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Heroísmo da razão (Michael Löwy)


Heroísmo da razão

(19 de janeiro, 2020)

Michael Löwy

Tradução de Vinicius Souza

Revisão de Pedro Barbosa



Livio Maitan, Memoirs of a critical communist. Towards a History of the Fourth International, Preface by Daniel Bensaïd, translated by Gregor Benton, edited with and introduction by Penelope Duggan, Resistance Books, IIRE, Merlin Press, 2019, 455 pages


Em seu belo prefácio a este livro, Daniel Bensaïd descreveu Livio Maitan como "um dos últimos moicanos" de uma geração que teve que lutar em duas frentes, contra a ditadura imperial do capital e contra o não menos temível despotismo burocrático stalinista. Ele foi um daqueles que precisavam de um "heroísmo da razão", uma vontade indomável, para resistir à irracionalidade da época. Seu livro é um relato de testemunha da Quarta Internacional e "a transmissão de um legado": o marxismo revolucionário.


Felizmente, a Quarta Internacional (QI) não tem "história oficial". O trabalho de Maitan é valioso justamente porque é um testemunho pessoal, e o autor não hesita em expressar, sobre várias questões, seus pontos de vista pessoais – que nem sempre coincidem com as resoluções oficiais – e sua opinião sobre o papel das diferentes personalidades atuantes do movimento. [1]


As Memórias começam com Livio (o nome com o qual nós, seus amigos o chamávamos) contando como, ainda um jovem socialista, ele ingressou na Quarta Internacional em 1948, depois de discutir com Ernest Mandel, e termina com o 14º Congresso Mundial da QI em 1995 e a morte de Ernest Mandel. [2] Como uma das lideranças do movimento desde o início da década de 1950 até a sua morte, ele discute as principais atividades da QI, os congressos e os debates, sempre no contexto dos principais eventos históricos, desde a guerra da Coréia até a queda do muro de Berlim. Como descrito por Livio, esses processos aparecem como uma história de divisões e reunificações (seguidas de novas divisões), avanços e recuos, ideias brilhantes e discussões bizantinas, lutas heroicas e erros graves. Mas, no geral, pelo menos para a maioria de seus membros, nunca deixou de ser um combate permanente pela emancipação internacional dos trabalhadores. Como neste artigo é impossível discutir todos os congressos da QI e as ações de suas seções, trataremos aqui apenas de alguns momentos dessa complexa história.


Se o Segundo Congresso da QI em 1948 foi um passo positivo para refundar o movimento, os anos 50 foram anos de divisões e rompimentos: um grande passo para trás. Livio reconhece que a divisão internacional de 1953 foi "desastrosa" para a QI: "continuamos a pagar por ela até o início dos anos 1970". Embora sua análise crítica dos motivos de J.P. Cannon e do SWP americano em 1953 seja bastante convincente, sua abordagem geral sobre a divisão me parece insuficientemente crítica da liderança da QI, particularmente das visões políticas de Pablo (panfleto The Coming World Showdown, 1951) e seu comportamento autoritário em relação a visões minoritárias. Particularmente surpreendente é o seu quase silêncio sobre a crise da seção francesa: a tentativa de Pablo de impor, em nome da "disciplina internacional", uma linha de entrada no Partido Comunista Francês contra a vontade da maioria dos trotskistas franceses, o que levou ao rompimento da seção francesa com a QI. Livio apenas menciona, em termos bastante enigmáticos, que a conexão estabelecida por Pablo e a liderança da QI entre a perspectiva de guerra em curto prazo e o entrismo teve consequências negativas: a QI teve que pagar por isso um alto preço em termos organizacionais “por exemplo no caso francês”. Para uma discussão mais profunda desse trágico episódio, a melhor referência é o livro de Michel Lequenne, Le trotskysme sans fard (2005). [3]


O julgamento de Michel Raptis (Pablo) e Sal Santen em Amsterdã em 1960, acusado de forjar documentos de identidade para combatentes anticoloniais argelinos, provocou uma onda de solidariedade sem precedentes: J.P. Sartre, Simone de Beauvoir, Isaac Deutscher, Maurice Nadeau, Pierre Naville, Claude Bourdet, Laurent Schwarz e Michel Leiris apoiaram os líderes da QI e pediram sua libertação. Nunca antes a QI alcançou tal grau de notoriedade.


Logo depois, a QI e o SWP americano começaram a encontrar um terreno comum, ambos apoiando a Revolução Cubana, que havia tomado um rumo em 1960 em direção a um caminho socialista. Isso levou ao Congresso da Unificação, em 1963, no qual a maioria da QI uniu suas forças com o SWP (agora sob a liderança de Joseph Hansen) e várias outras organizações. Mas isso foi seguido por outras divisões: Posadas (uma figura que sofre, segundo Livio, de "auto-exaltação patológica" e seus seguidores na América Latina e, mais tarde, o próprio Michel Pablo, que fundou a Aliança Revolucionária Marxista. Alguns seguidores de Posadas, como o brilhante historiador argentino-mexicano Adolfo Gilly, mais tarde retornaram à QI, e Raptis, em seus últimos anos, tinha a mesma intenção.


