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Da grande lógica de Hegel à estação finlandesa de Petrogrado (Michael Löwy)


Da grande lógica de Hegel à estação finlandesa de Petrogrado

Michael Löwy

Transcrição de Laíla Iglesias e Marcelly Machado


Fonte: Método dialético e teoria e política (Michael Löwy), Ed. Paz e Terra, cap. 9.


“Um homem que diz semelhantes besteiras não é perigoso” (Stankevitch, socialista, abril, 1917).


“É um delírio, é o delírio de um louco!” (Bogdanov, menchevique, abril, 1917).


“Esses são sonhos insensatos…” (Plekhanov, menchevique, abril, 1917).


“Durante muitos anos, o lugar de Bakunin na revolução russa permaneceu desocupado; agora ele foi tomado por Lenin” (Goldenberg, ex-bolchevique, abril, 1917).


“Nesse dia (4 de abril) o camarada Lenin não encontrou partidários declarados, mesmo em nossas fileiras” (Zalejsky, bolchevique, abril, 1917).


“No que concerne ao esquema geral do camarada Lenin, ele nos parece inaceitável, na medida em que apresenta como acabada a revolução democratico-burguesa, e conta com uma transformação imediata desta revolução em revolução socialista" (Kamenev, editorial do Pravda, órgão do partido bolchevique, 8 de Abril de 1917).


Eis a recepção unânime que foi dada, pelos representantes oficiais do marxismo russo, às teses heréticas que Lenin tinha exposto, primeiramente à multidão localizada na praça da estação finlandesa de Petrogrado, do alto de um carro blindado e, no dia seguinte, diante dos delegados bolcheviques e mencheviques do Soviete: as “teses de abril”. Em suas célebres memórias, Soukhanov (menchevique que se tornou funcionário soviético) confessa que a fórmula política central de Lenin ー todo poder aos sovietes ー “repercutiu como um raio num céu azul” e “paralisou e confundiu os mais instruídos de seus fiéis discípulos”. Segundo Soukhanov, um dirigente bolchevique teria mesmo declarado que “esse discurso (de Lenin) não tinha agravado as divergências no seio da social-democracia, mas, pelo contrário as tinha suprimido, porque só podia haver um acordo entre os bolcheviques e mencheviques face à posição de Lenin”! [1]. O editorial de 8 de abril do Pravda confirmou por um momento essa impressão de unanimidade antileninista; segundo Soukhanov “parecia que os fundamentos marxistas do partido bolchevique permaneciam sólidos e inabaláveis, que a massa partido se levantava contra Lenin para defender os princípios elementares do socialismo científico de outrora; infelizmente, nós nos enganávamos!” [2].


Como explicar a extraordinária tempestade que as palavras de Lenin levantaram e esse coro de reprovação geral que se abateu sobre elas? A descrição ingênua mas reveladora de Soukhanov sugere a resposta: Lenin rompeu precisamente com o “socialismo científico de outrora”, com uma certa forma de compreender “os princípios elementares” do marxismo, forma que era, em certa medida, comum a todas as correntes da social-democracia marxista na Rússia. A perplexidade, a confusão, a indignação ou o desprezo com os quais foram recebidas as teses de abril ao mesmo tempo por dirigentes mencheviques e bolcheviques não são senão o sintoma do corte radical com a tradição do “marxismo ortodoxo” da IIª Internacional (nos referimos à corrente hegemônica e não à esquerda radical: Rosa Luxemburgo, etc.). Tradição cujo materialismo-mecânico-determinista-evolucionista se cristalizava num silogismo político rigoroso e paralisante:


“A Rússia é um país atrasado, semifeudal. Ela não está madura para o socialismo. A revolução russa é uma revolução burguesa – Q.E.D.”


Raramente uma modificação teórica foi mais rica de consequências históricas que a modificação inaugurada por Lenin em seu discurso na estação finlandesa de Petrogrado. Quais foram as fontes metodológicas dessa modificação? Qual é a diferenttia specifica de seu método com relação aos cânones da ortodoxia marxista “de outrora”?


Eis a resposta de Lenin mesmo num escrito polêmico dirigido precisamente contra Soukhanov, em janeiro de 1923: “todos eles se dizem marxistas, mas eles compreendem o marxismo de forma por demais pedante. Eles não compreenderam absolutamente o que existe de essencial no marxismo, a saber: sua dialética revolucionária” [3]. Sua dialética revolucionária: eis, in nuce, o ponto geométrico da ruptura de Lenin com o Marxismo da IIª Internacional, e, em certa medida, com sua própria consciência filosófica “de outrora”. Ruptura que começa logo após à Primeira Grande Guerra, se nutre de uma volta às fontes hegelianas da dialética marxista e resulta no desafio monumental, “louco” e “delirante” da noite de 3 de abril de 1917.


