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Marxismo e organização (Paul Le Blanc)

Atualizado: 11 de dez. de 2019




Marxismo e organização

(julho, 2011)

Paul Le Blanc

Tradução de Luciano Dutra

Revisão de Pedro Barbosa



Esta apresentação foi feita na conferência educacional de Chicago da ISO ─ International Socialist Organization [Organização Socialista Internacional] dos EUA, Socialismo 2011, no fim de semana dos dias 2-3 de julho de 2011. O texto apareceu pela primeira vez em Europe Solidaire Sans Frontières [http://www.europe-solidaire.org/].


Sempre vale a pena examinar a questão do marxismo e da organização porque, se gostaríamos de ser marxistas organizados que lutam efetivamente pelo socialismo, temos a responsabilidade de saber sobre o que se trata ─ e esse conhecimento é aprofundado pela análise em questão. Existem razões acadêmicas para discutir esse assunto, mas para os ativistas o principal objetivo é melhorar nossa capacidade de ajudar a mudar o mundo. Há três ideias básicas a serem elaboradas aqui: 1) deve haver uma união do socialismo e da classe trabalhadora para que tenhamos um futuro positivo; 2) aqueles entre nós que pensam assim precisam trabalhar juntos de maneira intensa e eficaz ─ o que significa que precisamos fazer parte de uma organização séria; e 3) as organizações socialistas devem ser uma força democrática / disciplinada nas lutas reais dos trabalhadores ─ esse é o caminho para o socialismo. A seguir, elaborarei melhor esta questão.


Quando falamos de marxismo, não nos referimos apenas às ideias de Karl Marx ─ mas a uma tradição política muito rica que abrange uma impressionante variedade de pessoas e experiências. Por exemplo, faremos referência aqui a Lenin, Luxemburgo, Trotsky e outros que, acredito, estavam de muitas maneiras próximos das perspectivas de Marx. Isso está relacionado ao entendimento de que não devemos nos curvar a dogmas atemporais, mas sim ser guiados por um corpo vivo de pensamento e experiência. Inclui múltiplas facetas e evolui através da interação com as realidades globais em mudança, com variações que são influenciadas pelas especificidades de contextos nacionais e culturais distintos.


O tipo de mundo que queremos é um mundo socialista. A maneira como entendemos a palavra socialismo está fundamentada na maneira como Marx a discutiu. Isso não significa que o governo vá cuidar de nós ou administrar a economia. Ao contrário da noção de antissocialistas do tipo "Tea Party" (e outras variantes), socialismo não significa mais controle do governo sobre nossas vidas. Socialismo significa a propriedade da economia por toda a sociedade, o controle democrático da economia por todos nós e a utilização de nossos recursos econômicos para atender às necessidades de todas as pessoas ─ permitindo que todas as pessoas tenham uma vida plena e realizada, caracterizada pela liberdade, comunidade e pelo trabalho criativo. Se democracia significa "governo do povo" (como de fato significa), o socialismo é uma democracia econômica.


Se é isso que socialismo significa, então o que é uma organização socialista? Qual é o propósito de uma organização socialista? Por que existe um grupo como a Organização Socialista Internacional, por exemplo?


Evitando o engano


Uma maneira de encarar a questão é pensar que se trata de um clube, como uma organização para aqueles que têm um interesse ou hobby especial. Se você estiver interessado em história, poderá ingressar em um clube de história. Se você gosta de colecionar selos, pode se juntar a um clube de colecionadores de selos. Se você tem um QI incrivelmente alto, pode se juntar à Mensa para poder se reunir com pessoas realmente inteligentes como você. Pode-se ver uma organização socialista como uma espécie de grupo de afinidade para quem gosta do socialismo.


Se é assim que você vê, espero que não se ofenda quando digo que acredito que essa é uma razão estúpida para organizar um grupo socialista. Porque se você realmente gostaria de ver o socialismo surgir, não conseguiria fazer isso acontecer em um grupo como esse.


Uma chave para obter a resposta para a questão é perceber que Karl Marx e seu parceiro Friedrich Engels ─ politicamente ativos na Alemanha, França, Bélgica, Grã-Bretanha e outros países ─ desenvolveram seu pensamento, que chamavam de "socialismo científico", através de uma interação séria e contínua com ativistas da classe trabalhadora.


