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Leninismo no século XXI (Daniel Bensaïd)


Leninismo no século XXI

Daniel Bensaïd

Tradução de Pedro Barbosa

Revisão de Mariana Luppi e André Coggiola


Da revista virtual “International Viewpoint” – IV, n. 335, novembro de 2001.


Daniel Bensaïd, uma importante liderança da Liga Comunista Revolucionária (LCR) ⎼ seção francesa da IV Internacional ⎼, falou sobre o “Leninismo no século XXI” durante o evento “Marxismo 2001”, organizado pelo SWP Britânico. Phil Hearse conversou com ele lá.


Pergunta: A contribuição de Lênin ao pensamento marxista sobre o imperialismo, a questão nacional, a estratégia revolucionária e a democracia socialista é importante. Mas quando partidos e grupos se definem como “leninistas” eles geralmente estão se referindo a formas organizativas. Apesar disso, a experiência mostra que as organizações leninistas têm práticas organizativas bastante diversas. O que o “leninismo” tem então de particular em termos de organização?


Resposta: É preciso começar lembrando que o próprio termo “leninismo” surgiu após a morte de Lênin, notadamente nas intervenções de Zinoviev no 5º Congresso da Internacional Comunista (1924). Ele corresponde a uma codificação normativa de um modelo organizativo então associado à “bolchevização” da Comintern [“Communist International” - Internacional Comunista], que permitiu ⎼ sob o pretexto de combater as práticas da social-democracia corrompida pelo parlamentarismo ⎼ a submissão dos jovens Partidos Comunistas à tutela burocrática do Kremlin. A invenção do “leninismo” como uma ortodoxia aparece assim, paralelamente à mumificação religiosa, como parte constitutiva do processo de burocratização da Comintern e da União Soviética. É por isso que, ao máximo possível, eu evito utilizar esse “ismo”.


Agora, se tentarmos resumir o que aparece como essencial na concepção de organização de Lênin, eu ressaltaria duas ideias que me parecem efetivamente revolucionárias para aquela época e que permanecem atuais.


A primeira, que está no centro da polêmica de “Que fazer?” e de “Um passo à frente, dois passos para trás”, é a distinção entre o partido (revolucionário) e a classe (trabalhadora), a recusa de sua identificação, que os confunde. Essa distinção, inovadora em relação ao marxismo da II Internacional, implica pensar a especificidade da esfera política, de sua correlação de forças e de sua linguagem. Esta esfera não é o simples reflexo ou uma extensão das relações sociais. Ela expressa suas contradições transfigurando tais relações sociais , através de um jogo de deslocamentos e condensações (como diriam os psicanalistas). Eu gostaria de, sobretudo, destacar que essa distinção entre o político e o social, entre partidos e classe, paradoxalmente abre a possibilidade de pensar sobre o pluralismo político: se o partido não é a encarnação da classe, que seria sua substância social, torna-se possível pensar que a classe seja representada por uma pluralidade de partidos. Reciprocamente, a classe pode se dotar de instrumentos de resistência independentes dos partidos. Não me parece acidental que Lênin tenha tido a posição mais correta no debate do início dos anos 1920 na Rússia sobre o papel dos sindicatos.


A segunda ideia essencial está relacionada ao que parece ser uma das características mais discutíveis do “leninismo”: o centralismo democrático. Na medida em que essa noção se tornou sobretudo associada com o centralismo burocrático do período stalinista, retém-se acima de tudo o centralismo e a imagem de uma disciplina quase militar. Porém, para nós o aspecto democrático é fundamental. Se, após a livre discussão, não existir um esforço coletivo e um engajamento recíproco para colocar de conjunto as decisões ao teste da prática, a democracia de uma organização permanece formal e parlamentar. Se reduz a uma troca de opiniões sem consequências reais, cada um saindo do fórum com as convicções que tinha antes, sem que uma prática comum permita testar a validade de uma orientação.


Como a concepção de leninismo da LCR evoluiu desde sua criação (durante seu congresso de fundação em 1969)?


Em relação ao movimento de 1968 e às fortes ilusões espontaneístas que ele pôde fomentar na juventude, a fundação da Liga Comunista como seção da IV Internacional, em abril de 1969, foi o resultado de um debate muito vivo, notadamente sobre a questão da organização. Passados mais de 30 anos, esse debate fundacional me parece decisivo. Ele nos permitiu criar uma organização que resistiu ao refluxo posterior a maio de 1968 e aos testes das derrotas. De qualquer modo, um retorno crítico seria necessário. No contexto do período, nós tínhamos uma tendência de fetichizar o partido como o adversário direto do Estado (inspirados por uma leitura discutível de [Nicos] Poulantzas) e demos ao nosso “leninismo” um aspecto um tanto militarista (ou ultra-esquerdista, se preferir). Nisso pode-se ver a influência de [Che] Guevara, de seu voluntarismo e do papel atribuído às ações “exemplares”. Nesse sentido, nossa interpretação enquadrava-se parcialmente no “leninismo apressado”, criticado por Régis Debray em seu livro “A Crítica das Armas”, ao discutir a América Latina.

