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“Lenin e o partido revolucionário”, de Paul Le Blanc (Michael Löwy)


“Lenin e o partido revolucionário”, de Paul Le Blanc

Michael Löwy

Tradução de Pedro Barbosa


Fonte: https://www.europe-solidaire.org/spip.php?article4283

Lenin and the Revolutionary Party, por Paul Le Blanc. Introdução de Ernest Mandel. Antlatic Highlands, New Jersey: Humanities Press, 1989, 364 p. $60.


Não faltam livros sobre Lenin, mas esta é a primeira tentativa de uma reconstrução histórica precisa de seu pensamento organizacional: a teoria do partido revolucionário, de suas origens até o resultado imediato da revolução de Outubro. Paul Le Blanc não tem somente um íntimo conhecimento dos escritos de Lenin, mas também um impressionante domínio da vasta literatura sobre seu tema. Uma das maiores qualidades desse potente livro é a sua abordagem histórica: as ideias políticas/organizacionais de Lenin não são tratadas como abstrações desencarnadas, mas são constantemente confrontadas com a realidade do movimento operário e do processo revolucionário, extraídas de uma grande quantidade de documentos, descrições biográficas e trabalhos de pesquisadores acadêmicos. O resultado é uma obra de rara força e coerência, inspirada não por uma neutralidade acadêmica, mas pela profunda convicção de que há muito para se aprender das verdadeiras ideias e experiências de Lenin e do partido revolucionário que ele liderou.

Recusando-se a considerar as visões organizacionais de Lenin como se elas fossem um esquema completo e autossuficiente, Le Blanc tenta compreender a continuidade subjacente em suas perspectivas de 1890 até 1917 e adiante, e as mudanças significativas que se deram em seu pensamento, advindo de um acúmulo de experiência. Criticando a tendência de restringir a concepção de partido de Lenin a seus escritos de 1902-1904 (particularmente o “Que fazer?”), ele descreve seis diferentes fases de desenvolvimento de 1900 a 1923:

1) 1900-1904. Lenin e outros marxistas lutam para estabelecer o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) ao redor do programa revolucionário e das concepções organizacionais centralizadas do jornal Iskra. Na divisão de 1903, a fração bolchevique de Lenin representa a orientação mais consistentemente centralista e intransigentemente revolucionária.


2) 1905-1906. O levante revolucionário de 1905 pega as duas frações de surpresa. O centralismo de Lenin é temperado por uma compreensão de que normas mais frouxas e mais democráticas podem ajudar a enraizar o POSDR em uma classe trabalhadora que está se radicalizando dramaticamente.


3) 1907-1912. A derrota da onda revolucionária e uma reação triunfante destroem a base de massas do POSDR na Rússia. Lenin conduz uma árdua luta contra os liquidacionistas (os mais moderados mencheviques) e os abstencionistas (Bogdanov e seus companheiros), terminando com a exclusão destes de sua fração e uma divisão organizacional com o menchevismo, constituindo os bolcheviques como um partido separado.

4) 1912-1914. O partido bolchevique supera os remanescentes não coesos do POSDR não-bolchevique.


5) 1914-1917. Confrontados com a erupção da Primeira Guerra Mundial, os bolcheviques e a minoria dos mencheviques internacionalistas se opõem veementemente ao esforço de guerra russo e são severamente reprimidos. A maioria pró-guerra dos mencheviques se torna capaz de assumir uma posição dominante no movimento operário.

6) 1917-1923. O tsarismo é derrubado por uma revolução espontânea. Na nova e volátil situação, os bolcheviques se tornam novamente a força mais poderosa e são capazes de liderar as massas para uma revolução socialista. Sob uma situação de guerra, guerra civil, bloqueios e invasões estrangeiras, os bolcheviques adotam medidas crescentemente restritivas, na Rússia como um todo e em seu próprio partido, enquanto esperam por um triunfo revolucionário no ocidente, que iria colocar um fim no isolamento desesperador de seu país empobrecido.

Os aspectos essenciais da teoria organizacional de Lenin emergem das várias experiências históricas, e têm de ser distinguidos dos aspectos particulares, que correspondiam a situações específicas. A função essencial do partido revolucionário é elevar o nível geral de consciência de classe e organizar a luta de classes do proletariado para o objetivo de conquista do poder político e de substituição da economia capitalista por uma economia socialista.


Reconhecendo a existência de tensões internas na tradição bolchevique, Le Blanc rejeita a visão comum, sustentada por anticomunistas e stalinistas, de que o leninismo é basicamente elitista e autoritário. Indo contra pesquisadores da guerra fria, ele se vale das importantes contribuições da pesquisa histórica recente (de jovens pesquisadores como David Mandel, Ronald Suny, Rex Wade) que mostram que a revolução de outubro, longe de ser um mero “golpe bolchevique”, foi a expressão de um movimento genuinamente popular.