Esse socialismo científico ─ que após a morte de Marx passou a ser chamado de "marxismo" ─ é um corpo de pensamento complexo e multifacetado, com múltiplas fontes. Foi fundamentado nas ideias do Iluminismo e também do romantismo heróico, inspirado na filosofia alemã, no pensamento revolucionário francês e na economia política inglesa, também poderosamente influenciado pela Revolução Industrial capitalista e pela ascensão e lutas da classe trabalhadora.


A questão envolve cinco componentes básicos. Um deles é uma orientação filosófica dinâmica, ou metodologia, que é dialética, materialista e humanista. Outro deles envolve uma teoria da história ─ que vê o desenvolvimento econômico e a luta de classes como moldando a forma como a história se desenrola. Um terceiro componente envolve uma análise do capitalismo ─ como está estruturado, como funciona, como explora um número crescente de pessoas (a classe trabalhadora), como abre novas possibilidades ao mesmo tempo em que é incrivelmente irracional e destrutivo quando se trata de necessidades humanas. Um quarto componente do marxismo é baseado na noção de que a maioria da classe trabalhadora tem o poder de substituir o capitalismo pelo socialismo, então aqui o marxismo fornece um programa político básico para a classe trabalhadora. E o quinto componente ─ sobre o qual já nos referimos ─ envolve a visão de um futuro socialista.


O essencial para o marxismo é a noção-chave de que deve haver uma fusão do socialismo com a classe trabalhadora para que possam ter um futuro positivo.


A classe trabalhadora, da maneira como Marx e Engels a definiram, é composta por aqueles que ganham a vida vendendo sua capacidade de trabalhar (que consiste em energia para trabalho manual, trabalho intelectual ou ambos). São aqueles cujo trabalho cria os bens e serviços dos quais todos dependemos. Também inclui membros da família e outros dependentes dos salários daqueles que vendem sua capacidade de trabalhar ─ e também trabalhadores desempregados e aposentados. É a maioria criadora, cujo trabalho cria e sustenta a economia da qual a sociedade depende, aqueles sem os quais o capitalismo não funcionaria. Os marxistas vêem isso como uma força que potencialmente tem interesse e poder para desafiar o capitalismo. Se se juntam, os trabalhadores têm o poder de fazer nascer um mundo novo e melhor.


Este conjunto fornece a base para definir o propósito de uma organização socialista ─ mas ainda há espaço para se enganar. Se simplesmente nos vemos como um grupo de afinidade maior e melhor, cujo objetivo é compartilhar nossa sabedoria com os trabalhadores e recrutá-los para nossas fileiras, poderemos ter uma grande decepção.


Alguns de nós podem ter tido o tipo de experiência de fazer parte de um grupo socialista que apela “de fora” para uma abstração romantizada, a heróica classe trabalhadora, instando as pessoas a ouvirem nossas ideias socialistas, comprarem nossa literatura socialista, virem a nossos encontros socialistas e juntarem-se a nós tendo pensamentos revolucionários. Essa pode ser uma maneira de atrair algumas pessoas reflexivas. É justamente por causa de tais atividades que alguns de nós se tornaram socialistas e se tornaram membros de uma organização socialista. Mas alguns de nós também tiveram experiência suficiente para saber que isso não funciona como um meio de mobilizar a maioria da classe trabalhadora no esforço de substituir o capitalismo pelo socialismo.


Tem sido uma tentação para alguns anticapitalistas concluir que não é possível mobilizar uma maioria da classe trabalhadora e que ─ poucos como somos ─ devemos simplesmente resolver a questão com nossas próprias mãos, substituindo as “massas proletárias revolucionárias” que teimosamente se recusam a se materializar. Talvez se tivermos ações drásticas, podemos sacudir e radicalizar a maioria da classe operária ─ ou ao menos podemos nos tornar militantes vingadores dos oprimidos.


Fazendo o certo


Mas o próprio Marx não via as coisas dessa maneira. Ele estava convencido de que apenas a própria classe trabalhadora poderia se libertar da exploração e opressão capitalistas. Somente a classe trabalhadora, como uma classe, tem o poder de fazer isso. Além disso, acontece que a liberdade genuína ─ definida como autodeterminação (assumir o controle de sua própria vida) ─ só pode ser conquistada por cada um de nós, e que a democracia genuína ─ definida como governo do povo ─ somente pode acontecer quando as pessoas tomam o poder em suas próprias mãos. Marx acreditava que apenas as lutas da classe trabalhadora poderiam mover a realidade na direção de tal liberdade e democracia, fornecendo a base para o socialismo.