Há mais de uma década temos visto grupos revolucionários que reivindicam o leninismo intervir dentro de formações políticas relativamente importantes, como o Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil e o Partito della Rifondazione Comunista (PRC) na Itália ou mesmo, mais recentemente, o Scottish Socialist Party (SSP) na Escócia. Não existe aí um perigo para os grupos leninistas de que a imersão prolongada nestes partidos atrofie a sua independência política e prejudique a sua capacidade de operar como força política de combate durante uma crise revolucionária?


Os fenômenos citados representam experiências de construção partidária diferentes em contextos específicos, desde o nascimento de um partido operário de massas (Brasil), passando por diferenciações saídas dos antigos partidos comunistas (Itália), até o reagrupamento de correntes radicais. Para além de sua diversidade, essas experiências estão inscritas na situação de redefinição e recomposição política aberta pelo fim do “breve século XX” desde a queda do Muro de Berlim e a desintegração da União Soviética. Este é somente o início de um processo prolongado de mutação e redefinição das forças nos movimentos sociais.


A noção de “imersão prolongada” não me parece apropriada para falar dessas experiências, na medida em que parece evocar as experiências de “entrismo” dos anos 1930 ou do pós segunda guerra mundial. Não há nada de “entrista” na presença de correntes revolucionárias no Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro. Elas participam de uma construção partidária pluralista comparável àquela dos partidos de massa anteriores antes da primeira guerra mundial (quando a noção de entrismo não tinha sentido). Dentro dessas experiências existem contradições que devemos reconhecer e assumir. Um partido como o PT brasileiro está exposto a fortes pressões no sentido de uma integração parlamentar e na gestão do Estado. Ao mesmo tempo, ele permite um acúmulo de experiências sociais em grande escala. Nesse quadro, uma corrente revolucionária arrisca se embotar e perder sua alma? Sem dúvida. Mas, por outro lado, mantendo-se separada, também arriscaria perder sua alma ao tornar-se uma seita que denuncia sem sujar suas mãos. Entre dois riscos, é necessário escolher, buscando os melhores remédios (a formação dos militantes), sabendo que não existem garantias absolutas: o que se ganha em alcance social, perde-se em nitidez organizacional. Em qualquer caso, toda organização gera seus conservadorismos (incluindo o Partido Bolchevique em 1917) e ninguém pode ter certeza, em caso de crise revolucionária, de estar à altura da tarefa: a crise é um prova de verdade na qual o veredito jamais é conhecido de antemão.


Por que o capitalismo não poderá ser derrubado por uma aliança de movimentos sociais de massa, organizados em torno de projetos de emancipação específicos, considerando que cada um vê o capitalismo como seu inimigo? Por que fazer disto uma questão de princípio?


A pergunta não me parece ser a melhor forma de abordar a questão. De um certo ponto de vista, o capitalismo irá de fato ser derrubado por uma aliança ou convergência de movimentos sociais de massa. Mas mesmo se esses movimentos percebem, a partir de seus projetos parciais, o capitalismo como seu inimigo (o que talvez seja o caso do movimento de mulheres ou do movimento ecológico, e não somente do movimento operário), eu não acredito que todos os movimentos possuam um papel equivalente. E todos são atravessados por diferenciações e contradições que se referem à sua posição diante do capital como modo global de dominação. Existe um feminismo naturalista e um feminismo revolucionário, uma ecologia profundamente anti-humanista e uma ecologia humanista e social.


Pode-se integrar as contribuições sociológicas de Max Weber ou de Pierre Bourdieu sobre a diferenciação crescente das sociedades modernas e sobre a pluralidade de campos sociais. Se se considerar que esses campos não estão hierarquizados, mas simplesmente justapostos, então talvez poderiam se formar coalizões em transformação entre diferentes movimentos (as coalizões arco-íris sobre temas pontuais), mas não haveria fundamento sólido para sua convergência estratégica.


Eu penso que, pelo contrário, dentro de um modo de produção particular (capitalista), a relação de exploração e o conflito de classe constituem uma diagonal que atravessa e unifica as outras contradições. O grande unificador é o próprio capital, que subordina todos os aspectos da produção e da reprodução social, que remodela a função da família, determina a divisão social do trabalho e submete à lei do valor a relação da humanidade com as suas condições naturais de reprodução. Se este é mesmo o caso, um partido é o melhor agente de unificação consciente, e não a simples soma de movimentos sociais.


