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Lênin e o partido: uma questão de atualidade (Julien Salingue e Ugo Palheta)



Lênin e o partido: uma questão de atualidade

Julien Salingue e Ugo Palheta

Tradução de Pedro Barbosa


Fonte: Revista L’Anticapitaliste n°120 (novembro 2020):


Mais de 100 anos após a revolução russa, retornamos a uma das maiores contribuições de Lênin: uma ruptura com toda visão linear da história – e da revolução – e suas consequências práticas/organizacionais. É, na verdade, desta ruptura que a concepção leninista de partido participa, historicamente situada, frequentemente caricaturizada, mas sempre esclarecedora, a fortiori quando é enriquecida pela leitura feita por Daniel Bensaïd.


O movimento operário do início do século XX, particularmente em suas franjas reformistas, frequentemente agiu como se o tempo político fosse homogêneo e uniforme, como se a evolução das sociedades – o “movimento”, para usar a frase de Bernstein – devesse tender natural e espontaneamente para o socialismo. Não uma revolução política, mas uma evolução sociológica; não um partido estrategista, mas um partido educador. Dada a experiência caótica do século XX, são raras as pessoas que ainda raciocinam desta maneira. Mas há outra maneira de não levar em consideração as mudanças na conjuntura, que consiste em substituir um otimismo evolucionista por um otimismo voluntarista: agir como se a ofensiva, pensada sob a forma de uma greve geral ou de uma insurreição, estivesse em cada momento na ordem do dia, como se as massas estivessem apenas esperando um partido verdadeiramente revolucionário para se colocar em movimento, se constituir como classe revolucionária e desencadear a insurreição.


Partido e estratégia revolucionária


A dimensão estratégica da atividade revolucionária se baseia nesta ideia aparentemente simples, enunciada por Ernesto Che Guevara: “O dever de todo revolucionário é fazer a revolução”. Em outros termos, o debate estratégico se baseia na convicção compartilhada de que a revolução não deriva de leis históricas que a tornam inevitável, mas de um projeto voluntário, e mais precisamente de um projeto de derrubada do poder político burguês.


Esta é uma das maiores contribuições de Lênin após 1914, que se emancipa progressivamente da concepção mecanicista de Kautsky, convencido do caráter necessário, não contingente, da revolução. Kautsky escreveu assim em 1909, em O caminho do poder, “que não depende de nós fazer uma revolução, nem de nossos adversários impedi-la”. Se esta fórmula enfatiza algo evidente – as dinâmicas próprias e os produtos da luta de classes não derivam apenas da vontade dos revolucionários –, ela tem o efeito de tender para a inação: a intervenção consciente dos militantes e das organizações revolucionárias seria inútil na preparação de uma revolução, visto que ela deve acontecer necessariamente. Os anos de 1914-1917 serão para Lênin a ocasião de um retorno crítico sobre as teses de Kautsky, até a ruptura, com a formulação de uma dupla problemática estratégica: se por um lado a emergência revolucionária não está subordinada à atividade do partido, por outro a intervenção direta deste último no coração da luta de classes pode desempenhar um papel decisivo no ritmo e na virada dos acontecimentos; esta intervenção deve levar em consideração a não-linearidade dos processos revolucionários, já descrita de forma notável em Que fazer?, escrito em 1902: “A revolução em si não pode ser representada sob a forma de um único ato: a revolução será uma sucessão rápida de explosões mais ou menos violentas, alternando com fases mais ou menos profundas de calmaria” [1].


Se o rumo estratégico – a derrubada do poder político burguês – permanecer idêntico, então não existe uma via predeterminada para alcançá-lo, nenhum esquema teórico previamente descoberto pela “ciência socialista” que se poderia se contentar com aplicar. No caminho que leva à abolição das estruturas de exploração e dominação, ergue-se assim uma multidão de obstáculos e de bifurcações, impasses e armadilhas, o que nos impede de pensar que o caminho mais curto para a revolução seja uma linha reta. Nunca abandonar essa linha mestra da estratégia revolucionária, que é o objetivo de destruição do Estado capitalista, não significa que isso esteja ao alcance da mão, em qualquer momento e em qualquer lugar, como explicou Daniel Bensaïd: “Não podemos destruir este Estado não importa quando e sob quaisquer condições. Se contentar com este imperativo, fora do tempo, seria simplesmente lançar as bases de um voluntarismo esquerdista: se a questão do poder estivesse colocada permanentemente, dependeria apenas da vontade política do partido passar da acumulação sindical ou parlamentar de forças para a acumulação militar; portanto de um gradualismo eleitoral para um gradualismo militar. Seria suficiente, de qualquer forma, declarar guerra ao Estado” [2].