É por isso que uma parte essencial do marxismo, apresentada no Manifesto Comunista e em outros lugares, envolve um programa político para a classe trabalhadora ─ isto é, um esboço [outline] do que fazer para reprimir a opressão capitalista e alcançar um futuro socialista. Marx baseou esse programa, em um grau significativo, nos tipos de lutas que ele observava que os ativistas da classe trabalhadora conseguiam se envolver.


Se você ler atentamente o Manifesto Comunista, e também o "Discurso Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores" de Marx em 1864, você encontrará declarações clássicas deste programa para a classe trabalhadora. O programa consiste em partes diferentes. Um envolve a organização de trabalhadores em seus locais de trabalho ─ conhecidos como sindicatos ─ para lutar e obrigar os empregadores capitalistas a pagar salários mais altos, providenciar melhores condições de trabalho (mais saudáveis ​​e seguras), para negociar uma jornada de trabalho mais curta (10 horas em vez de 12, oito em vez de 10 e assim por diante) e para permitir mais dignidade no trabalho. Além de organizar sindicatos, o Manifesto incentiva os trabalhadores a pressionar por reformas (o que significa melhorar a vida no aqui e agora, antes que ocorra uma revolução), que poderiam ser encampadas pelos movimentos sociais por um dia de trabalho mais curto, para oferecer a todas as pessoas o direito de votar, pelos direitos das mulheres, pelo fim do trabalho infantil, pelas escolas públicas, pelo fim do racismo, em oposição às políticas de guerra e assim por diante.


Além de organizar esses sindicatos e movimentos sociais, Marx defendia a criação de um partido operário independente, da classe trabalhadora, para lutar por reformas e, por fim, ganhar o poder político para a maioria da classe trabalhadora. Marx e Engels chamavam isso de “vencer a batalha da democracia”, estabelecendo a dominação política pela classe trabalhadora para expandi-la economicamente, com uma transição revolucionária para o socialismo. Esse é o programa.


É importante que os revolucionários saibam qual é o momento. Nem todos os aspectos do programa estratégico podem ser implementados independentemente das condições específicas. Será necessário um acúmulo de experiências e a disseminação e o aprofundamento da consciência da classe trabalhadora para que a mesma construa seu próprio partido político e lute pela tomar o poder.


A social-democracia e ascensão do comunismo


No final do século 19, com o desenvolvimento do capitalismo industrial em toda a Europa, a militância e a solidariedade aumentaram dentro da crescente classe trabalhadora, resultando em movimentos operários de massa e grandes partidos socialistas influenciados pelas ideias de Marx. O exemplo mais destacado foi o Partido Social-Democrata Alemão, que atraiu milhões à causa socialista. Seus ativistas fizeram um trabalho admirável ─ com o qual temos muito a aprender hoje ─ na construção de um movimento socialista massivo que envolveu não apenas um partido eleitoral eficaz, mas também um poderoso movimento sindical, organizações e lutas pelos direitos das mulheres, organizações para jovens socialistas, uma rica e muito lida imprensa partidária, além de grupos e atividades culturais multifacetadas (abrangendo arte, literatura, teatro, música, esportes, caminhadas, camping e muito mais). O partido passou a ser visto como um modelo para os socialistas influenciados por Marx, inspirando outros partidos operários e social-democratas que surgiram em muitos lugares durante o final do século XIX e início do século XX.


Em parte porque cresceu aos saltos e passos largos, muitos passaram a acreditar que a vitória final do socialismo era inevitável. Dentro da liderança do sindicato e do aparato organizacional, havia até elementos que argumentavam ─ dada essa vitória presumivelmente "inevitável" ─ que a perspectiva revolucionária de Marx deveria ser abandonada, que o movimento socialista poderia apenas continuar acumulando reformas para eliminar gradualmente e sem sofrimento as características negativas do capitalismo. Dentre os líderes destacados do Partido Social-Democrata Alemão estava o organizador da classe trabalhadora August Bebel e o teórico marxista Karl Kautsky, que fizeram contribuições vitais na construção de seu partido e do movimento socialista internacional.


