemplo soviético. Pertencer a essas organizações tornou-se um ideal de vida para aqueles que assumiram compromissos incondicionais com a construção do homem novo. A convicção comunista substituiu a coação militar e o misticismo religioso, como principal motivação para o comportamento heroico.
A revolução russa foi concebida como um degrau de sublevações internacionais que deveriam continuar na Europa. Quando essa expectativa caiu, se priorizou a aposta pelo socialismo no Oriente. Lenin fundou a III Internacional para fomentar a revolução em todo o mundo e, apesar das condições restritivas que impôs para ingressar nessa organização, ele conseguiu um grau extraordinário de adesão.
A revolução russa adotou, portanto, um perfil socialista em seus objetivos, práticas, protagonistas, lideranças e escalas internacionais. Essas características a distinguiram de suas equivalentes nacionais, democráticas, anti-imperialistas ou agrários de outras latitudes e circunstâncias.
De toda essa variedade de componentes, o viés socialista foi determinado principalmente pela adoção de medidas anticapitalistas. Esse ingrediente definiu a principal singularidade do ato de outubro.
Dinâmica de radicalização
A revolução russa resolveu velhos debates sobre o início do socialismo. Marx havia suposto que essa transformação começaria na Europa, depois realçou o impacto dos levantes na periferia e finalmente entreviu vários cursos possíveis. Considerou que a Rússia poderia seguir um caminho baseado na subsistência das comunidades agrárias. Esse país concentrava múltiplas questões pela combinação de feudalismo e capitalismo, raízes simultâneas na Europa e na Ásia e misturas extremas de modernidade e atraso, sob uma monarquia obsoleta. A predominância camponesa coexistia com um crescimento fabril continuado, que suscitava muitas questões sobre o regime econômico-político que substituiria o czarismo.
Os teóricos populistas (Danielson, Vorontsoy) descartaram a viabilidade do capitalismo por causa da estreiteza dos mercados e propuseram um salto direto ao socialismo baseado em formações agrárias. Os chamados marxistas legais (Tugan, Bulgakov) destacavam o peso da classe trabalhadora, ponderavam as lutas econômico-sindicais e esperavam resultados positivos de uma reforma liberal da monarquia.
Os mencheviques (Plekhanov) acreditavam que um desenvolvimento clássico do capitalismo pós-czarista era conveniente. Concebiam o socialismo como um produto posterior dessa expansão e convocavam a uma aliança com a burguesia para acelerar essa transição.
Os bolcheviques também consideraram, no início, como necessária a passagem por um período capitalista. Mas rejeitavam a rigidez de períodos estritamente definidos para o avanço ao socialismo. Lenin promovia uma revolução agrária – por meio da nacionalização da terra – para impulsionar a ligação entre as duas etapas.
Somente Trotsky entreviu, desde 1905, o caráter socialista que assumiria um levante bem sucedido contra o czarismo. Intuiu que a deserção da burguesia e a mobilização radical do campesinato induziriam o proletariado a transbordar a estrutura capitalista. Os acontecimentos de 1917 confirmaram essa previsão.
Mas a vitória bolchevique emergiu das decisões audaciosas impulsionadas por Lenin, que substituiu sua proposta de revolução democrática por uma opção diretamente socialista. Essa virada amadureceu diante da beligerância popular, da irrupção dos sovietes e da capitulação do governo provisório.
A flexibilidade política do líder comunista foi decisiva. Ele adotou conclusões de Trotsky que havia rejeitado anteriormente e assumiu postulados dos populistas, que havia combatido frontalmente.
Essa conduta ilustrou o peso de uma atitude consequente e a centralidade do princípio de radicalização em uma estratégia revolucionária. O marco bolchevique começou com pedidos de paz, pão e terra e terminou com a captura do Palácio de Inverno. A direção comunista catalisou essa dinâmica, sabendo que a realização dos anseios populares exigia decisões radicais.