A estratégia leninista após 1914 estava baseada na ideia de que o imperialismo estava em sua fase de agonia e que por definição era um período de declínio do capitalismo. Como isso se mantém hoje?


Eu não interpreto tal caracterização da época, uma época de guerras e revoluções, no sentido de um juízo conjuntural ou de um prognóstico mecânico sobre o colapso inevitável do sistema. Retrospectivamente, o século XX realmente aparece como o das guerras e revoluções. E o século XXI, infelizmente, não será muito diferente deste ponto de vista. As formas da dominação imperial mudam, mas não desaparecem. A atualidade da herança de Lênin e Trótski, concebida em um sentido crítico e não dogmático, reside na atualidade do capital e do imperialismo em si mesmos.


Várias organizações revolucionárias que não pertencem à IV Internacional (por exemplo a LO francês, o SWP britânico e o DSP tendem a criticar a LCR francesa por sua má organização e sua falta de centralização política. Você concorda que o profundo e permanente envolvimento da LCR em diversos movimentos de massa reduziu sua capacidade de mobilização rápida em torno de campanhas centrais? E se sim, isso é uma escolha inevitável na situação atual?


Há uma parte de verdade nisso. A LCR resistiu à prova das derrotas dos anos 1980 e 90 essencialmente graças à sua atividade de massas no movimento sindical e nos movimentos sociais (desempregados, feminista e antirracista). Todo mundo reconhece na França que a renovação de um sindicalismo de combate ou que movimentos como o “AC” e o “Ras L’Front” [respectivamente, uma rede contra o desemprego e um grupo antifascista] não teriam tido o mesmo desenvolvimento sem os militantes da LCR. Neste contexto de recuo e de resistência, a utilidade imediata dos movimentos sociais parece mais evidente que a de uma organização política que parece sobretudo existir como uma rede e um fórum para a discussão de ideias. Isso certamente resultou em um afrouxamento organizativo e uma tendência à diluição do que nos lamentamos e que começamos a corrigir depois de alguns anos (digamos desde 1995-1997), mas preferimos esse perigo ao de uma “fortaleza sitiada”. A “Lutte Ouvrière” (LO) [Luta Operária] tem certamente mantido um patriotismo partidário superior, mas o preço é exorbitante: uma petrificação sectária e uma incompreensão dos movimentos sociais.


Também aqui há sempre uma relação de tensão entre a construção da organização política e a intervenção em movimentos unitários, entre o risco de um isolamento sectário e o risco de uma diluição. Não se pode evitar esta dupla dificuldade por uma fórmula mágica. É necessário aprender a navegar. Em uma manifestação, LO (se ela participar…) pode ter um contingente numericamente superior ao da Liga [LCR], mas os militantes da Liga também estão presentes nos contingentes de seus sindicatos, da ATTAC, do Ras L’Front, etc. Nós acreditamos fazer assim mais e melhor para desenvolver o “movimento real de abolição da ordem existente” que define o comunismo.


A recente escola de formação do SWP britânico “Marxismo 2001” foi um verdadeiro sucesso, mas pudemos constatar mais uma vez que o perfil etário das organizações de extrema esquerda na Europa é problemático (a maioria dos participantes tinha mais de 30 anos, com uma alta proporção de maiores de 40 anos). Por que? O que pode ser feito para melhorar isso?


O que me toca e me parece mais importante, mais do que a composição demográfica dessas universidades de verão ou de encontros como os congressos Marx, etc, é a retomada do interesse na crítica marxista da sociedade contemporânea e da mundialização capitalista. Certamente, nós preferiríamos uma presença mais jovem, mas o fato de que a geração dos anos 1960, ou ao menos uma parte significativa dela, tenha sobrevivido aos anos Thatcher ou os anos Mitterrand é antes um trunfo para o futuro: é a possibilidade de uma continuidade e de uma transmissão de experiência. Partindo disso, temos de fazer o esforço de encontrar os caminhos para acessar as atuais formas de politização da juventude. Porque ela existe. Se não mitificarmos a radicalizaçao anterior a 68, podemos até ver sinais mais importantes nas mobilizações atuais contra a globalização (a comparar com as lutas de então contra a guerra da Argélia ou contra a guerra do Vietnã), ou em fenômenos culturais e musicais. Além disso, organizações como o SWP britânico e a LCR francesa têm sem dúvidas “classes etárias” um pouco ocas (em relação à geração dos anos 1980), mas elas parecem atravessar o início de um novo crescimento dentro da juventude.


Foi um axioma para as organizações trotskistas dos anos 60, 70 e 80 que o leninismo significava um ativismo permanente para todos os militantes. Frequentemente isso implicava um envolvimento moral ou quase religioso. É realista esperar que um grande número de militantes possam ter um tal ritmo frenético durante décadas? Não estaria isso totalmente desconectado da situação política atual?