Ambos insistiram que as perspectivas revolucionárias de Marx não estavam desatualizadas. Infelizmente, nos anos que antecederam sua morte em 1913, Bebel sentiu cada vez mais a necessidade de se acomodar aos elementos reformistas e burocráticos do movimento dos trabalhadores alemães, e em 1910 Kautsky estava fazendo o mesmo. Isso deixaria os socialistas alemães mal preparados para o período de guerra, revolta política, oportunidade revolucionária, crise econômica e ataques fascistas que se materializariam nas décadas seguintes.


Rosa Luxemburgo se tornou uma das líderes mais eficazes na ala revolucionária da social-democracia alemã e no movimento socialista internacional. Ela foi uma das pensadoras e analistas mais brilhantes do movimento ─ abordando o marxismo de maneira criativa e crítica para entender as novas realidades e os desafios futuros.


Luxemburgo desafiou fortemente o afastamento reformista da estratégia revolucionária ─ insistindo que Marx estava certo ao ver a interação entre reforma e revolução como a melhor maneira de desenvolver a consciência e a experiência política de mais e mais trabalhadores, e que também estava certo ao ver a violenta destrutividade do capitalismo como algo que só poderia ser superado pela mobilização revolucionária da classe trabalhadora.


Luxemburgo estava atenta a novos problemas organizacionais no movimento socialista. Ela estava preocupada com o surgimento de um conservadorismo burocrático do aparato organizacional da social-democracia alemã. Sua discussão crítica sobre a realidade da burocracia no movimento operário tornou-se um novo componente importante do pensamento marxista. Luxemburgo sentiu que esse conservadorismo burocrático só poderia ser superado por uma maior democracia da classe trabalhadora no movimento e pelas ações de massa semi-espontâneas dos trabalhadores que seriam periodicamente geradas pelo funcionamento do capitalismo. Ela insistia que o capitalismo não terminaria a menos que a própria classe trabalhadora ─ organizada e mobilizada por organizações revolucionárias eficazes ─ consciente e ativamente realizasse a transição para o socialismo.


Um dos teóricos marxistas mais sérios a lidar com a questão da organização foi Vladimir Ilyich Lenin, líder da ala revolucionária do Partido Operário Social-Democrata Russo, conhecida como Bolcheviques (“Bolchevique” significa majoritário). Em 1912, eles se separaram para formar seu próprio partido revolucionário, que logo passou a representar a maioria da classe trabalhadora russa. O exemplo e as ideias de Lenin e de seus camaradas influenciaram poderosamente muitos outros durante o século passado ─ incluindo a Organização Socialista Internacional (ISO) dos EUA.


A concepção de organização de Lenin definiu os membros do partido revolucionário como (1) ter acordo básico com o programa marxista revolucionário, (2) pagar contribuições financeiras para ajudar a sustentar as atividades da organização e (3) trabalhar em conjunto com outros camaradas como parte da organização ─ realizando as atividades decididas em conjunto pelo partido. Isso incluia o compartilhamento de ideias socialistas com cada vez mais trabalhadores, além de estar envolvido em lutas sociais, lutas políticas, atividades sindicais e assim por diante. Ele insistiu que o partido deve ser democrático e coeso, combinando efetivamente a iniciativa local e a coordenação nacional.


Desde seus primeiros dias no movimento socialista, Lenin insistiu em levar a sério a teoria marxista, mas também o ativismo e a organização ─ exigindo liberdade de discussão e unidade na ação. Lenin compartilhou com outras pessoas o compromisso com o que se chamava de centralismo democrático, embora ele fosse mais consistente do que muitos outros. Ele era a favor de discussões livres e de espírito crítico antes que as decisões fossem tomadas ─ mas, uma vez que as decisões fossem tomadas, elas deveriam ser implementadas pela organização como um todo. As decisões devem ser tomadas democraticamente, mas um dos significados da democracia é o de que essas decisões não devem ser bloqueadas por aqueles que discordaram delas. Ele acreditava que a liderança da organização deveria ser escolhida por e responder aos conjunto dos membros, mas então sua autoridade deveria ser respeitada pelos membros. Ele apoiava um grau significativo de autonomia local, mas também um grau significativo de coordenação nacional. As decisões da organização deveriam ─ em momentos apropriados ─ ser avaliadas criticamente, mas toda a organização deveria estar envolvida em tal processo. Isso poderia ajudar a fornecer uma base sólida para futuras decisões e atividades.