I. O “velho bolchevismo” ou o “marxismo de outrora”': Lenin antes de 1914.


Uma das primeiras fontes do pensamento filosófico de Lenin antes de 1914 foi A sagrada família de Marx (1844) , que ele leu e resumiu num caderno de notas em 1895. Ele se interessou particularmente pelo capítulo intitulado: “Batalha crítica contra o materialismo francês” que ele designa como “um dos mais preciosos do livro” [4]. Ora, esse capítulo constitui precisamente o único escrito de Marx onde ele “adere” de uma maneira não crítica ao materialismo francês do século XVIII, que ele apresenta como a “base lógica” do comunismo. As citações extraídas desse capítulo de A sagrada família são um dos testes que permitem identificar o materialismo “metafísico” numa corrente marxista.


Por outro lado, é um fato evidente e bem conhecido que Lenin era, nessa época, do ponto de vista filosófico, amplamente tributário de Plekhanov. Sendo politicamente muito mais flexível e radical que seu mestre, que se tornou depois da ruptura de 1903 o principal teórico do menchevismo, Lenin aceitava algumas premissas ideológicas fundamentais do marxismo “pré-dialético” de Plekhanov e seu corolário estratégico, o caráter burguês da revolução russa. Sem essa “base comum” dificilmente se pode compreender que, apesar de sua crítica severa e intransigente do “continuísmo” dos mencheviques com relação à burguesia liberal, ele pôde aceitar, de 1905 a 1910, várias tentativas de reunificação das duas facções da social-democracia russa. Aliás, é no momento de sua maior reaproximação política com Plekhanov (contra o liquidacionismo 1908-9) que ele escreve Materialismo e empiriocriticismo, obra onde a influência filosófica do “pai do marxismo russo” é visível e legível.


O que é notável e totalmente característico para o Lenin de antes de 1914 é que a autoridade marxista da qual ele se valia frequentemente em suas polêmicas contra Plekhanov não era outra senão… Karl Kautsky. Por exemplo, ele vê num artigo de Kautsky sobre a revolução russa (1906) “um golpe direto dirigido a Plekhanov” e ele sublinha com entusiasmo a coincidência entre as análises kautskianas e bolcheviques: a revolução burguesa efetuada pelo proletariado e o campesinato apesar da instabilidade da burguesia, é uma tese essencial da tática bolchevique, inteiramente confirmada por Kautsky” [5].


Uma análise rigorosa do principal texto político de Lenin desse período, as Duas táticas da social-democracia na Revolução democrática (1905) mostra com uma nitidez extraordinária a tensão no pensamento de Lenin entre seu realismo revolucionário geral e os limites que lhe impõe a construção estreita do marxismo supostamente “ortodoxo”. Por um lado, encontram-se aí análises brilhantes e penetrantes sobre a incapacidade da burguesia russa levar a bom termo uma revolução democrática, a qual não pode ser realizada senão por uma aliança operária camponesa exercendo sua ditadura revolucionária; ele fala mesmo do papel dirigente do proletariado nessa aliança e, por momentos, ele parece estar prestes a conseguir atingir a ideia de uma transição ininterrupta em direção ao socialismo: “essa ditadura não poderá tocar (sem passar por toda uma série de graus intermediários de desenvolvimento revolucionário) as bases do capitalismo” [6]. Por esse pequeno parênteses, Lenin abre uma janela em direção à paisagem desconhecida da revolução socialista, mas é para fechar logo e voltar ao espaço fechado, circunscrito pelos limites da ortodoxia. Esses limites são encontrados nas numerosas fórmulas das Duas táticas..., onde Lenin reafirma categoricamente o caráter burguês da revolução russa e condena como “reacionária” a ideia de “procurar a salvação da classe operária em algo que não seja o desenvolvimento ulterior do capitalismo” [7].


O argumento principal que ele apresenta para apoiar essa tese é o tema “clássico” do marxismo “pré-dialético”: a Rússia não está madura para uma revolução socialista: “o grau de desenvolvimento econômico (condição objetiva) e o grau de consciência e de organização das grandes massas do proletariado (condição subjetiva, indissoluvelmente ligada à condição objetiva) tornam impossíveis a liberação completa e imediata da classe operária. Somente as pessoas mais ignorantes podem desconhecer o caráter burguês da revolução democrática que se desenvolve” [8]. O objetivo determina o subjetivo, a economia é a condição da consciência: eis, em duas palavras, Moisés e os Dez Mandamentos do evangelho materialista da IIª Internacional, que esmagava com seu peso a genial intuição política de Lenin.