Ao mesmo tempo, afirmar que os revolucionários têm responsabilidades particulares nos eventuais sucessos das revoluções, que sua intervenção é decisiva para aprofundar um processo revolucionário, é igualmente admitir que eles podem ter responsabilidades em seus fracassos, que erros de análise, falta de iniciativa ou, pelo contrário, decisões aventureiras, podem contar cem vezes mais em uma situação de ascenso revolucionário. Se não depende de organizações revolucionárias o desencadeamento de uma crise pré-revolucionária, e se elas só podem ser minoritárias no início de tal crise, seu papel não pode ser subestimado, paradoxalmente multiplicado por dez nas (raras) situações históricas em que os subalternos sacodem em massa o jugo que os oprime.


O partido não se confunde com a classe


O partido revolucionário, em sua acepção contemporânea, não é um dado, mas uma construção, uma forma histórica particular que nasceu do desenvolvimento da classe trabalhadora, de suas experiências de confronto com a burguesia e das consequências, práticas e organizacionais, extraídas pelos militantes e dirigentes operários. Daniel Bensaïd insiste assim no vai e vem permanente, em Marx e Engels, entre o projeto de partido no sentido estrito (o “partido efêmero”) e o partido no sentido amplo (o “partido histórico”), entre os reagrupamentos organizacionais pontuais, empiricamente observáveis, e o movimento histórico da classe trabalhadora na direção da sua emancipação, em outras palavras, o devir-comunista do proletariado. Ligada às experiências concretas de organização e luta da classe trabalhadora na Europa, desde as revoluções de 1848 até a derrota da Comuna de Paris, passando pela criação da Liga dos Comunistas e pela fundação da Primeira Internacional, este vai e vem traduz uma tensão no coração do Manifesto Comunista (que Marx e Engels escreveram precisamente para a Liga dos Comunistas, à qual eles se filiaram). Duas fórmulas célebres resumem esta tensão: “Os comunistas não formam um partido dinstinto, oposto aos outros partidos operários”; “Os comunistas são a fração mais resoluta dos partidos operários de todos os países, a fração que arrasta todos os outros”. Em outras palavras, o partido aparece em Marx e Engels como a mediação – o “operador estratégico” – que permite a resolução da aparente contradição entre duas necessidades: representar e conduzir o conjunto da classe, onde somente a mobilização sob a base de seus interesses imediatos pode transformar as relações de força sociais e políticas; defender uma orientação política baseada em uma análise profunda do funcionamento do sistema capitalista, do que somente uma minoria da classe pode desenvolver uma clara consciência fora de situações revolucionárias. Se por um lado se trata, portanto, de visar a construção de partidos concebidos como reagrupamentos pontuais, ajustados a uma conjuntura particular de crise política e que coloca na ordem do dia a tomada do poder, por outro a manutenção de uma organização permanente reagrupando os elementos mais conscientes da classe trabalhadora não é evidente para Marx e Engels: a decisão de dissolver a Primeira Internacional será uma das demonstrações mais marcantes disso.


É com Lenin que se realiza uma “revolução dentro da revolução” [3]. O dirigente revolucionário russo é de fato o primeiro a denunciar claramente a “confusão entre o partido e a classe”, e a defender o princípio de um partido revolucionário que afirma sua independência e, sobretudo, sua autonomia e capacidade de iniciativa política, para além das lutas econômicas por si sós. Esta é a contribuição fundamental de um Lênin evoluindo em uma sociedade no seio da qual a classe trabalhadora permanece extremamente minoritária: o partido, se não tem interesses distintos dos da classe trabalhadora, não pode se contentar em ser a câmara de eco das reivindicações do proletariado, e menos ainda dos trabalhadores de fábrica apenas. Deve poder, de maneira autônoma, tomar a iniciativa da luta política, ou seja, intervir no conjunto das lutas setoriais e das camadas sociais, colocar a questão do poder e, portanto, recusar-se a deixar a burguesia com as mãos livres no terreno propriamente político. Se o proletariado é a força motriz e decisiva da transformação social, devido à sua posição nas relações de produção, ele tem “algo a dizer” sobre questões que parecem lhe concernir diretamente, pois estas últimas podem participar da exacerbação das contradições entre as classes e precipitar a abertura de uma crise revolucionária: “[Lênin] compreende perfeitamente que as contradições econômicas e sociais se expressam politicamente, de forma transformada, "condensada e deslocada", e que o partido tem como tarefa decifrar na vida política, inclusive a partir dos ângulos mais inesperados, o modo como se manifestam as profundas contradições” [4].