O processo organizacional promovido por Lenin realça a qualidade dinâmica de sua concepção do partido revolucionário. O mais alto órgão de tomada de decisão da organização é a convenção nacional (ou congresso do partido), realizada em intervalos regulares e de curto prazo, composta por delegados democraticamente escolhidos de todos os ramos locais da organização. Deveria haver discussão e debate amplos nos ramos e em toda a organização, antes da convenção, sobre os assuntos a serem decididos na convenção. A convenção deve eleger uma liderança nacional ─ um comitê nacional e um comitê político mais compacto ─ para supervisionar as atividades da organização (e ajudar a garantir a execução de decisões) entre as convenções nacionais.


O objetivo de tudo isso, é claro, era ter uma organização coesa capaz de alcançar mais e mais efetivamente um número crescente da maioria de trabalhadores e de oprimidos da Rússia. Os esforços bolcheviques culminaram em uma aliança revolucionária de trabalhadores e camponeses da Rússia. Como uma organização marxista, o partido bolchevique deu especial atenção à educação e mobilização da classe trabalhadora contra a monarquia absolutista representada pelo czarismo e também contra o capitalismo. Porque as camadas mais oprimidas da classe trabalhadora ─ as mulheres trabalhadoras ─ estavam entre aqueles que o partido bolchevique alcançou, elas desempenharam um papel fundamental na revolução de 1917.


As crises de guerra, a tirania czarista e a irracionalidade capitalista provocaram um levante revolucionário de massa. Isso foi organizado na base por ativistas da classe trabalhadora educados e treinados no movimento socialista russo durante um período de anos. Lenin e seus camaradas (particularmente Leon Trotsky) reuniram a maioria dos trabalhadores e camponeses para levar a cabo a revolução triunfante de 1917. Eles esperavam criar uma democracia operária (em aliança com os camponeses) que avançasse para o socialismo ─ embora eles insistissem que o socialismo genuíno só poderia ser criado em escala global. Isso teve um impacto poderoso ao redor do mundo. Lenin, Trotsky e outros ─ adotando o nome de "comunistas" para se diferenciar dos elementos não revolucionários do movimento socialista ─ ajudaram a criar uma rede mundial baseada no programa revolucionário e nos princípios organizacionais que os animaram, a Internacional Comunista.


Lenin e os espíritos afins


Ao contrário de concepções errôneas comuns, a visão organizacional de Lenin não era exclusiva dele. De fato, até Karl Kautsky ─ que acabou comprometendo gravemente suas próprias convicções marxistas ─ havia, nos anos anteriores, se expressado eloquentemente sobre as perspectivas políticas e organizacionais revolucionárias. Pessoas como Rosa Luxemburgo, Leon Trotsky, Antônio Gramsci (um fundador e líder brilhante do Partido Comunista Italiano na década de 1920) e outros ─ influenciados pela orientação revolucionária de Marx ─ compartilhavam a orientação organizacional que estamos discutindo aqui.


Algumas breves citações de Luxemburgo, Trotsky e Gramsci podem ser oferecidas como um resumo do que é frequentemente retratado como uma perspectiva organizacional distintamente "leninista". É claro que Trotsky e Gramsci acabaram sendo adeptos explícitos do “leninismo”, mas Luxemburgo nunca foi acusada disso. No entanto, em seu panfleto sobre a Greve de massas, ela caracterizou o partido socialista como “a mais esclarecida e com mais consciência de classe vanguarda do proletariado”, interagindo com “cada movimento espontâneo de pessoas” para “acelerar o desenvolvimento das coisas e tentar acelerar os eventos”. E ela reivindicou um “centralismo social-democrata” para tornar efetivos tais esforços ─ denominando-o “o 'autocentralismo' dos setores avançados do proletariado”. Foi nesse espírito que Lenin afirmou que "a classe trabalhadora é instintivamente, espontaneamente, socialista, e mais de dez anos de trabalho do movimento socialista fizeram muito para transformar essa espontaneidade em consciência".


Engajando-se com as mesmas conceituações, Trotsky escreveu: “Na vanguarda revolucionária, organizada em um partido, cristaliza-se a aspiração das massas em obter sua liberdade”, acrescentando que “a educação revolucionária exige um regime de democracia interna. A disciplina revolucionária não tem nada a ver com obediência cega”, pois “a vontade de lutar tem, em cada ocasião, que ser independentemente renovada e temperada”.