Essa política definiu todos os sucessos de fevereiro a outubro. Lenin retomou o comportamento de Marx em 1848, quando este encorajou um desemboque socialista para a revolução democrática alemã. Também compartilhou a conduta assumida por Rosa Luxemburgo, de transformar reformas sociais em plataformas de ação revolucionária. A radicalização propiciada por Lenin levou os sovietes ao poder.
Referente de múltiplos processos
A revolução russa se converteu no modelo geral de transformação radical do século XX. Seu impacto foi tão significativo que alguns historiadores definiram a temporalidade abreviada daquele século pelo início e desaparecimento da União Soviética.
Os bolcheviques indicaram um caminho socialista para os anseios de democracia, soberania e desenvolvimento de distintos países. Enfatizaram que as revoluções não explodem buscando objetivos anticapitalistas imediatos. Esses objetivos amadurecem no confronto com as classes opressoras.
Na Rússia, as prioridades foram a derrubada do czar, o fim da guerra e a eliminação da nobreza. Em outras latitudes, foram travadas batalhas para erradicar a opressão colonial, derrubar ditaduras, conquistar liberdades públicas ou iniciar processos de industrialização.
A expansão imediata da ação bolchevique foi detida pelos resultados adversos das tentativas insurrecionais na Europa. Mas, no final da Segunda Guerra Mundial, a herança de Lenin reapareceu na Iugoslávia e na China e nos anos 70 foi verificada no Vietnã. Todos esses processos retomaram o princípio de erradicar a dominação de uma minoria capitalista sobre o conjunto da sociedade.
A familiaridade da revolução cubana com seu precedente soviético foi igualmente clara. As colunas guerrilheiras que entraram em Havana agiram contra a tirania de Batista com a mesma força dos soviéticos. Responderam à agressão imperialista com processos acelerados de nacionalização e uma explícita assunção da identidade socialista. Essa valentia evitou a frustração verificada nas duas grandes revoluções anteriores da região (México em 1910 e Bolívia em 1952).
Cuba não apenas seguiu as trilhas de 1917. Revitalizou o debilitado legado de Lenin após várias décadas de deformação burocrática. Essa renovação foi observada na recuperação do internacionalismo revolucionário feita por Che Guevara.
Os ecos da III Internacional reapareceram na OLAS [Organização Latino-Americana de Solidariedade] e nas Conferências Tricontinentais. Diferente de outras iniciativas transformadoras da época (como Bandung). Os eventos promovidos por Cuba propunham explicitamente expandir o fermento revolucionário, criando “um, dois e muitos Vietnã”.
Fidel continuou o projeto inaugurado por Lenin e ocupou na América Latina um lugar equivalente ao impulsionador dos sovietes. Atuou com a mesma audácia na radicalização de um projeto popular.
Gérmen do stalinismo?
Desde a queda da URSS, a análise da revolução russa foi substituída por sua difamação. Se apresentou a maior tentativa de reduzir a desigualdade como a pior desgraça da história contemporânea.
O pico destas impugnações reacionárias se produziu nos aniversários das duas últimas décadas (1997 e 2007). Um livro negro sobre comunismo (Courtois, 2010: 52-129) reuniu relatos furiosos contra o bolchevismo. Descreve a revolução como uma escalada de crimes perpetrados por conspiradores ambiciosos. Acusa o leninismo de inúmeras atrocidades, omitindo o horror precedente gerado pela imolação de soldados nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Desconhece, também, que a insurreição de outubro foi uma ação quase sem sangue.
O sangramento só reapareceu nos últimos anos por causa da guerra civil desencadeada pelos exércitos brancos, apoiada pelas potências imperiais. Essa contrarrevolução causou oito milhões de vítimas e deixou um país em ruínas, com fábricas abandonadas e povos famintas.
A principal acusação contra o leninismo recai sobre o terror vermelho, organizado pelos serviços de segurança dos bolcheviques (Tcheka). Tiveram grandes atribuições de intimidação e execução para contrarrestar a criminalidade dos brancos. As mortes geradas por essa defesa foram muito inferiores àquelas causadas pelos direitistas e as [classes] predominantes em outras revoluções clássicas (como a francesa).