A fórmula que era a quinta essência do bolchevismo de antes da guerra, do “velho bolchevismo”, reflete em seu âmago todas as ambiguidades do primeiro leninismo: “a ditadura revolucionária do proletariado e do campesinato”. A inovação profundamente revolucionária de Lenin (que o distinguia radicalmente da estratégia menchevique) é exprimida pela fórmula flexível e realista do poder operário e camponês, fórmula “algébrica” (disse Trotsky) onde o peso específico de cada classe não é determinado a priori. Em compensação, o termo aparentemente paradoxal de “ditadura democrática” é a prova da ortodoxia, a presença visível dos limites impostos pelo “marxismo de outrora”: a revolução não é senão “democrática”, quer dizer burguesa; como escreve Lenin numa passagem reveladora, “decorre necessariamente de toda a filosofia marxista” – quer dizer, da filosofia marxista tal como a concebiam Kautsky, Plekhanov e outros ideólogos do que era convencionado chamar na época “a social-democracia revolucionária” [9].


Um outro tema das Duas táticas,que testemunha o obstáculo metodológico que constituia o caráter analítico desse marxismo, é a rejeição explícita e formal da Comuna de Paris como modelo para a revolução russa. Segundo Lenin, a Comuna se enganou porque não soube “distinguir os elementos da revolução democrática e socialista”, porque “confundiu os objetivos da luta pela república com os da luta pelo socialismo”. Por conseguinte, ela foi “um governo ao qual o nosso [futuro governo revolucionário provisório – Michael Löwy] não deve se assemelhar” [10]. Veremos mais tarde que esse é precisamente um dos núcleos por onde Lenin empreenderá, em abril de 1917, a revisão dilacerante do “velho bolchevismo”.


II. O “corte” de 1914.


“É uma adulteração do estado-maior alemão!”, clamou Lenin quando lhe mostraram o exemplar do Vorwärts (órgão da social-democracia alemã) com a novidade do voto socialista pelos créditos de guerra em 4 de agosto de 1914. Essa anedota célebre (assim como sua recusa obstinada em crer que Plekhanov tinha se pronunciado pela “defesa nacional” da Rússia czarista) ilustra ao mesmo tempo as ilusões que Lenin tinha sobre a social-democracia (marxista), seu espanto face à falência da IIª Internacional e o abismo que se cria entre ele e os “ex-ortodoxos” que se tornaram social-patriotas.


A catástrofe de 4 de agosto foi para Lenin a evidência fulgurante de que havia algo de podre no reino da Dinamarca da “ortodoxia” marxista oficial. A bancarrota política dessa ortodoxia o conduz portanto a uma profunda revisão das premissas filosóficas do marxismo kautsko-plekhanovista. “A falência da II° Internacional, nos primeiros dias da guerra, incita Lenin a refletir sobre os fundamentos teóricos de uma tão profunda traição” [11]. Seria necessário um dia reconstituir o itinerário que levou Lenin do trauma de agosto de 1914 à Lógica de Hegel, apenas um mês depois. Simples vontade de retornar as fontes do pensamento marxista? Ou intuição lúcida de que o tendão de Aquiles metodológico do marxismo da IIª Internacional era a incompreensão da dialética?


Qualquer que seja ele, não há dúvida de que sua visão da dialética marxista foi profundamente transformada. São testemunhas não somente o texto mesmo dos Cadernos Filosóficos, mas também a carta que ele enviou em 4 de janeiro de 1915, apenas terminada a leitura da Ciência da Lógica (17 de dezembro de 1914), ao secretário de redação das edições Granat para perguntar se havia “ainda tempo de fazer (a seu Karl Marx) algumas correções na seção sobre a dialética” [12]. E não foi absolutamente um “entusiasmo passageiro” pois, sete anos mais tarde, num de seus últimos escritos, Sobre a significação do marxismo militante (1922), ele chamava os editores e colaboradores da revista teórica do partido (“sob a bandeira do marxismo”) a “ser uma espécie de Sociedade dos amigos materialistas da dialética hegeliana”. Ele insiste sobre a necessidade de um “estudo sistemático da dialética hegeliana de um ponto de vista materialista”, e propõe mesmo “publicar na revista trechos das principais obras de Hegel, interpretá-las de um ponto de vista materialista e comentá-las com a ajuda de exemplos sobre a maneira pela qual Marx aplicou a dialética” [13].


Quais eram as tendências (ou pelo menos as tentações) do marxismo da IIª internacional que lhe dava seu caráter pré-dialético?


1) Primeiramente, a tendência a apagar a distinção entre o materialismo dialético de Marx e o materialismo “antigo”, “vulgar”, “metafísico” de Helvetius, Feuerbach etc. Plekhanov, por exemplo, chega a escrever essa coisa espantosa, a saber, que as teses de Marx sobre Feuerbach “não rejeitam absolutamente as ideias fundamentais da filosofia de Feuerbach; elas somente as modificam... As concepções materialistas de Marx e Engels se desenvolveram no mesmo sentido indicado pela lógica interna da filosofia de Feuerbach!”. Aliás, Plekhanov critica Feuerbach e os materialistas franceses do século XVIII por terem uma concepção muito... idealista no domínio da história [14].


