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Pela Libertação de Lésbicas e Gays (Peter Drucker e Sérgio Vitorino)

Atualizado: 25 de mai. de 2020


Pela Libertação de Lésbicas e Gays

(9 de maio, 2003)

Peter Drucker e Sérgio Vitorino

Tradução de Henrique Aragusuku

Revisão de Mariana Luppi


Este texto é um relato sobre a discussão e a aprovação da Resolução LGBT [On Gay/Lesbian Liberation] [1] da Quarta Internacional no 15º Congresso Mundial, realizado em 2003. Esta resolução foi o primeiro documento aprovado em um Congresso Mundial da Quarta Internacional a tratar especificamente sobre a temática, definindo a posição da Internacional de afirmação da importância da luta LGBT para a transformação da sociedade e a luta revolucionária socialista.


O texto foi escrito por Peter Drucker e Sérgio Vitorino, responsáveis também pela apresentação da resolução no plenário do congresso. Peter Drucker é um militante da Quarta Internacional — americano, porém atuante na Holanda — e foi co-diretor do Instituto Internacional de Pesquisa e Educação [International Institute for Research and Education], em Amsterdam, de 1993 a 2006. Drucker possui uma vasta formulação intelectual sobre marxismo e luta LGBT, com destaque para a escrita e editoração de livros como Different Rainbows (2000) sobre a luta LGBT no Terceiro Mundo e Warped: Gay Normality and Queer Anti-Capitalism (2015). Sérgio Vitorino é um militante português da Quarta Internacional, atuante nas lutas LGBT desde os anos de 1990 e um dos fundadores, em 2004, do grupo LGBT de ação direta Panteras Rosas. Atualmente é membro do Toupeira Vermelha, coletivo de militantes da Quarta Internacional em Portugal.


– Henrique Aragusuku




A votação unânime a favor da resolução sobre a libertação de lésbicas/gays no 15º Congresso Mundial da Quarta Internacional foi resultado de cinco anos de trabalho e marcou um grande avanço no trabalho de lésbicas/gays da Internacional. O debate de duas horas no próprio congresso confirmou que havia muito tempo perdido para compensar, porém também que existem grandes oportunidades para fazer um rápido progresso nos próximos anos.


O fato de que este tópico estava na agenda deste Congresso Mundial deveu-se claramente à emergência de movimentos lésbicos/gays/bissexuais/transgêneros (LGBT) em diversos países desde o fim dos anos de 1990. O tamanho das anuais Paradas do Orgulho tem mostrado a rápida expansão do movimento. Marchas de centenas de milhares tornaram-se agora regra em capitais como Paris, Berlim e Roma — e Rio de Janeiro — onde apenas algumas milhares de pessoas marchavam a cada ano, há alguns anos atrás.


As/os oradora/es na discussão do congresso mencionaram diversos aspectos da organização LGBT que tem florescido de país em país. O co-relator Sérgio Vitorino (do Partido Socialista Revolucionário Português) evidenciou a importância da intervenção das/os camaradas da Quarta Internacional para a crescente dimensão LGBT do movimento por uma globalização diferente — esta dimensão ficou visível para todas/os este ano no terceiro Fórum Social Mundial em Porto Alegre, onde milhares de pessoas passaram pelo espaço LGBT, e no primeiro Fórum Social Europeu no último novembro em Florença. Exemplos de LGBTs se organizando especificamente contra a guerra no Iraque foram mencionados nos EUA, Grã-Bretanha e França; Vitorino relatou que o movimento LGBT em Portugal, em sua totalidade, se levantou contra a guerra.