Não há dúvidas de que o poder soviético incluiu injustiças. Mas essas desgraças acompanharam todas as transformações radicais da história. Se o bolchevismo é impugnado por essa desventura, teria de se invalidar os distintos processos de libertação, independência ou república dos últimos séculos. Nenhum país poderia celebrar suas festas nacionais.
Os críticos acusam Lenin de usar a máscara de um projeto igualitário para instaurar a ditadura de um grupo sobre seus adversários. Estimam que a não legalização de outros partidos retrata essa perversão. Mas esquecem que essas restrições foram adotadas durante a guerra civil, em meio a atentados e assassinatos. Se desenvolveram no marco de polarização política que precipitou a dispersão e extinção da oposição. Também aqui a revolução russa reproduziu o que aconteceu em casos anteriores, que os historiadores costumam exaltar quando envolve o surgimento de sua própria nação.
Muitos questionadores observam na revolução o gérmen do pesadelo sofrido pela União Soviética sob Stálin. Mas deveriam reconhecer que a sublevação dos sovietes continha gérmens de todos os tipos, cujo amadurecimento não estava predeterminado. A derivação stalinista foi um resultado negativo de vários desenlaces possíveis.
O stalinismo primeiro obstruiu e posteriormente anulou o sentido democrático da revolução. Consagrou a usurpação do poder por parte de uma camada burocrática, que consolidou seus privilégios às custas da maioria popular. Substituiu o confronto com a contrarrevolução derrotada por uma demolição dos vestígios do bolchevismo.
A associação de Lenin com Stálin é desmentida pela simples constatação do expurgo perpetrado contra os artífices de outubro. Muito poucos protagonistas dessa ação sobreviveram à limpeza brutal de opositores. Essa matança enterrou grande parte do legado da revolução e antecipou a sangria adicional causada pela coletivização forçada.
Remontar à Lenin a responsabilidade por essas tragédias é um artifício. Supõe conceber todo o curso da história como um destino marcado por batismos diabólicos. Com esse critério, Robespierre deve ser responsabilizado pelos abusos cometidos durante a restauração, a Washington deveriam ser atribuídos os tormentos perpetrados pelos escravistas do sul e San Martin ou Bolívar deveriam ser culpados pelas terríveis tiranias sofridas pela América do Sul durante o século XIX.
O extremo dessa difamação é a equiparação do bolchevismo com o nazismo. Alguns afirmam que Hitler foi uma reação lamentável, mas legítima, contra o comunismo (Nolte, 2011: 178-205). Esta versão abandona a hipocrisia ocidental e retoma a justificação do fascismo, que as classes dominantes compartilharam durante sua fracassada cruzada contra a URSS.
A sobrevivência do país custou 27 milhões de mortes e elevou a 40 milhões o total de vítimas enfrentadas no curto período de uma geração. A magnitude desta catástrofe condicionou o futuro subsequente da URSS. O regime stalinista se estabilizou após a vitória heroica contra os invasores. Posteriormente, esse poder foi fortalecido com um crescimento industrial, que modificou completamente a estrutura social em todo o território.
A celebração de 1917 persistiu no período pós-guerra como uma homenagem ritual, esvaziada de conteúdo e baseada na apresentação fraudulenta de Stalin como continuador de Lenin. A exaltação das realizações da URSS ofuscou as críticas e distorceu a descrição do que aconteceu nos míticos meses de fevereiro e outubro.
Golpe de estado?
Há outra apresentação da revolução de outubro como um golpe de estado. Essa tese da trama pressupõe que Lenin recorreu a um uso inteligente dos sovietes, enganou seus adversários e aproveitou um momento propício para se apoderar do governo.
Essa simplificação retoma a antiga tradição de converter acontecimentos históricos em tramas de novela. Ignora os fatos, evita interpretações e reduz processos que envolvem milhões de indivíduos a pequenas disputas entre rebeldes. Esse olhar se inspira em teorias conspirativas que pressupõem a estabilidade, a normalidade ou o equilíbrio do capitalismo. Por isso imaginam que a principal ameaça contra o sistema provém de vilões perversos.