2) A tendência, decorrente da primeira, de reduzir o materialismo histórico a um determinismo econômico mecanicista onde o “objetivo” é sempre a causa do “subjetivo”. Por exemplo, Kautsky insiste incansavelmente sobre a ideia que “a dominação do proletariado e a revolução social não podem se produzir antes que as condições preliminares, tanto econômicas quanto psicológicas, de uma sociedade socialista estejam suficientemente realizadas”. Quais são essas “condições psicológicas”? Segundo Kautsky, “a inteligência, a disciplina, um talento de organização”. Como essas condições serão criadas? “É a tarefa histórica do capital” realizá-las. Moral da história: “não é senão onde o sistema de produção capitalista atingiu um alto grau de desenvolvimento que as condições econômicas permitem a transformação pelo poder público da propriedade capitalista dos meios de produção em propriedade social” [15].


3) A tentação de reduzir a dialética a um evolucionismo darwinista, onde as diferentes etapas da história humana (escravidão, feudalismo, capitalismo, socialismo) se sucedem segundo uma ordem rigorosamente determinada pelas “leis da história”. Kautsky, por exemplo, definiu o marxismo como “o estudo científico das leis da evolução do organismo social” [16]. Com efeito, Kautsky tinha sido darwinista antes de se tornar marxista e não é sem razão que seu discípulo Brill definiu seu método como um “materialismo biológico-histórico...”.


4) Uma concepção abstrata e uma ciência naturalista das “leis da história” que é ilustrada de uma maneira marcante pela maravilhosa frase que Plekhanov pronunciou ao receber as notícias da revolução de outubro: “Mas é uma violação de todas as leis da história!”.


5) Uma tendência à recaída no método analítico, apreendendo somente objetos “distintos e separados” fixos em sua diferença: Rússia - Alemanha, revolução burguesa -revolução socialista, partido - massas, programa mínimo - programa máximo, etc.


Está claro que Kautsky e Plekhanov tinham cuidadosamente lido e estudado Hegel; mas eles o “absorveram” e “digeriram” no âmago de seu sistema teórico, como precursor do evolucionismo ou do determinismo histórico.


Em que medida as notas de Lenin sobre (ou a respeito de) a Lógica de Hegel constituem um desafio ao marxismo pré-dialético?


1. Primeiramente Lenin insiste sobre o abismo filosófico que separa o materialismo “imbecil”, quer dizer “metafísico, não desenvolvido, morto, grosseiro” do materialismo marxista, que está mais próximo, em compensação, do idealismo “inteligente”, quer dizer dialético. Por conseguinte, ele critica Plekhanov severamente por não ter escrito nada sobre a Grande Lógica de Hegel, “quer dizer no fundo sobre a dialética como ciência filosófica”, e por ter criticado o kantismo do ponto de vista do materialismo vulgar mais do que “à la Hegel” [17].


2. Ele se apropria de uma compreensão dialética da causalidade: “A causa e o efeito não são, ergo [então], senão momentos da interdependência universal, do elo (universal), da conexão recíproca dos acontecimentos...”. Ao mesmo tempo ele aprova a démarche [abordagem] dialética pela qual Hegel dissolve a “oposição sólida e abstrata” do subjetivo e do objetivo e destrói sua unilateralidade [18].


3. Ele sublinha a diferença capital entre a concepção evolucionista vulgar e a concepção dialética do desenvolvimento: uma, “o desenvolvimento como diminuição e aumento, como repetição” morreu pobre, árida; a outra, o desenvolvimento como unidade dos contrários, é a única que “dá a chave mestra” da “ruptura na sucessão”, da “transformação no contrário”, da abolição do antigo e do nascimento do novo [19].


4. Ele critica, com Hegel, a “absolutização do conceito de lei, sua simplificação, sua fetichização” (e ele acrescenta: “N.b. [nota bene], para a física moderna!”). Ele escreve mesmo que “a lei, toda lei, é estreita, incompleta, aproximativa” [20].


5. Ele vê na categoria da totalidade, no “desenvolvimento de todo um conjunto dos momento das realidade”, a essência mesma do conhecimento dialético [21]. Vê-se o uso que Lenin faz imediatamente desse princípio metodológico na brochura escrita por ele nessa época, A Falência da IIª Internacional; ele submete a uma crítica severa os apologistas da “defesa nacional” – que tentam negar o caráter imperialista da grande guerra devido ao “fator nacional” da guerra dos servos contra a Áustria – sublinhando que a dialética de Marx “proíbe justamente o exame isolado, quer dizer unilateral e deformado, do objeto estudado” [22]. Isso é de uma importância capital porque, como dizia Lukács, o reino da categoria dialética da totalidade é o portador do princípio revolucionário na ciência.