O tempo político como tempo caótico


Daí a necessidade do partido de vanguarda, de uma organização que se coloque de maneira obstinada a questão da conquista do poder e da transformação revolucionária da sociedade, e não da única representação da classe trabalhadora e de seus interesses imediatos em tal ou qual conjuntura. Se isto supõe uma atenção constante ao fluxo e refluxo da consciência política dentro do proletariado, da evolução de seu nível de confiança de acordo com as lutas de classe (vitoriosas ou derrotadas, conduzidas ou sofridas), de sua heterogeneidade interna, um partido não pode se contentar em tomar iniciativas políticas somente em momentos de crise de regime: “A atividade essencial de nosso partido, o foco essencial de sua atividade, deve ser um trabalho possível e necessário tanto nos períodos mais violentos de explosão quanto naqueles de calmaria, isto é, um trabalho de agitação política unificada para toda a Rússia” [5]. Em outros termos, trata-se de propor – e de fornecer os meios – à classe trabalhadora para que se reagrupe no interior de uma estrutura permanente que se fixa como objetivo responder coletivamente às “questões que são as do conjunto da sociedade, ultrapassando a soma das reivindicações econômicas” [6], e intervir concretamente na luta política, contestando a pretensão das classes dominantes de representação do “interesse geral”.


Lênin insiste muito cedo, notadamente em relação à revolução de 1905 (cujas formas, em particular o aparecimento dos sovietes, tinham surpreendido os bolcheviques), na necessidade de um diálogo permanente entre o partido de vanguarda e a própria classe, mas também de uma análise constantemente atualizada de seu nível de consciência e de confiança, de suas formas de auto-organização e de suas lutas concretas, de suas vitórias e de suas derrotas. O partido não é, neste sentido, uma organização definida de uma vez por todas por seu avanço com relação à classe, em nome da “ciência” da qual seria o único depositário; está em constante relação com ela, capaz de ajustar suas análises, suas reivindicações e sua tática, em função das experiências da classe trabalhadora, mas sem nunca se dissolver dentro desta última e renunciar a seu papel específico.


O tempo político não é o tempo – linear – do acúmulo paciente de forças em vista de um confronto final com um Estado gradualmente reduzido a uma cidadela sitiada, mas o tempo – caótico – do equilíbrio móvel de forças, de acelerações bruscas e desacelerações repentinas, da tomada de iniciativa no momento propício. Ninguém enfatizou melhor do que Daniel Bensaïd essa conquista da política de Lênin, ou seja, o papel estratégico incontornável que a crise revolucionária desempenha para qualquer política de emancipação. É somente neste tipo de situação, ao mesmo tempo “crise política da dominação” e “crise do conjunto das relações sociais” [7], que uma política feita por e para os de baixo pode plenamente se inventar e se expressar: uma “política do oprimido” [8]. A ruptura repentina dos laços de obediência, que em tempos normais levam à dependência de profissionais do poder, favorece um alargamento brutal do campo dos possíveis e a criação de novos laços e modos de organização, capazes de quebrar os mecanismos bem lubrificados que asseguram ordinariamente a reprodução das relações de dominação e exploração.


Da centralidade da crise revolucionária, concebida ao mesmo tempo como emergência e processo, e definida por Lênin como a situação em que os de cima "não podem mais" (liderar como antes) e os de baixo “não querem mais” (ser liderados) [9], decorre a necessidade de uma organização capaz de tomar decisões táticas ousadas e de formular um projeto estratégico que faça a ligação entre as aspirações imediatas à mudança e as transformações radicais necessárias para o advento de uma sociedade livre de relações de exploração e opressão. Para isso, é necessário dispor de uma bússola comum, que supõe ao mesmo tempo a capacidade coletiva de extrair as lições dos movimentos de emancipação e das situações revolucionárias do passado, mas também que milhares de militantes tenham feito a experiência concreta, conjuntamente, da luta e das decisões que ela impõe. É neste sentido que durante um processo revolucionário a ausência de uma organização experiente e enraizada, capaz de compreender o significado possível dos acontecimentos, de aprofundar e orientar numa direção revolucionária as dinâmicas de auto-organização e de politização, pode custar caro, permitindo às classes dominantes, uma vez passada a tempestade, controlar o jogo político e frear a combatividade manifestada pelas classes populares.


Acabar com os partidos?