As questões sociais estão começando a se tornar mais importantes para os movimentos LGBT ao menos em alguns países, Vitorino disse, depois de anos em que o principal foco era a realização de lobby para a reforma legal. Este processo — que em parte vem levando os movimentos LGBT a se envolver com o movimento de justiça global — geralmente significa explicar os elos com outros movimentos, começando com os sindicatos trabalhistas, e explicar por que outros movimentos devem impulsionar demandas LGBT específicas. Vitorino deu vários exemplos destes elos entre questões LGBT e a luta contra o neoliberalismo: “a luta contra o ‘discurso de ódio’ feito por fundamentalistas ou forças de extrema-direita que usam o ‘tabu homossexual’ para intimidar oponentes; a luta contra cortes, que afetam as pessoas LGBT de formas particulares; a luta contra leis migratórias restritivas (imigrantes LGBT geralmente lidam com um duplo problema); campanhas contra os super-lucros das multinacionais farmacêuticas que não querem dar acesso livre aos remédios nos países dependentes”. Também foi mencionado na discussão o destino de homens gays em campos de concentração nazistas, o envolvimento inicial do movimento LGBT na luta contra o apartheid na África do Sul, sua presença no movimento de paz em Israel e sua resistência às forças ultranacionalistas em países como Croácia e Sérvia. O outro relator da resolução, Peter Drucker, do Partido Holandês Socialista dos Trabalhadores, falou sobre a disseminação da organização de imigrantes LGBT, particularmente na Europa entre imigrantes de origem muçulmana. Este fenômeno foi confirmado por oradores/as do plenário, por exemplo da Grã-Bretanha. “Nós precisamos resistir à demonização dos muçulmanos, que é em alguns momentos justificada pelo argumento de que o Islamismo rejeita as atitudes “iluminadas” do Ocidente em relação a mulheres e gays”, Drucker disse. “De fato o mundo islâmico possui uma rica história de celebração do erotismo homoafetivo, enquanto que o iluminismo ocidental sempre deixou a desejar. Ao mesmo tempo, nós não podemos nos comprometer com qualquer forma de preconceito anti-gay, secular ou religioso”. Um observador estadunidense se pronunciou para enfatizar a importância da luta contra o fundamentalismo religioso.


Teoria e táticas


O relato incluiu um resumo da análise central da resolução sobre as raízes da opressão contra LGBTs, uma análise que retorna à resolução internacional de 1979 sobre a opressão e libertação das mulheres. Em algumas seções foi levantada, nas discussões pré-congressuais, a questão de se a família capitalista desempenhou um papel exageradamente central nas análises da resolução, e se a família mudou nas últimas décadas em uma extensão maior do que a reconhecida pelo texto. Porém, tais questões não foram particularmente proeminentes na discussão realizada no próprio congresso. Ao contrário, um delegado uruguaio argumentou, por exemplo, que a análise do texto sobre o sistema patriarcal e a família deveria ser aprofundada.


Como apontado por uma delegada francesa, essa discussão é parte de uma reflexão mais ampla da Internacional sobre quem são os sujeitos sociais no processo de transformação da sociedade. Onde antes tínhamos uma concepção restrita da classe trabalhadora como sujeito da revolução socialista, ela disse, cada vez mais vamos concebendo os sujeitos da transformação como mais plurais e diversos.


Nosso trabalho com movimentos LGBT reflete não apenas a análise em desenvolvimento pela Quarta Internacional sobre a sociedade capitalista patriarcal. Reconhecemos o papel universal e social da repressão sexual como um aprendizado para a submissão e o conformismo, sua tradução material na vida das pessoas e a vulnerabilidade que inclusive revolucionárias/os enfrentam por suas imposições na vida cotidiana, reconhecemos que não haverá mudança estrutural que não lide com as bases da opressão sexual. Isto mostra o potencial subversivo destas lutas e torna lógica nossa participação nestes movimentos, apontou Vitorino. O trabalho das/os revolucionárias/os deve ser baseado no “respeito pela autonomia, pela auto-organização e pelas prioridades específicas do movimento, porém intervindo por sua radicalização, para o desenvolvimento de elos com outros movimentos sociais e abertura para suas análises, apoiando campanhas por reformas, mas resistindo às pressões normalizadoras e às teses integracionistas que não buscam mudança social real”, e que não identificam as origens materiais da homofobia.


Parcerias


Particularmente, mas não apenas, nos movimentos europeus, demandas pelo reconhecimento dos relacionamentos homoafetivos, que chegam até e incluem o casamento homoafetivo, têm sido uma questão central de mobilização. A discussão no Congresso refletiu o quão complexo esta questão pode ser para socialistas feministas que vêem o casamento como uma instituição patriarcal opressiva. Alguns grupos radicais LGBT na Áustria e Alemanha, com os quais nossas seções trabalham, por exemplo, são simplesmente opositores à demanda e recusam juntarem-se à organização para isso. Drucker defendeu o que chamou de ponto de vista “dialético e transicional” da resolução acerca deste assunto.