O isolamento, a fixação, a separação e a oposição abstrata dos diferentes momentos da realidade são dissolvidos por um lado através da categoria da totalidade, por outro lado pela constatação, em Lenin, que “a dialética é a teoria que mostra... porque o entendimento humano não deve tomar os contrários como mortos, petrificados, mas como vivos, condicionados, móveis, se convertendo um no outro” [23].


Bem entendido, o que nos interessa aqui é menos o estudo do conteúdo filosófico dos Cadernos “em si”, do que o de suas consequências políticas. Não é difícil encontrar o fio que leva das premissas metodológicas dos Cadernos às teses de Lenin em 1917: da categoria da totalidade à teoria do elo mais fraco da corrente imperialista; da conversão dos contrários à transformação da revolução democrática em revolução socialista; da concepção dialética da causalidade à recusa de definir o caráter da revolução russa somente pela “base econômica atrasada” da Rússia; da crítica do evolucionismo vulgar à “ruptura na sucessão” em 1917 etc., etc. Mas o mais importante, é pura e simplesmente que a leitura crítica, a leitura materialista de Hegel liberou Lenin da construção estreita do marxismo pseudo-ortodoxo da IIª Internacional, do limite teórico que esse marxismo impunha a seu pensamento. O estudo da Lógica hegeliana foi o instrumento pelo qual Lenin desimpediu o caminho teórico que conduz à estação finlandesa de Petrogrado.


Em março-abril e 1917 Lenin, livre do obstáculo representado pelo marxismo pré-dialético, pôde, sob o impulso dos acontecimentos, se desembaraçar rapidamente de seu corolário político: o princípio abstrato e fixo segundo o qual “a revolução russa não pode ser senão burguesa – a Rússia não está economicamente madura para uma revolução socialista”. Uma vez ultrapassado esse Rubicão, ele começa a estudar o problema sob um ângulo prático, concreto e realista: quais são as medidas, constituindo de fato uma transição para o socialismo, que podemos fazer com que sejam aceitas pela maioria do povo, quer dizer pelas massas operárias e camponesas?


III. As teses de abril de 1917


Na verdade, as “teses de abril” nasceram em março, mais precisamente entre 11 e 26 de março, quer dizer entre a terceira e a quinta Carta de Longe. A análise rigorosa desses dois documentos (que aliás não foram publicados em 1917) nos permite apreender o movimento mesmo do pensamento de Lenin. À questão capital – a revolução russa pode tomar medidas de transição para o socialismo? – Lenin responde em dois momentos: no primeiro (Carta 3) ele questiona a resposta tradicional; no segundo (Carta 5) ele dá uma resposta nova.


A Carta 3 contém em si mesma dois momentos justapostos numa contradição não resolvida. Lenin descreve algumas medidas concretas no terreno do controle da produção e da distribuição que ele acredita indispensáveis para o progresso da revolução. Ele sublinha primeiramente que essas medidas não são ainda o socialismo, ou a ditadura do proletariado; elas não ultrapassam os limites da “ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses pobres”. Mas ele acrescenta logo essa frase paradoxal que sugere claramente uma dúvida sobre o que ele acaba de afirmar, quer dizer, um questionamento explícito das teses “clássicas”: “Não se trata nesse momento de proceder a uma classificação teórica dessas disposições. Cometeríamos o mais grave erro se quiséssemos estender as tarefas da revolução, essas tarefas práticas, complexas, urgentes, e em vias de desenvolvimento rápido, sobre o leito de Procusto de uma teoria fixa...” [24].


Quinze dias mais tarde, na quinta Carta, o abismo foi ultrapassado, o corte político consumado: as medidas mencionadas (controle da produção e da repartição, etc.) “constituem, vistas em seu conjunto e em sua evolução, uma transição para o socialismo, o qual não poderia ser instaurado na Rússia diretamente, de antemão, sem medidas transitórias, mas é perfeitamente realizável e se impõe impiedosamente depois de tais disposições” [25]. Lenin não se recusa mais a uma “classificação teórica” dessas medidas e ele as define não como “democráticas”, mas como transitórias para o socialismo.


Durante esse tempo, os bolcheviques em Petrogrado permaneciam fiéis ao velho esquema (eles tentavam deitar a revolução, essa jovem indócil, indomável e enfurecida, no “leito de Procusto de uma teoria fixa...” e se isolavam num oportunismo prudente; o Pravda de 15 de março concedia mesmo um sustentáculo condicional ao governo provisório (mais novo!) “na medida em que esse governo combatia a reação e a contra-revolução”; segundo testemunho sincero do dirigente bolchevique Chliapnikov, em março de 1917 “estávamos de acordo com os mencheviques ao dizerem que passamos por uma fase de demolição revolucionária das relações de feudalidade e de servidão, às quais iam se substituir todas as espécies de “liberdades particulares nos regimes burgueses” [26].