Mas, no caso de outubro, essa abordagem é desmentida pelo alto grau de participação popular. Os bolcheviques tinham grande respaldo social para a sua ação. Essa sustentação explica o pequeno número de vítimas da ação de outubro. Longe de coroar um golpe, os sovietes fulminaram um regime isolado e repudiado.
O mesmo aconteceu com todas as revoluções significativas que antecederam ou sucederam a 1917. Mas esse tipo de acontecimento é enigmático para os que buscam conspirações. Não podem entender o padrão de ação coletiva que predomina nos processos marcados pelo protagonismo popular.
Apresentar o que aconteceu em 1917 como um golpe de Estado é, por outro lado, óbvio. Qualquer transferência de poder executada fora da institucionalidade vigente viola a legalidade deste sistema. O que deve ser julgado é a validade ou ilegitimidade desse desenlace. Objetá-lo em si mesmo equivale a justificar o regime anterior.
A crítica a Lenin por sua violação da legalidade foi especialmente propagada por dinstintos analistas, que questionaram o desconhecimento das normas institucionais, recorrendo aos velhos dogmas do liberalismo. Mas esqueceram que os sovietes se levantaram contra uma monarquia e um governo que perpetuaram o massacre dos soldados. Quais instituições eram respeitadas pelos agentes da nobreza e desapropriação territorial?
As revoluções sempre explodem em situações extremas que pulverizam a legalidade atual. Os insurgentes de outubro se levantaram para preservar a vida de uma população esmagada pela carnificina bélica. Compreenderam que o capitalismo e suas fachadas institucionais geram esses sofrimentos. O grande mérito de 1917 foi promover um sistema alternativo às modalidades hipócritas da dominação burguesa.
Longe de constituir uma anomalia, a revolução russa fez parte das periódicas disrupções que o capitalismo enfrenta. Mas acrescentou o levante desde baixo, uma entrada massiva dos explorados à ação política direta. Esse significado é imperceptível para os detratores do bolchevismo.
Uma ilusão?
A revolução não foi apenas impugnada pelo uso da força. Também recebeu objeções por sua ilusão quimérica no socialismo (Furet, 1995: 12-33). Essa crítica rejeita qualquer tentativa de construir uma sociedade igualitária, considerando que os explorados devem se resignar à submissão. Postula essa exigência a partir de uma posição de privilégio, que considera a desigualdade tão natural quanto os benefícios dos ricos.
O argumento mais repetido para imaginar a eternidade dos lucros capitalistas é o fracasso econômico da URSS. Se aponta especialmente o resultado adverso da tentativa de competição com os Estados Unidos. Mas a comparação esquece que a Rússia era uma economia semiperiférica em desenvolvimento acelerado, submetida ao assédio sistemático da principal potência do planeta. Os dois países nunca foram localizados no mesmo plano.
A Guerra Fria generalizou uma imagem distorcida de concorrentes semelhantes e reforçou a pressão sobre a URSS para rivalizar em desvantagem. Essa concorrência obrigou o país a desviar uma grande porção de seu PIB para despesas militares, o que obstruiu o desenvolvimento de setores prioritários.
A URSS não conseguiu alcançar as economias centrais, mas excedeu em muito suas equivalentes nas taxas de crescimento e índices de desenvolvimento humano. Nem mesmo a estagnação prolongada dos anos 70-80 afetou esse posicionamento.
O colapso do regime deveu-se mais à decisão política de modificar um sistema do que aos desequilíbrios econômicos que o país arrastava. Os governantes rejeitavam um desenvolvimento genuinamente socialista e apostavam em sua própria conversão em burgueses. Invejavam o conforto dos milionários do Ocidente e idealizavam o estilo de vida norte-americano. Quando encontraram a oportunidade de se converterem em capitalistas, abandonaram a incômoda maquiagem comunista.
A maioria da população valorizava as melhorias sociais, mas permaneceu inativa. Tolerou essa virada após décadas de imobilidade e despolitização. Um regime de censuras e proibições generalizou a apatia popular, asfixiou a cultura e afastou a intelectualidade.