Da mesma forma, Gramsci insistiu que um partido revolucionário é necessário “para construir um bloco intelectual-moral que possa tornar politicamente possível o progresso intelectual da massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais”. Advertindo que a organização revolucionária não deve “negligenciar, ou pior ainda, desprezar os chamados momentos ‘espontâneos’” de ação de massa entre os trabalhadores e oprimidos; Gramsci também ─ como Luxemburgo, Lenin e Trotsky ─ enfatizou uma interação “entre ‘espontaneidade’ e ‘direção consciente’” e um “centralismo democrático, que é, por assim dizer, um ‘centralismo’ em movimento ─ uma adaptação contínua da organização ao movimento real” [1].


A perspectiva desses revolucionários se soma a isso: uma organização socialista revolucionária precisa ser uma força organizada que seja democrática e coesa, de espírito crítico e disciplinada, que seja ativa nas lutas reais da classe operária de todos os tipos ─ ajudando a torná-las eficazes ─ ao mesmo tempo em que ajuda a espalhar ideias socialistas. As organizações socialistas podem ajudar a espalhar essas ideias e também habilidades de organização vitais, mas devem ser capazes de aprender com ativistas da classe trabalhadora que não estão (ou ao menos não ainda) na organização socialista, ao mesmo tempo alcançando esses ativistas ─ que constituem uma camada de vanguarda da classe trabalhadora ─ e atraindo cada vez mais deles para o movimento socialista organizado. Esse movimento, se for efetivo no compartilhamento de mais e mais consciência socialista e habilidades de organização política, pode assumir proporções de massa, tornando-se uma poderosa subcultura na sociedade, um bloco intelectual-moral, que tem o potencial de gerar uma mudança de poder fundamental, uma mudança de poder que pode resultar em uma transição para o socialismo.


Essas concepções organizacionais encontraram expressão nas perspectivas da Internacional Comunista fundada em 1919. Elas animaram o início do movimento comunista antes que sua corrente principal fosse irremediavelmente poluída pelo autoritarismo representado por Josef Stálin. Essa corrupção autoritária que se desenvolveu no movimento comunista está relacionada ao fato de que um desenvolvimento-chave esperado por Lenin, Trotsky e outros bolcheviques foi bloqueado ─ e esse problema acabaria por desviar o socialismo democrático-revolucionário de sua trilha. A Rússia era um país enorme, mas economicamente atrasado e empobrecido. Juntamente com Marx, os bolcheviques acreditavam que o socialismo só poderia ser alcançado em economias mais avançadas, com recursos suficientes para proporcionar uma vida decente para todos. Eles também acreditavam ─ com Marx ─ que o capitalismo global só poderia ser substituído em escala mundial e que os países socialistas economicamente mais desenvolvidos poderiam trabalhar em cooperação com regiões economicamente menos avançadas (como a Rússia) para desenvolver uma economia socialista global benéfica para todos. Eles acreditavam que a Revolução Russa ─ mais ou menos na década seguinte ─ ajudaria a inspirar revoluções socialistas em mais e mais países, especialmente dada a natureza incrivelmente destrutiva do capitalismo.


Stalinismo versus marxismo revolucionário


É verdade que o capitalismo foi incrivelmente destrutivo ─ gerou uma devastadora Guerra Mundial imperialista, gerou movimentos fascistas e nazistas assassinos, geraria em breve a Grande Depressão e, depois disso, provocaria uma Segunda Guerra Mundial ainda mais horrível. Mas os movimentos da classe trabalhadora em outros países não haviam desenvolvido organizações politicamente fortes o suficiente para provocar revoluções socialistas. Houve revoltas revolucionárias, mas foram todas derrotadas.


A Alemanha chegou muito perto de ter a classe trabalhadora no poder, mas na época o Partido Social-Democrata alemão era dominado por reformistas que bloquearam a derrubada do capitalismo e ─ por terem posições de poder garantidas no governo ─ colaboraram com a classe dominante da Alemanha a fim de desviar o movimento revolucionário para vias não-revolucionárias. Após a quase-revolução, as crescentes forças de direita na Alemanha realizaram uma campanha cruel para assassinar trabalhadores revolucionários e seus líderes ─ como Rosa Luxemburgo. Tais derrotas fizeram com que a Rússia revolucionária ficasse isolada em um mundo capitalista hostil e isso logo levou ao enfraquecimento, declínio e corrupção autoritária do comunismo. Alguns dos principais comunistas da Rússia estavam decidindo construir seu próprio poder, seu próprio controle do aparato organizacional do estado e do partido. Esse aparato ─ cada vez mais separado do povo trabalhador ─ é o que chamamos de burocracia. Os que dominavam essa burocracia queriam construir seu próprio poder, a fim de modernizar a Rússia e também tomar cada vez mais privilégios materiais para si (modernização mais egoísmo). Nem todos os comunistas estavam inclinados a seguir nessa direção ─ Lenin, por exemplo, não favoreceu esse desenvolvimento, mas após sua morte, em 1924, Josef Stálin ajudou a iniciar uma luta pelo poder que resultou nessa mudança decisiva.