Podemos pois compreender sua surpresa quando as primeiras palavras que Lenin, na estação finlandesa de Petrogrado, dirigia à massa dos operários, soldados e marinheiros, formavam um apelo a lutar pela revolução socialista [27].


Na noite de 3 de abril e no dia seguinte, ele expôs ao partido as “teses de abril” que produziram, segundo o bolchevique Zalejsky, membro do Comitê de Petrogrado, o efeito de uma bomba que explode. Aliás, em 8 de abril, esse mesmo Comitê de Petrogrado rejeitou as teses de Lenin por 13 votos contra 2, com uma abstenção [28]. E é necessário dizer que as “teses de abril” estavam, em certa medida, em recuo com relação às conclusões já atingidas na quinta “Carta de longe”: elas não falam explicitamente de transição para o socialismo. Parece que Lenin, face ao espanto e à perplexidade de seus camaradas foi levado a moderar parcialmente seus propósitos. Com efeito, as teses de abril falam muito de transição entre a primeira etapa da revolução e a segunda “que deve dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato”. Mas isto não está necessariamente em contradição com a fórmula tradicional do “velho bolchevismo” (exceto a menção das “camadas pobres” em vez do campesinato como um todo, que é, bem entendido, muito significativo), pois o conteúdo das tarefas desse poder (democráticas somente ou já socialistas?) não está definido. Lenin sublinha mesmo que “nossa tarefa imediata não é ‘introduzir’ o socialismo, mas unicamente passar imediatamente ao controle da produção social e da repartição dos produtos pelos Sovietes dos deputados operários”, fórmula maleável onde a caracterização do conteúdo desse “controle” não é determinada [29]. O único tema que, pelo menos implicitamente, é uma revisão da antiga concepção bolchevique é o do Estado-Comuna como modelo para a República dos Sovietes, e isto por duas razões:


a) a Comuna era tradicionalmente definida, na literatura marxista, como a primeira tentativa de ditadura do proletariado;


b) Lenin mesmo tinha caracterizado a Comuna como um governo operário que quis realizar, ao mesmo tempo uma revolução democrática e uma revolução socialista. É por essa razão que Lenin, prisioneiro do “marxismo de outrora”, a tinha criticado em 1905. É pela mesma razão que Lenin, o dialético revolucionário, a toma por modelo em 1917. O historiador E. H. Carr tem, pois, razão de sublinhar que os primeiros artigos de Lenin depois de sua chegada a Petrogrado “implicavam a transição do socialismo, mas paravam antes de proclamá-lo explicitamente” [30]. Essa explicação vai se formar durante o mês de abril na medida em que Lenin ganha as bases do partido bolchevique para sua linha política. Ela se faz principalmente em torno de dois eixos: a revisão do “velho bolchevismo” e a perspectiva de transição ao socialismo. O texto capital a esse respeito é uma pequena brochura – pouco conhecida – Cartas sobre a tática, redigida entre 8 e 13 de abril, provavelmente sob o impulso do editorial anti-Lenin do Pravda de 8 de abril, onde encontramos essa frase-chave que resume o movimento histórico, efetuado por Lenin e sua ruptura definitiva, explícita e radical com o que havia de ultrapassado no bolchevismo “de outrora”: “Quem, atualmente, não fala senão da ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato atrasa sua vida; passa devido a esse fato, praticamente, à pequena burguesia, e merece ser relegado aos arquivos das curiosidades bolcheviques pré-revolucionárias – aos arquivos do “velhos bolcheviques” poder-se-ia dizer” [31]. Nessa mesma brochura, Lenin, defendendo-se de querer introduzir “imediatamente” o socialismo, afirma que o poder soviético tomará medidas “para caminhar para o socialismo”. Por exemplo, “o controle do banco, a fusão de todos os bancos num só não são ainda o socialismo, mas um passo para o socialismo” [32].


Num artigo publicado em 23 de abril, Lenin define nos seguintes termos o que distingue os bolcheviques dos mencheviques: enquanto os últimos “são pelo socialismo, mas acreditam ser prematuro pensar nele e tomar, desde o presente, medidas práticas para realizá-lo”, os primeiros pensam que os sovietes “devem tomar imediatamente todas as medidas praticamente realizáveis para fazer triunfar o socialismo” [33].