“Ela [a resolução] começa com as demandas e necessidades imediatas das pessoas LGBT, explora as contradições que a luta pelo casamento homoafetivo expõe, e lista diversas formas pelas quais as/os radicais podem e devem aprofundar estas contradições: por exemplo, demandando igualdade completa para parcerias homoafetivas em todos seus âmbitos, desafiando a centralidade da descendência biológica nas leis de paternidade e maternidade, e demandando direitos sociais individuais e universais independentes do estado civil”, disse Drucker. “Estas são formas pelas quais podemos utilizar a luta por igualdade total para os casamentos homoafetivos a fim de minar e desafiar a instituição do casamento”.


A discussão no Congresso confirma ainda mais que as crianças são sempre um ponto particularmente sensível nas discussões sobre sexualidade e família. Um delegado, ele mesmo pai, expressou sua raiva em relação à forma como a mídia geralmente ataca as pessoas LGBT como perpetuadoras de abuso sexual infantil. Ele apontou que a grande maioria dos abusos sexuais contra as crianças são heterossexuais e ocorrem no seio da família. Uma jovem delegada da Catalunha disse que a opressão contra pessoas jovens LGBT precisa ser vista no contexto da exploração perversa de pessoas jovens e suas sexualidades, que é cada vez mais característica no capitalismo contemporâneo.


Vitorino falou sobre questões específicas levantadas na organização entre a juventude LGBT. “A imposição de papéis sexuais restritivos e o aprendizado de preconceito, vergonha e medo de sua transgressão são aspectos da repressão sexual que possuem a juventude como seu principal alvo”, ele disse. “Ainda mais, a maioria das pessoas jovens não possuem os meios para a emancipação sexual, uma tendência aprofundada pelos ataques a benefícios sociais em vários países, que reforçam a dependência nas famílias” e a ameaçam “pré-requisitos básicos para que jovens LGBT possam viver separados de suas famílias heterossexuais”. Jovens LGBT são particularmente afetados por imagens distorcidas das relações homoafetivas, porque não possuem memória histórica e referências positivas em seu ainda doloroso processo de descobrimento do desejo homoafetivo.


Diversas/os oradoras/os reafirmaram o quão difícil era para elas/eles se levantarem e falarem sobre um assunto tão pessoal como a sexualidade. Apesar de um/a participante ter dito que a resolução por si só lida muito com questões que são pessoais e privadas em vez de políticas, outras/os discordaram veementemente. Apesar de ser difícil falar sobre sua própria sexualidade, uma delegada dinamarquesa comentou, isto é politicamente importante. Muitos sentiram que o anúncio de um jovem delegado britânico sobre sua bissexualidade, seus comentários sobre sua dificuldade de se “assumir” nos espaços da esquerda e sua atração pela Seção Britânica da Quarta Internacional por conta de seu posicionamento comparativamente melhor nesta questão, foi um ponto alto da discussão.


Passado e Futuro


Esta discussão está longe de ser o começo do trabalho sobre opressão e libertação sexual na Quarta Internacional. A Oposição de Esquerda estava presente desde o começo como oposição à recriminalização da homossexualidade de 1934 por Stálin na União Soviética. Penelope Duggan, uma das autoras da resolução da Internacional de 1979 sobre a libertação das mulheres, estava atenta para lembrar neste Congresso que o texto de 1979 também tinha defendido direitos para gays e tratado especificamente sobre as lutas das lésbicas. O Congresso de 1995 da Quarta Internacional também listou a libertação de gays e lésbicas como um dos 16 pontos que temos como fundamental para nossa atual identidade e para a construção de uma internacional amplamente de massas no futuro.


Três seminários internacionais sobre questões LGBT, realizados em 1998, 2000 e 2002, ajudaram a tornar possível uma compreensão aprofundada e uma crescente coordenação na Internacional. O seminário de 1998 lançou o processo de esboçamento da resolução adotada neste Congresso Mundial, e foi continuado em trocas de email e nas instâncias internacionais de direção da Quarta Internacional, assim como nos seminários posteriores . O objetivo inicial, buscado até poucos dias antes do encontro congressual, era alcançar o consenso mais amplo possível entre ativistas LGBT da Quarta Internacional — um objetivo que foi evidentemente alcançado, tendo em vista que os compromissos sobre os pontos mais controversos foram realizados na comissão de esboço antes da resolução chegar no palco do Congresso Mundial.