A oportunidade para uma renovação socialista foi perdida nos anos da Primavera Tchecoslovaca (1968). Posteriormente, imperou um desencanto que precipitou a vertiginosa e triste dissolução da URSS.
Forças produtivas
As polêmicas com os questionadores do socialismo ocupam um lugar de destaque no aniversário da revolução. Mas os debates também são significativos entre os defensores da ação leninista. Alguns pensadores realçam a ação bolchevique, mas consideram que apressou a marcha do socialismo. Estimam que esse projeto deveria ter se adaptado à maturidade das forças produtivas e sugerem que a URSS falhou por causa dessa restrição objetiva (Pomar, 2015).
Essa visão tem pontos em comum com a objeção que Kautsky antecipou à natureza prematura da ação soviética. Ele ressaltou que o atraso produtivo da Rússia privava o país da base material necessária para avançar em direção ao socialismo. Lenin e Trotsky rejeitaram calorosamente o mesmo questionamento de Plekhanov.
A crítica esquece o caráter intempestivo dos processos revolucionários que não respeitam horários ou datas de irrupção. Essas ações emergem pela belicosidade, consciência ou experiência dos oprimidos e não se adaptam a esquemas pré-estabelecidos de evolução humana. As vertentes objetivistas do marxismo não entendem essa autonomia dos sujeitos.
A mesma objeção à falta de fundamentos materiais para enfrentar a aposta socialista era feita pelos Partidos Comunistas, que postulavam estratégias por etapas na periferia. Promoviam modelos de capitalismo em aliança com as burguesias nacionais, alegando a inviabilidade imediata do socialismo.
Porém, durante o século XX, todas as tentativas de copiar o desenvolvimento dos países centrais falharam nas economias subdesenvolvidas. As revoluções socialistas irromperam justamente na periferia, pelo caráter mais acentuado das crises capitalistas nessas áreas.
É um contrassenso afirmar que o socialismo deve ser evitado nas regiões que mais precisam de sua instrumentação. O modelo evolutivo ignora que a periferia concentra desequilíbrios agravados que exigem respostas antissistêmicas urgentes.
É verdade que o socialismo é um projeto global cuja implementação plena é inviável em um só país ou região. Mas esta limitação não invalida o início desse processo onde seja necessário. Esse início não contradiz o reconhecimento da brecha significativa que separa o início da conclusão de um processo transformador. Mas se essas mutações não começam quando são necessárias, o ideal socialista definhará no sonho.
O papel do Estado
A análise do que aconteceu na URSS exige superar a crença ingênua de que o que ocorreu sob esse regime “não interessa” a nós que questionamos o despotismo burocrático. É mais conveniente revisar o que aconteceu assumindo a familiaridade com as dificuldades que esse processo enfrentou. São obstáculos que reaparecerão em qualquer tentativa de construção pós-capitalista.
É muito comum afirmar que a revolução bolchevique demonstrou capacidade para tomar o poder, mas não para construir uma sociedade alternativa. Essa limitação é atribuída à burocratização que sucedeu o triunfo (Zibechi, 2017). O tipo de burocracia prevalecente na URSS foi discutido por décadas. A passagem do tempo confirmou o acerto das abordagens que destacaram a peculiaridade não capitalista do funcionalismo público desse sistema.
A grande mudança dos últimos 25 anos, em comparação com a dinâmica vigente com Stálin, Krushev, Brejnev ou Gorbachev, está na nova presença de uma classe dominante. A restauração do capitalismo foi a principal consequência do colapso da URSS. Mas a crítica à burocracia – que no passado fornecia uma renovação socialista – é frequentemente usada hoje para questionar própria a conquista do poder. O caminho leninista é objetado, atribuindo as deformações da URSS ao curso estatista iniciado pelos bolcheviques. Supõe-se que, evitando esse caminho, poderia se abrir um curso mais libertário de emancipação, baseado no florescimento de empreendimentos autogestionários.