Que significa “medidas praticamente realizáveis”? Para Lenin isso quer dizer principalmente medidas que possam receber o apoio da maioria da população. Quer dizer, não somente dos operários, mas também das massas camponesas. Lenin, liberto do limite teórico imposto pelo esquema pré-dialético – “a passagem para o socialismo é objetivamente irrealizável” – se ocupa agora das condições político-sociais reais para assegurar “passos para o socialismo”. Assim, no seu discurso no VIIº congresso do partido bolchevique (24-29 de abril) ele coloca o problema de uma forma realista e concreta: “é necessário falar de atos e de medidas práticas... não podemos ser partidários de ‘introduzir’ o socialismo. A maioria da população na Rússia é formada de camponeses, de pequenos proprietários que não podem de nenhuma maneira desejar o socialismo. Mas que poderiam contrapor à criação, em cada cidade, de um banco que lhes permitiria melhorar sua exploração? Eles nada podem dizer contra. Devemos preconizar essas medidas práticas entre os países e fortalecer neles a consciência dessa necessidade” [34]. “Introduzir” o socialismo significa, neste contexto, a imposição imediata da socialização total, “por cima”, contra a vontade da maioria da população. Lenin, em compensação, se propõe a obter o apoio das massas camponesas para algumas medidas concretas, de caráter objetivamente socialista, tomadas pelo poder soviético (com hegemonia operária). Com algumas nuances, essa concepção se assemelha espantosamente à concepção defendida desde 1905 por Trotsky: “a ditadura do proletariado apoiada pelo campesinato” que efetua a passagem ininterrupta da revolução democrática à revolução socialista. Não foi por acaso que Lenin foi chamado de “trotskista” pelo “velho bolchevique” Kamenev em abril de 1917... [35].


Conclusão


Não há dúvida de que as “teses de abril” representam um “corte” teórico-político com relação à tradição do bolchevismo do pré-guerra. Dito isto, não é menos verdadeiro que, na medida em que Lenin havia preconizado, desde 1905, a aliança revolucionária do proletariado e do campesinato (e o aprofundamento radical da revolução sem ou mesmo contra a burguesia liberal) o “novo-bolchevismo” nascido em abril de 1917 é o herdeiro autêntico e o filho legítimo do “velho-bolchevismo”.


Por outro lado, se é inegável que os Cadernos constituem uma ruptura filosófica com relação ao “primeiro leninismo” é necessário reconhecer também que o método utilizado nos escritos políticos de Lenin de antes de 1914 era muito mais “dialético” que o de Plekhanov ou Kautsky.


Finalmente, e para evitar mal-entendidos possíveis, não quisemos absolutamente sugerir que Lenin “deduziu” as teses de abril da Lógica de Hegel... Essas teses são o produto de um pensamento realista-revolucionário face a uma situação nova: a guerra mundial, a situação objetivamente revolucionária que ela criou na Europa; a revolução de fevereiro, a derrota rápida do czarismo, o aparecimento maciço dos sovietes. Elas são o resultado do que constitui a essência mesma do método leninista: uma análise concreta de uma situação concreta. A leitura crítica de Hegel ajudou precisamente Lenin a se liberar de uma teoria abstrata e fixa que servia de obstáculo a essa análise concreta: a pseudo-ortodoxia pré-dialética da IIª Internacional. É nesse sentido, e somente nesse sentido, que se pode falar do itinerário teórico que Lenin percorreu do estudo da Grande Lógica na biblioteca de Berna, em setembro de 1914, às palavras de desafio que “abalaram o mundo”, lançadas pela primeira vez na noite de 3 de abril de 1917, na estação finlandesa de Petrogrado.


* Foram feitas algumas revisões para esta transcrição.


Notas

[1] Soukhanov, La révolution russe de 1917, Stock, Paris, 1965, pp. 139, 140, 142.

[2] Idem, p. 143.

[3] Lenin, Sur notre révolution (A propos des mémoires de N. Soukhanov), Oeuvres, Moscou, vol. 23, p. 489.

[4] Lenin, Cahiers Philosophiques, Ed. Sociales, Paris, 1955, p. 30.

[5] Lenin, Oeuvres, Ed. Sociales, vol. II, pp. 432, 433.

[6] Lenin, Dos tacticas de la social-democracia, Ed. Ateneo, Buenos Aires, 1957, p. 40, sublinhado por nós – M.L.

[7] Lenin, Dos tacticas…, p. 34; Cf. também p. 33 “ Os marxistas estão absolutamente convencidos do caráter burguês da revolução russa. O que significa isso? Isso significa que as transformações democráticas no regime político e as transformações econômico-sociais, que se tornaram uma necessidade para a Rússia não somente não representam em si um ataque ao capitalismo, mas, pelo contrário, desvendam o terreno pela primeira vez como é preciso, para um desenvolvimento amplo e rápido, europeu e não asiático, do capitalismo. Elas tornarão possível, pela primeira vez, o domínio da burguesia como classe".

[8] Idem, p. 15.

[9] A única (ou quase) exceção a essa regra era Trotsky, que tinha sido o primeiro, em Bilan et Perspectives ( 1906), a ultrapassar o dogma do caráter burguês-democrático da revolução russa futura; entretanto ele estava politicamente neutralizado pelo seu conciliacionismo-organizacional.