Ainda muitas pessoas disseram, e ninguém negou, que a Internacional tem sido muito lenta em abraçar as questões gays/lésbicas. A luta contra a AIDS, uma questão de vida e morte no início dos anos de 1980, se tornou importante para nós apenas anos atrás, uma delegada (ela mesma ativa na ACT UP) observou. Outras/os oradoras/es comentaram a norma heterossexual que continua um fato da vida nas seções da Quarta Internacional. “Buscamos uma profunda transformação das relações de gênero e uma sociedade onde, com a progressiva eliminação do privilégio heterossexual, a mudança da identidade sexual e as categorias sexuais não sejam centrais para a organização social”, Vitorino disse — e queremos a mudança começando agora, na vida cotidiana das nossas organizações. “Isso significa questionar a então chamada esfera privada das relações pessoais entre militantes, precisamente onde a homofobia e o sexismo são mais complexos”. Para Vitorino, isso não implica se opor apenas a preconceito dentro de nossas seções, mas compreender a especificidade e importância desses sujeitos e agir de acordo: entender que, como com camaradas mulheres, a autoestima e a autoconfiança requeridas para o ativismo político estão em jogo, e estes ambientes de apoio são essenciais.


Isso significa desafiar as diversas formas sutis nas quais se transmite a mensagem de que “além do mais existem questões mais importantes que sexo”. Isso também implica compreender que quando a heterossexualidade ou homossexualidade de qualquer membro é presumida no interior de nossas organizações, podemos estar promovendo a invisibilidade gay ou machucando alguém que está passando um processo de autodescobrimento. Ao mesmo tempo, “reconhecer o direito de LGBTs se auto-organizarem não significa deixar o assunto para camaradas LGBT”, disse Vitorino. A inclusão precisa ser específica e ao mesmo tempo transversal, das organizações de base a suas lideranças. Isso ainda raramente acontece. Ele também notou, a despeito destes obstáculos, o importante papel de algumas seções da Quarta Internacional na construção e politização destes movimentos sociais. Em diversos outros países, as seções possuem — ou devem possuir — relações com movimentos LGBT já existentes. “Precisamos estar prontas/os para ter cada um/a de nossas/os militantes assumindo campanhas para os direitos LGBT e para integrar essas questões em nossa agenda geral”, Vitorino concluiu.


Um fato perturbador que apareceu na discussão foi que as seções Portuguesa e Francesa, provavelmente as duas seções da Quarta Internacional na Europa com o trabalho mais forte e melhor organizado em movimentos LGBT, nem sequer trataram a resolução sobre lésbica/gays nas suas discussões nacionais pré-congressuais. Drucker comentou em sua síntese que o processo de seleção de delegadas/os para este Congresso também mostrou o quanto a Internacional ainda tem a avançar. Ainda que metade das sete ou oito pessoas que tiveram o maior papel no esboço da resolução fossem mulheres e diversas de países dominados, a sua apresentação no Congresso terminou sendo dividida por dois camaradas homens de seções europeias, em parte porque as mulheres e as/os camaradas do Terceiro Mundo não tiveram prioridade em suas seções quando chegou o momento de escolha de delegadas/os.


De fato, a primeira seção da Quarta Internacional que tornou o trabalho LGBT um foco principal e teve um papel predominante no movimento LGBT de seu país foi o mexicano Partido Revolucionário dos Trabalhadores do final dos anos de 1970 em diante. Um dos delegados mexicanos do Congresso, um veterano daqueles anos, usou a oportunidade para relembrar ao Congresso essa história e falou sobre a situação das pessoas LGBT no México hoje. Desde então, no entanto, o equilíbrio tem nitidamente mudado, com uma maior proporção de organização e formulação da Quarta Internacional sobre a libertação lésbica/gay sendo feita na Europa. Um delegado uruguaio, cuja organização está realizando discussões com um grupo radical LGBT uruguaio, reivindicou à International que corrigisse o equilíbrio no futuro.


Nota

[1] O texto integral da resolução pode ser conferido em: http://www.internationalviewpoint.org/spip.php?article177

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