O quanto mudou e o quanto se manteve permanente das visões de Lenin sobre o partido revolucionário do início do século até 1917? De acordo com Le Blanc, existe uma continuidade elementar nas concepções organizacionais de Lenin entre 1900, 1906, 1914 e 1917; aspectos autoritários aparecem somente após a tomada do poder, durante a guerra civil. Me parece, no entanto, que há muita verdade nas observações críticas de Rosa Luxemburgo e do jovem Leon Trótski contra o aspecto “substitucionista” das visões pré-1905 de Lenin. Por exemplo, Le Blanc considera que o argumento geral do “Que fazer?” “a despeito de exagerações para polêmica, permanece razoável e válido para períodos posteriores, incluindo o nosso” (p. 62-3). Eu diria que, apesar de alguns insights importantes, esse livro era basicamente unilateral (por sua ênfase no centralismo contra a democracia) e consequentemente perigoso para o futuro. Sendo um escrupuloso historiador, o próprio Le Blanc cita uma observação de Lenin em 1921, rejeitando a tradução deste texto para outras línguas não russas “para evitar aplicações equivocadas”. Ele também cita uma crítica feita por Trótski (em 1939) a respeito da “natureza enviesada, e consequentemente geradora de erros“, de uma das principais ideias do “Que fazer?”, de que a consciência socialista é trazida ao proletariado “de fora”.


Eu penso que existem algumas diferenças bem elementares entre os argumentos “burocráticos” de Lenin em 1902-1904 e as ideias verdadeiramente democráticas que ele desenvolveu durante a revolução de 1905, assim como entre o Lenin autoritário de 1908-1912 (que exigia “unanimidade” em sua fração, e que expulsou Bogdanov e seus camaradas) e o Lenin “libertário” de 1917, que escreveu O Estado e a revolução, uma extraordinária peça de semi-anarquismo. Em outras palavras: me parece que as “sérias ambiguidades e contradições”, que de acordo com Le Blanc surgiram somente durante os anos finais de Lenin (1918-1924) , têm suas raízes nos anos pré-1905 e pré 1917.

O capítulo de Le Blanc sobre os primeiros anos após a revolução de outubro (complementado por uma extraordinária discussão dos problemas envolvidos no processo de burocratização feita por Ernest Mandel na introdução) é um dos melhores no livro: mostra tanto os elementos significativos de pluralismo que estiveram presentes até 1921, como a transformação, ao longo dos anos, de “quantidade disciplinada em qualidade autoritária”. Mesmo rejeitando a sabedoria convencional dos pesquisadores da guerra fria, ele é bastante atencioso com “sensíveis e honestos observadores radicais” como Bertrand Russel e Alexander Berkinan, cujos escritos “permanecem talvez a mais substancial crítica do bolchevismo jamais escrita” (eu acrescentaria o panfleto de Rosa Luxemburgo de 1918, “A revolução russa”). Ele enfatiza, no entanto, que a burocratização não surgiu das ideias de Lenin de 1902, mas das dramáticas condições objetivas como a pobreza, o atraso, o isolamento, a guerra civil e a intervenção estrangeira. Isso é certamente verdade, mas me parece que oferecendo uma explicação exclusivamente objetiva, recai-se no perigo de certo fatalismo. O exemplo da Nicarágua revolucionária (analisada por Le Blanc em vários ensaios notáveis) parece, quaisquer sejam as suas limitações e contradições, indicar que democracia e pluralismo podem ser mantidos mesmo sob as mais severas condições de guerra civil e intervenção estrangeira. O processo de burocratização na URSS resultou, na minha opinião, tanto de circunstâncias objetivas trágicas quanto de certos fatores “subjetivos”: os componentes autoritários e substitucionistas da tradição bolchevique pré-1917, o “fetichismo organizacional” (ver a introdução de Mandel) dos líderes bolcheviques e, por último mas não menos importante, sua falta de consciência (até ser tarde demais) de que a plena democracia, tanto no partido quanto nas instituições soviéticas, era o único caminho para evitar a degeneração burocrática.


Em sua conclusão, Le Blanc apresenta um breve e convincente resumo da visão leninista: o partido de vanguarda como um determinado, com princípios, mas também aberto e em desenvolvimento, grupo de revolucionários, com uma variedade de indivíduos de espírito crítico que estão comprometidos a trabalhar juntos para um objetivo comum, através de um esforço coletivamente (democraticamente) direcionado. Tal entendimento do leninismo exclui qualquer “glorificação acrítica de Lenin e de suas ideias” (p. 360) e deve integrar os importantes insights desenvolvidos por críticas revolucionárias/socialistas do bolchevismo, de Rosa Luxemburgo até o nosso tempo. Dentre os críticos recentes, Le Blanc escolhe, por sua relevância em ter identificado problemas genuínos, os escritos da renomada feminista-socialista britânica Sheila Rowbotham. Severamente crítica do elitismo, da hierarquia e do burocratismo que ela atribui ao leninismo, Rowbotham procura por uma abordagem não autoritária para a organização socialista, baseada no “reconhecimento da criatividade na diversidade”; ela acredita, no entanto, que o leninismo é “uma apaixonante e complexa tradição cultural de teoria e prática revolucionárias na qual nós certamente devemos nos inspirar”.

O livro de Paul Le Blanc é uma poderosa e estimulante contribuição para o conhecimento e recuperação desta tradição cultural.


Do Monthly Review, janeiro de 1991.


Michael Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) de Paris, França, e autor de “O marxismo de Che Guevara” (Monthly Review Press, 1971) e “A política do desenvolvimento desigual e combinado” (Londres: Verso, 1981).


* Este texto foi publicado anteriormente em:


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