[10] Lenin, op. cit., pp. 63-64; sublinhado no original.

[11] R. Garaudy, Lénine, P.U.F., 1969, Paris, p. 39.

[12] R. Garaudy, in op. cit., p. 40.

[13] Lenin, Selected Works, Moscou, vol. 3, pp. 667, 668. Isso é muito atual hoje em dia, quando se tenta novamente, valendo-se de Lenin, tratar o velho Hegel como “chien crevé” [cachorro morto]...

[14] Plekhanov, Les questions fondamentales du marxisme, Ed. Sociales, Paris, 1953, pp. 32-33. Cf. também p. 25: “a teoria do conhecimento de Marx provém em linha reta da teoria do conhecimento de Feuerbach ou, se quisermos, ela é a de Feuerbach mesmo, mas somente aprofundada de forma geral por Marx”.

[15] Kautsky, La révolution sociale, in P. Louis, 150 années de pensée socialiste, M. Rivière, 1953, pp. 28-29, 31.

[16] La Question agraire. Plekhanov, em compensação, criticou, pelo menos em princípio, o evolucionismo vulgar, apoiando-se precisamente na Science de la Logique de Hegel. Cf. Questions Fondamentales du marxisme, p. 36.

[17] Lenin, Cahiers philosophiques, Ed. Sociales, pp. 148-299, 230.

[18] Ibid, pp. 132-152, 171.

[19] Ibidem, p. 280.

[20] Ibidem, p. 125, 126.

[21] Ibidem, p. 131; cf. também pp. 135, 162, 195.

[22] Lenin, Oeuvres, Ed. Sociales, tomo 21, p. 241.

[23] Ibidem, p. 90.

[24] Lenin, Oeuvres, tomo 23, pp. 257, 258.

[25] Ibid, p. 370.

[26] Trotsky, in Histoire de la Révolution Russe, Ed. su Seull, Paris, 1967, vol. I, pp. 333, 336.

[27] Ver as recordações de F. Somilov, in Lenine tel qu’il fut, Ed. Livre Etranger, Moscou, 1958, p. 673. Cf. também as notas estenográficas que o bolchevique Bonch-Bruevitch tomou do primeiro discurso de Lenin na estação: “É necessário que vocês lutem pela Revolução socialista, que lutem até o fim, até a vitória completa do proletariado. Viva a revolução socialista” in G. Golikov, La Révolution d’Octobre, Ed. du Progrès, Moscou, 1966.

[28] Trotsky, op. cit., p. 358, Cf. E. H. Carr, The Boshevik Revolution, 1917-1923, vol. I, Macmillan, Londres, 1950, p. 77: “Ninguém tinha ainda contestado o ponto de vista que a revolução russa não era, e não podia ser, senão uma revolução burguesa. Este era o quadro doutrinal sólido e aceito no qual a estratégia política devia se inserir. Era difícil, no interior desse quadro descobrir uma razão urgente qualquer para rejeitar a priori o Governo Provisório, que era sem dúvida burguês, ou de pedir que se desse o poder aos sovietes, que eram essencialmente proletários... Era a quadratura do círculo. Coube, pois, a Lenin quebrar, diante dos olhos surpresos dos seus discípulos, o quadro doutrinal mesmo”. Cf. também, o testemunho do bolchevique Olmiski, citado por Trotsky, op. cit., pp. 366-367: “A revolução que se inicia não pode ser senão uma revolução burguesa... Era um julgamento obrigatório para todo membro do partido. Era a opinião oficial do partido, uma palavra de ordem constante e invariável até à Revolução de fevereiro de 1917 e mesmo ainda algum tempo depois”.

[29] Lenin, Oeuvres, vol. 24, pp. 12-14.

[30] E. H. Carr, op. cit.

[31] Lenin, Oeuvres, vol. 24, p. 35. Cf, também p. 41: “A fórmula do camarada Kamenev, inspirada no velho bolchevismo: ‘A revolução democrática não terminou’, leva ela em consideração essa realidade? Não, esta fórmula envelheceu. Ela não serve mais para nada. Ela está morta. É em vão que tentemos ressuscitá-la”.

[32] Ibidem, p. 44.

[33] Lenin, “Les partis politiques em Russie et les tâches du prolétariat”, Oeuvres, vol. 24, p. 89.

[34] Lenin, op. cit., p. 241.

[35] Cf. Trotsky, The Permanent Revolution, New Park Publication, Londres, 1962, pp. 73, 79. Não se deve esquecer, por outro lado, que tanto para Lenin quanto para Trotsky havia “um limite objetivo” para o socialismo na Rússia, na medida em que uma sociedade socialista terminada – abolição das classes sociais, etc. – não poderia ser estabelecida num país isolado e atrasado.

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