Entre as organizações tradicionais, são sem dúvida os partidos que estão passando pela crise mais profunda e pelo mais brutal desinteresse, daí a ideia de uma “crise da forma-partido”. Esta expressão permanece imprecisa e provavelmente obscurece mais do que ilumina, mas pelo menos tem o mérito de tentar nomear o problema. Em todo caso, é certo que a era dos partidos de massa do movimento operário organizando uma franja significativa do proletariado – sejam eles de tradição social-democrata ou comunista – parece não só distante, mas quase inconcebível para aqueles que não a conheceram. Esta rejeição é acompanhada pela tentação, entre os militantes organizados em partidos, de pensar que as classes populares – e mais amplamente a população – seriam ipso facto despolitizadas por causa de sua retirada das organizações políticas. Além da arrogância de impor uma definição restrita do que é político e do que não é, esta ideia envolve um postulado incômodo, e altamente questionável, segundo o qual o principal, se não o único, vetor de politização seriam os partidos políticos. E isto é não compreender a necessidade de uma discussão propriamente política, no sentido nobre do termo, que caracteriza toda uma parte do proletariado, especialmente nos bairros populares.


No entanto, uma política sem partidos tem fortes chances de permanecer para muitos uma “antipolítica”, reduzida a uma recusa principista de “entrar no jogo” e que impede disputar o terreno político com os partidos tradicionais, ou pior, “uma política de fusão sem mediações” [10] , em outras palavras, uma relação de delegação, e portanto de despossessão, entre indivíduos isolados e “personalidades políticas” livres de qualquer coletivo partidário, mas fortemente dependentes dos poderes estabelecidos (do Capital ou dos Estados). A crise dos partidos de esquerda – que de forma alguma significa seu desaparecimento – deixa assim um vácuo, especialmente do lado dos subalternos, um vácuo que nenhum movimento “espontâneo” pôde e soube preencher de forma duradoura.


Que os partidos são geralmente desprezados e rejeitados é uma coisa que se pode compreender sem dificuldade, especialmente quando se observa os partidos institucionais, que moldam a representação das organizações políticas para a maioria da população. Mas não se pode deduzir disso, nem mesmo da história das organizações políticas no século XX, que qualquer partido, independentemente de sua orientação política, de sua organização interna e de seu grau de integração ao Estado, está condenado a ser um areópago de oportunistas, a desempenhar um papel politicamente conservador ou a experimentar uma deriva burocrática. Na verdade, o partido aparece tão problemático quanto necessário para qualquer projeto político que leve a sério as situações de crise revolucionária. Problemático porque seu sucesso inevitavelmente o submete aos “perigos profissionais do poder” destacados desde o final dos anos 20 pelo revolucionário bolchevique Christian Rakovsky [11]. Necessário pelas funções que (só) um partido pode realmente realizar: partido-educador, formando politicamente seus membros por um trabalho contínuo de transmissão teórica e histórica, assim como pela experiência militante; partido-intelectual, capaz de produzir uma compreensão comum do mundo social e elaborar coletivamente uma estratégia para transformá-lo; partido-experimentador, capaz de tomar decisões ousadas, mesmo quando outras organizações se recusam a fazê-lo; partido-catalisador, visando superar a dispersão da esquerda e dos movimentos graças a iniciativas que permitirão o surgimento de novas sínteses militantes e políticas; partido-estrategista, capaz de desempenhar um papel decisivo em situações de crise política e de bifurcação histórica, se aproveitando da experiência passada dos movimentos de emancipação.


Notas

1. V. I. Lénine, Que Faire?, V°, c), (1902).

2. Daniel Bensaïd, Stratégie et parti, pp. 69-70 (édition de 2016 aux Prairies ordinaires).

3. Idem, p. 36.

4. Idem, p. 157.

5. V. I. Lénine, Que Faire?, V°, c), op. cit.

6. Daniel Bensaïd, Stratégie et parti, op. cit, pp. 158-159.

7. Daniel Bensaïd, Lénine ou la politique du temps brisé, Critique communiste, automne 1997, n°150, http://danielbensaid.org/Lenine-ou-la-politique-du-temps

8. Daniel Bensaïd, Pour une politique de l’opprimé, 1997, http://danielbensaid.org/Pour-une-politique-de-l-opprime

9. V. I. Lénine, La Maladie infantile du communisme, 9, (1920).

10. Daniel Bensaïd, Un communisme hypothétique, 2009, http://danielbensaid.org/Un-communisme-hypothetique

11. Kristian Rakovsky, Les dangers professionnels du pouvoir, lettre du 06/08/1928, https://www.marxists.org/francais/rakovsky/works/kr28dang.htm

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