Stálin e seus apoiadores utilizaram a retórica revolucionária, mas deixaram para trás os antigos compromissos revolucionários. Eles transformaram o Partido Comunista em um tipo muito diferente de organização ─ que não era democrática nem revolucionária ─ para alcançar seus objetivos (modernização e egoísmo burocrático), em grande parte às custas das massas de trabalhadores e camponeses. Muitas pessoas em todo o mundo passaram a enxergar a visão organizacional de Lenin como extremamente antidemocrática e o marxismo como extremamente rígido e dogmático, porque estas se tornaram as características do comunismo tal como se desenvolveu sob Stálin. Mas esse chamado marxismo-leninismo de Stálin não era revolucionário, nem marxista e nem leninista, embora afirmasse ser. Foi concebido para promover os propósitos da ditadura burocrática.


O que o stalinismo certamente não fez foi defender os princípios da democracia operária que deram vida à Revolução Russa em 1917, nem ajudou a promover os princípios revolucionários que deram vida ao início do movimento comunista. Havia comunistas russos que defendiam os princípios democráticos e revolucionários originais ─ e muitas vezes lutaram heroicamente, mas foram derrotados e a maioria deles acabou dando a vida pelo que acreditavam.


Essas perspectivas políticas e organizacionais não corrompidas têm guiado aqueles que procuram permanecer fiéis ao método e objetivo marxistas revolucionários. Esse foi especialmente o caso entre muitos dos que se reuniram em torno da bandeira de Trotsky, pois ele se opôs à distorção stalinista do movimento comunista. O fato de que a principal corrente do movimento comunista em todo o mundo ficou sob o domínio do stalinismo enfraqueceu bastante a ala esquerda do movimento operário. Mas, repetidamente, a natureza do capitalismo fez com que as velhas perspectivas revolucionárias ─ incluindo a orientação bolchevique de Lenin ─ permanecessem relevantes. É por isso que o marxismo revolucionário incendiou e teve um impacto nas importantes lutas de classe da década de 1930. Ainda que o capitalismo tenha se transformado de maneira significativa, também permaneceu o mesmo de maneira significativa, gerando luta pelas décadas seguintes. A perspectiva marxista revolucionária continuou a ressoar nas insurgências da década de 1960. As lutas pelos direitos humanos ao longo do século XX foram influenciadas por essas perspectivas. A Organização Socialista Internacional (ISO) dos EUA representa uma continuidade com tais perspectivas.


Construindo uma organização revolucionária


Os problemas que o capitalismo cria para os diversos setores da classe trabalhadora e para a classe trabalhadora como um todo continuam a gerar descontentamento e luta em nosso próprio tempo ─ embora exista uma necessidade urgente de que as lutas se tornem mais efetivas. Essa eficácia não é alcançada automática ou inevitavelmente. Embora uma maioria da classe trabalhadora ─ que é a grande maioria do povo dos Estados Unidos ─ se oponha às guerras e ocupações imperialistas atuais, vemos uma continuação da violenta política externa que promove os interesses dos ricos, às nossas custas e às custas de pessoas de outros países. Na medida em que existem mobilizações significativas contra essas políticas, elas são poderosamente influenciadas pelas organizações socialistas.


A única maneira pela qual essas lutas podem ser organizadas e promovidas é se as pessoas trabalharem duro para organizá-las e promovê-las. A um grau significativo, aqueles que organizam tais lutas ─ incluindo algumas das mais agudas lutas de hoje por justiça econômica ─ foram influenciados por perspectivas revolucionárias e socialistas e aprenderam habilidades de organização com ativistas socialistas experientes. Mas até então, isso não tem sido suficiente. Cada vez mais pessoas da classe trabalhadora precisam ser atraídas para sindicatos sérios e democráticos e movimentos sociais que não têm medo de lutar muito pelo que acreditam.