Mas a URSS oferece um modelo concreto de realizações e fracassos da tentativa pós-capitalista. Por outro lado, a tese de comunas puras não possui antecedentes nem pistas da trajetória que seu projeto seguiria. Essa abordagem limita-se a declarar vagas convocações para “mudar o mundo sem tomar o poder”, evitando explicar como se poderia se esquivar da gestão e transformação do estado para implementar uma mudança revolucionária.
A construção de contrapoderes alternativos nos poros da sociedade é um importante passo na batalha para erradicar o capitalismo. Mas a principal mola dessa mutação é a substituição do estado burguês por outra modalidade estatal, administrada pelas maiorias populares.
O êxito bolchevique pareceu esgotar uma controvérsia que tradicionalmente opôs o marxismo ao anarquismo. Mas a implosão da URSS reviveu o debate. Com todas as frustrações que acumula, a tese socialista continua a oferecer argumentos teóricos e indícios práticos mais sólidas do que a vaga opção libertária.
O exclusivismo proletário
Certas abordagens idealizam a vitória de 1917 como o único modelo de revolução socialista. Consideram que outros triunfos equivalentes, como a revolução cubana, não alcançaram esse status pela ausência de liderança proletária (Altamira, 2016).
Essa visão não ignora que em Cuba houve expropriação do capital, enormes conquistas socioeconômicas e exitosa resistência ao imperialismo. Mas entende que esses sucessos não definem a qualidade socialista que tiveram essas mesmas realizações sob os sovietes. Para evitar discussões talmúdicas, conviria esclarecer que se discute o início e não a consolidação do socialismo, ausente em ambas as situações.
Ao contrapor o marco bolchevique com a epopeia do [Movimento] 26 de julho, aceita-se a possibilidade de revoluções anticapitalistas sem conteúdo socialista. Dessa forma, se avaliza a tese da revolução por etapas, que os críticos de esquerda do oficialismo comunista sempre impugnaram.
A abordagem excludente [espelhada no] bolchevismo define restritivamente a revolução socialista pela classe que lidera essa ação, esquecendo outros determinantes (objetivos, prática, direção, alcance) e a preeminência das medidas anticapitalistas.
Desconhece que as revoluções burguesas protagonizadas por sujeitos populares já indicaram a prioridade dos objetivos e não dos artífices, na caracterização de uma mutação histórica. Com uma visão sociológica, atribui às classes sociais uma preponderância total na caracterização desses processos.
A experiência do século XX ilustrou, além disso, como a variedade de classes oprimidas configura cada dinâmica anticapitalista. Na Rússia, o proletariado desempenhou um papel de dirigente, mas em estreita associação com os camponeses convertidos em soldados. Outros tipos de protagonismos foram verificados no duplo poder guerrilheiro forjado pelas milícias da Iugoslávia, China ou Cuba.
Em todos esses casos se registraram expropriações que desencadearam processos socialistas. É um erro ignorar esses resultados devido à ausência do sujeito imaginário que deveria ter encabeçado essas ações. Com esse raciocínio, se habilitam revoluções apenas nos países que possuem uma certa configuração social. O tipo de proletariado concentrado que existia na Rússia no início do século XX só se verificava em pouquíssimas economias fora do núcleo industrial do Ocidente. Essa falta não marginalizava do projeto socialista os outros três quartos do planeta.
Primeiro a III Internacional e depois a OLAS desenvolveram um grande trabalho revolucionário na Ásia, África e América Latina, evitando o exclusivismo proletário. Discordavam inclusive com as organizações que se autodesignavam substitutas da reduzida classe trabalhadora da periferia.
A tese sociológico-proletária sugere a inviabilidade de todos os processos revolucionários carentes de um ator social predeterminado. Esse raciocínio apresenta os mesmos defeitos das visões objetivistas, que definem a factibilidade do socialismo pelo grau de maturidade das forças produtivas.
A tradição leninista mais frutífera, por outro lado, realça o papel dos sujeitos populares e é congruente com a tese que postula a factibilidade de projetos progressistas, em distintas temporalidades e cenários. Endeusar os sovietes, supondo que oferecem o único modelo de gestão socialista, não contribui para as homenagens em curso.