Um engajamento (voluntário) na luta revolucionária certamente não é um “hobby” para o fim de semana. Parece normal que implique uma exigência de atividade, de sacrifícios profissionais, de esforços financeiros. Não é necessário que isso leve a fomentar uma mística de auto-sacrifício ou um espírito religioso de missionário. Além disso, as organizações que praticam tal dopagem ideológica frequentemente se revelam as mais vulneráveis à desmoralização: as desilusões e o desânimo são então proporcionais à exageração eufórica das motivações. Sem dúvidas, o ativismo muitas vezes adotado nos anos 1970 estava relacionado a uma apreciação exageradamente otimista das nossas chances, mas também a uma disponibilidade de militantes que em sua esmagadora maioria vinham da juventude e não estavam ainda inseridos em uma vida profissional ou familiar. Digamos que nós amadurecemos e que a militância se “normalizou” nos ritmos e nas exigências. O risco daqui em diante pode ser o inverso: cair na rotina.


O centralismo democrático é um objetivo realizável a nível internacional? Podemos esperar ver algum dia uma nova Internacional de massas como a Comintern? À luz das experiências recentes, podemos dizer que as organizações revolucionárias inevitavelmente sofrem de desvios “nacional-comunistas” quando elas não pertencem a uma Internacional? Nós já vimos que essa noção (de centralismo democrático) é difícil de definir. Isso é ainda mais verdadeiro a um nível internacional. A IV Internacional foi definida em sua origem como um partido mundial. A fórmula gerou confusão ao permitir o entendimento de que ela poderia funcionar com um grau de centralização comparável ao de um partido nacional. Isso permitiu desventuras como a de 1952, quando a direção da seção francesa eleita em congresso foi suspensa pelo secretariado internacional. Isso seria inimaginável hoje. Os estatutos adotados em 1974 reconhecem a soberania das direções nacionais. O congresso de 1985 explicitou o fato de que a Internacional é composta de seções e não de aderentes individuais, o que implica uma estrutura bastante federalizada.


É necessário continuar a reflexão sobre o tipo de democracia concebível a nível internacional. Embora seja possível adotar via voto posições comuns sobre grandes eventos internacionais, é absurdo que os delegados europeus votem sobre a tática eleitoral no Peru ou a tática sindical no Brasil. Mais do que discutir uma fórmula (centralismo democrático, partido mundial), seria mais útil extrair um balanço sereno das experiências e práticas para encontrar o ponto de equilíbrio entre uma centralização destrutiva e uma simples rede de discussão sem engajamento comum. É preciso igualmente seguir com atenção as experiências de renovação internacionalista (notadamente no movimento contra a mundialização), retomar as discussões sobre o balanço de experiências passadas. Eu permaneço pessoalmente muito ligado à necessidade de uma Internacional, não penso que ela seja necessária e possível apenas nos períodos de ascenso revolucionário impetuoso. No entanto, mas não creio mais que a Comintern possa constituir um modelo para isso.


Os primeiros pequenos grupos lutando para construir partidos leninistas apareceram no final dos anos 1960. Depois de mais de 30 anos de esforços, poderia-se dizer que os resultados são bastante modestos. Sem dúvida, as razões desta situação tem raízes em fatores objetivos: as derrotas da classe trabalhadora, o neoliberalismo, o colapso do “comunismo”, etc. Mas também não cometemos grandes erros? Os resultados poderiam ter sido melhores?


Os resultados sem dúvida poderiam ter sido melhores. Poderia-se retomar a história desde os anos 1930 e fazer o inventário dos erros. De fato, isso não é uma coisa inútil de se fazer, para que essas experiências, esses tesouros de inteligência, de devoção e de sacrifício não sejam inúteis. Mas embora consideremos os resultados limitados, quando tantas vias foram exploradas, tantas interpretações teóricas tentadas, sem dúvida as circunstâncias pesaram muito. Eu digo as circunstâncias para não dizer as condições objetivas. Porque existe um vício na disjunção entre condições objetivas e possibilidades subjetivas. As duas estão evidentemente bem relacionadas. Se você dissociá-las, você cai em paradoxos que frequentemente tiveram consequências devastadoras para o movimento trotskista: se as condições objetivas são tão excelentes como alguns pensam, e se o movimento revolucionário não pôde triunfar sobre elas, então é porque as organizações, suas direções e seus militantes que falharam, ou que elas foram traídas por dentro. Essa paranóia não faz bem nenhum.


* Para o Blog MRI, essa tradução foi revisada pelo tradutor com base no original em francês, publicado no site de Daniel Bensaïd.

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