Se Marx estava certo (e acreditamos que ele estava), também é necessário criar uma consciência socialista de massa. O socialismo e as lutas da classe trabalhadora não podem permanecer separados um do outro para que sejam vitoriosos. Como essas coisas não acontecem automática ou inevitavelmente, é importante que mais e mais de nós ─ que de maneira geral faz parte da nossa vasta e multifacetada classe trabalhadora ─ trabalhem arduamente para ajudar a promover essas coisas. É mais fácil trabalhar efetivamente se mais e mais de nós trabalharmos juntos de maneira democrática e coerente. Isso significa fazer parte de uma organização socialista guiada pelas tradições marxistas revolucionárias abordadas nesta apresentação.


Consistentes com essas tradições organizacionais, existem dois tipos de crescimento ─ que podem ser chamados de externo e interno. As organizações marxistas devem crescer externamente ao compartilhar ideias e análises socialistas essenciais para a consciência socialista; participar das lutas da classe trabalhadora ─ por meio de sindicatos, grupos comunitários e movimentos sociais; e atrair cada vez mais pessoas ao ativismo e à consciência socialista. Elas devem, ao mesmo tempo, crescer internamente, construindo a sua organização ao recrutar novos membros e aprendendo com outras pessoas dentro e fora da organização e absorvendo cada vez mais experiência ─ tudo isso aprimora sua capacidade de crescer externamente; seus membros devem desenvolver sua compreensão da história da classe trabalhadora, da teoria socialista e das realidades atuais; e os membros devem desenvolver sua própria experiência política e habilidades organizacionais ─ experiência e habilidades tanto para os esforços de trabalho externo quanto para a atividade "interna". A organização socialista não deve estar fora da classe trabalhadora, mas ao invés disso deve estar organicamente ligada a ela, em grande medida ajudando a construir lutas por reforma, movimentos sociais e sindicatos. São elementos interativos entre si, com a organização socialista e com a classe trabalhadora como um todo. Essa interação ajuda a transformar cada um e todos os elementos interativos.


A organização socialista traz uma valiosa mistura de teoria socialista, análise política, experiência ativista e habilidades organizacionais para as maiores lutas e movimentos da classe trabalhadora. Mas tudo isso é desenvolvido e adicionado pelo engajamento da organização socialista com os vários componentes da luta de classes. A própria organização é renovada, expandida e revitalizada. Os sindicatos e movimentos sociais são fortalecidos e suas perspectivas aprofundadas pelo que os socialistas têm a acrescentar. Dentro da classe trabalhadora como um todo, pelo menos neste quadro, está em curso um processo de radicalização que permite à classe trabalhadora desempenhar um poderoso papel na atual situação econômica, social e política e alterar o curso da história.


Se fizermos nosso trabalho corretamente, então uma consciência de classe mais profunda poderá gerar um partido operário de massa, animado por uma consciência socialista, que será capaz de levar a maioria da classe trabalhadora ao poder, abrindo caminho para uma reconstrução socialista da sociedade.


Essa é a abordagem com a qual os marxistas esperam construir uma massiva força da classe trabalhadora capaz de trazer o socialismo ao mundo. Essa é uma tarefa bastante difícil, no entanto, e como se trata de coisas tão incrivelmente importantes, não podemos nos dar ao luxo de terminar a discussão aqui. Será crucial para nós aprender com nossas experiências ao tentar aplicar as perspectivas organizacionais marxistas à realidade ao nosso redor.


Fontes

Paul Le Blanc. From Marx to Gramsci (Amherst, NY: Humanity Books, 1996).

___________. Lenin and the Revolutionary Party (Amherst, NY: Humanity Books, 1994).

Vladimir Ilyich Lenin. Revolution, Democracy, Socialism: Selected Writings, ed. by Paul Le Blanc (Pluto Press, 2008).

Lars Lih. Lenin (London: Reaktion Books, 2011).

___________. Lenin Rediscovered (Chicago: Haymarket Books, 2006).

Rosa Luxemburg. Socialism or Barbarism: Selected Writings, ed. by Paul Le Blanc and Helen C. Scott (London: Pluto Press, 2011).


Notas

1. Citações tiradas de Paul Le Blanc, From Marx to Gramsci (Amherst, NY: Humanity Books, 1996), 58-60.

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