Lênin mais Gramsci
O centenário da revolução soviética tirou o pó dos velhos debates sobre a ditadura democrática do proletariado e a revolução por etapas, ininterrupta ou permanente. Essas controvérsias só podem recuperar o interesse à luz das disjuntivas políticas atuais. Nem todos os envolvidos na comemoração demonstram preocupação em estabelecer essas conexões.
Até os anos 80, a importância da vitória bolchevique saltava à vista. O caráter de uma futura revolução socialista era discutido, avaliando as modificações levantadas para a estratégia leninista pelas experiências da China, Vietnã ou Cuba.
Os termos desse debate se modificaram substancialmente após a consolidação do neoliberalismo que se seguiu ao colapso da União Soviética. Na América Latina, essa mudança foi reforçada com a queda do sandinismo e assumiu um novo perfil com as rebeliões populares exitosas do novo século. Esses levantes inauguraram o ciclo progressista e os processos radicais da Venezuela e da Bolívia.
Para agir nesse contexto, não basta recordar o que aconteceu na Rússia entre fevereiro e outubro de 1917. Também não é suficiente construir um partido revolucionário disposto a intervir em circunstâncias semelhantes. Equador, Argentina, Venezuela e Bolívia atravessaram vários momentos de crises econômicas extremas, colapso do regime político e levantes sociais, sem repetir o cenário dos sovietes.
Uma diferença substancial reside na permanência ou reconstituição de sistemas constitucionais que não tinham relevância na época de Lenin. Esse novo dado na América Latina já foi registrado no período pós-guerra pelos marxistas europeus. De ambas experiências surgiu uma nova proposição da estratégia leninista que incorpora as percepções de Gramsci. Esta assimilação é chave para construir uma hegemonia política socialista, confrontando o complexo funcionamento do poder burguês.
Um caminho anticapitalista deve contemplar a nova variedade de batalhas em cenários institucionais como parlamentos, eleições, partidos legais e meios de comunicação que não existiam em 1917.
Este contexto quebra a simultaneidade dos processos revolucionários do passado. A formação de um governo operário, a captura do estado e a transformação da sociedade não se delineiam como cursos paralelos (ou com reduzidas diferenças temporais). Pelo contrário, despontam como momentos muito diferenciados.
A leitura de Gramsci induz a se prestar atenção a batalhas ideológicas e confrontos eleitorais, em uma dinâmica tendente a gestar formas de poder alternativo. Esta nova abordagem foi distorcida nas décadas de 80 e 90 por interpretações social-democratas, que promoveram o amoldamento ao capitalismo, a veneração das instituições e o repúdio ao legado insurrecional soviético.
No auge eurocomunista dessa deformação, Lenin foi tão rejeitado quanto Fidel. Se imaginou um Gramsci adocicado, dedicado à investigação da cultura e aos refinamentos da ideologia, sem nenhum parentesco com a revolução ou com o socialismo.
Na derivação pós-moderna dessa distorção, os setores oprimidos são substituídos por identidades variadas, o objetivo socialista é substituído pela democracia radical e a conquista da hegemonia é concebida como um amálgama contingente de demandas entrelaçadas por discursos. A luta política flutua em uma nuvem divorciada dos conflitos sociais e as alusões à guerra de movimentos são tão enterradas quanto o bolchevismo.
Felizmente, juntamente com esses desvios, recuperam força as distintas proposições que reconectam Gramsci com Lenin. Nesta união se inscrevem as abordagens que destacam novas combinações da democracia direta e indireta, e das reformas com a revolução.
Um texto recente que se refere à revolução russa interpreta nessa linha os atuais processos latino-americanos (García Linera, 2017). Propõe conceber cursos de batalha que incluam momentos de hegemonia gramsciana e etapas jacobino-leninistas. O acerto teórico desta visão é tão significativo quanto sua controversa aplicação prática.
No caso da Venezuela, pode-se dizer, por exemplo, que o momento de hegemonia esteve em jogo nas últimas décadas de governo popular, de estado em disputa e de grandes fraturas da sociedade. Choques ideológicos e fortes confrontos eleitorais foram registrados, mas o poder comunal necessário para consolidar uma preparação socialista nunca apareceu. Antes, prevaleceu uma tendência oposta, de primazia da burocracia, de verticalismo e de funcionalismo privilegiado.
Por essas debilidades, o salto para o momento jacobino-leninista esteve obstruído e a oportunidade atual para avançar em direção a esta definição só poderia ser tentada em circunstâncias mais críticas.
Mas a síntese gramsciano-leninista não é uma fórmula de laboratório. É uma estratégia que é remodelada junto com a experiência popular. Enquanto a crise continuar pendente na Venezuela, permanecerá aberta a possibilidade de uma resolução positiva. Os processos revolucionários sempre recuperavam impulso na adversidade.
Talvez a coisa mais interessante sobre da atual nova proposição gramsciano-jacobina seja o seu resgate explícito do momento leninista. Ressaltar a vigência de uma coroação revolucionária da batalha pela hegemonia contribui para superar a timidez das últimas décadas. A revolução socialista é um horizonte indispensável para o projeto emancipatório.
Os mesmos dilemas
A comemoração da revolução russa suscita a mesma atenção que desperta o 150º aniversário da primeira edição da Capital. O mal estar social que impera com o neoliberalismo induz a retomar distintas facetas do marxismo clássico. Tornou-se tão necessário entender os desequilíbrios do capitalismo que avaliar as experiências de construção alternativa.
O mais chamativo das homenagens a 1917 é a variedade e riqueza dos seminários organizados em distintos pontos do planeta. Fornecem respostas para uma nova geração, que não têm incorporada a revolução bolchevique em suas referências ou imaginários. Essas reuniões satisfazem a curiosidade de conhecer como se conseguiu a primeira vitória sistêmica contra o capitalismo.
Comemorações também incluem fortes deformações. O governo russo está empenhado em retirar o conteúdo anticapitalista da celebração para apresentá-lo como um marco da nacionalidade eslava. Promove uma leitura chauvinista do acontecimento mais internacionalista da história.
Putin consolidou uma oligarquia de privilegiados, que também impediu o desmantelamento do país pelos Estados Unidos. Em congruência com esse equilíbrio, mantém hinos da era soviética e trabalha com os patriarcas da Igreja Ortodoxa. Levanta uma estátua do czar Alexandre I junto com monumentos ao Exército Vermelho.
A revolução será, por outro lado, explicitamente reivindicada nas celebrações preparadas na Bolívia e patrocinadas na Venezuela. Essas convocatórias ilustram afinidades com o ideal socialista. Em um cenário latino-americano marcado pela restauração conservadora, pelas pressões direitistas e por um renovado macartismo, os governos desses países decidiram ponderar o maior marco do projeto comunista.
Em nenhum lugar se registra a empolgação que marcou as primeiras comemorações da vitória soviética. Nem se verificam as apaixonadas defesas e impugnações que rodearam esse aniversário durante décadas.
No centenário da revolução, desapareceram os rituais oficiais da URSS, que o establishment ocidental observava com suspeita. Mas também se diluiu a euforia anticomunista dos anos 90. Já se discute mais o duros efeitos da restauração capitalista do que o mal estar imperante durante o modelo anterior.
O legado leninista começa a recuperar força diante dos pesadelos gerados pelo capitalismo neoliberal. A revolução irrompeu em um momento limite dos sofrimentos causados pela guerra. Sua marca reaparece nos processos de radicalização que emergem em um contexto global de tragédias bélicas, desastres sociais e devastações do meio ambiente. No século XXI, persistem as disjuntivas entre socialismo e barbárie que os bolcheviques enfrentaram.
- 03 de agosto de 2017
Claudio Katz é economista, pesquisador do CONICET, professor da UBA, membro da EDI. Seu site é: www.lahaine.org/katz
Referências
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