Um tipo diferente de divisão ocorreu em 1964, quando a LSSP, seção da QI no Ceilão, e um dos maiores partidos do movimento trotskista, ingressou no governo burguês do sr. Bandaranaike; quando a liderança da QI criticou esse movimento, eles romperam com a QI. Alguns anos depois (1971), esse governo, que ainda incluía os líderes do LSSP, matou milhares de jovens insurgentes guevaristas do movimento JVP.


É claro que maio de 1968 foi o ponto alto da QI no século XX. Pela primeira vez desde suas origens, observa Livio, a Quarta Internacional conseguiu sair de seu relativo isolamento. E também pela primeira vez, uma de suas organizações, a JCR (Juventude Comunista Revolucionária), teve um impacto real em eventos revolucionários em um país imperialista (França). Nos anos seguintes, o movimento alcançou um crescimento sem precedentes, na Europa Ocidental e nos EUA.


Livio tinha um grande interesse na América Latina e fez várias "missões" para a QI no continente. Em uma viagem à Bolívia em 1964, ele descreve uma visita aos mineiros trotskistas de Catavi: “Quase fiquei comovido ao ver, na casa de um camarada, entre seus poucos livros, uma antologia de Hegel”: mesmo entre os trabalhadores superexplorados da Bolívia, foi possível encontrar “herdeiros da filosofia clássica alemã!”. Esse comentário nos diz muito sobre Livio como uma pessoa de cultura e sensibilidade humana.


Confesso que não concordo com as críticas de meu amigo Daniel Bensaïd à discussão de Livio sobre a América Latina: "Os comentários sobre as controvérsias sobre a luta armada na América Latina podem parecer incompletos e parciais para muitos de nós". Pelo contrário, acho essas páginas entre as mais animadas e interessantes das Memórias. O rascunho de Livio sobre a luta armada, apresentado no 9º Congresso Mundial, provocou, como ele escreve, um "momento de maior tensão e interesse apaixonado" entre os delegados da América Latina e os demais. [4] Ele reconhece que priorizar a guerrilha rural foi um erro, mas explica que essas foram as opiniões de nossas principais organizações no continente, na Bolívia e na Argentina. Há algumas páginas muito comoventes sobre Roberto Santucho, o principal líder do PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores), a seção argentina da QI até 1973, simultaneamente criticando suas opiniões erradas – a ilusão de que, ao sair da QI, ele iria obter armas dos “camaradas soviéticos” – e prestando homenagem a um revolucionário intransigente que deu a vida pela causa.


Devo agora comentar um capítulo decepcionante na história da QI: o mal-entendido da natureza do regime de Pol Pot no Camboja, que cometeu um genocídio em seu próprio povo. Quando o Vietnã invadiu o Camboja (1978), a QI pediu "negociações para resolver os problemas entre os dois países". Como Livio reconhece, “nossa primeira reação foi minimizar a repressão (no Cambodgia ML)... Parecia difícil aceitar a cifra de 3 milhões de mortes”. A minoria (SWP) apoiou a operação vietnamita para derrubar Pol Pot, enquanto Mandel se opôs. Os argumentos empregados por ambos os lados eram (na humilde opinião deste comentador) bizantinos: Mandel acreditava que Pol Pot visava a "destruição da propriedade privada", enquanto Clark, do SWP, argumentava que o Khmer vermelho pretendia preservar o sistema capitalista... discussão puramente economicista, enquanto ocorria um genocídio em nome do “socialismo”. Livio reconheceu que “o Khmer Vermelho realizou um dos piores massacres do século XX”, mas suas críticas à posição da QI naquela época são muito tímidas…


Fazendo um balanço de quatro décadas desde a fundação da QI, Livio levanta a difícil pergunta: por que nosso movimento falhou em desempenhar um papel de liderança em qualquer lugar? Entre as razões: as cisões destrutivas, o papel negativo de líderes autoritários, centralistas e até mesmo “bonapartistas” (a lista de nomes é muito longa), atitudes propagandistas e voluntaristas e, para alguns, uma abordagem dogmática, exclusivamente baseada na experiência russa de 1917 e em citações de Leon Trotsky. Mas o principal fator era objetivo: a força de atração da URSS, China e Cuba. O castrismo tinha um poder de atração especial para a esquerda radical, e isso levou à última divisão, quando o SWP (sob a liderança de Jack Barnes) rompeu com a QI (em 1990), desistiu do trotskismo e adotou acriticamente a linha do governo cubano.


Durante todos esses anos, Ernest Mandel desempenhou um papel decisivo, em termos intelectuais e políticos, na história da QI. Livio tinha uma grande admiração por ele, enquanto criticava seu voluntarismo e excessivo otimismo. Ele foi o principal autor de dois documentos-chave da QI: “Dinâmicas da Revolução Mundial Hoje” (1963), sobre as interconexões dialéticas entre as revoluções proletária, colonial e política e “Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado” (1979), uma declaração inovadora, que encontrou oposição feroz de algumas figuras "ortodoxas". [5]


O primeiro e único momento em que Livio considerou renunciar às suas funções de direção na QI foi em 1978, quando uma figura de má reputação, Fausto Amador, nicaraguense (anti-FSLN) foi admitido, sob forte pressão da minoria do SWP, na QI. Um ano depois, o SWP mudou completamente sua política e deu total apoio ao governo da FSLN na Nicarágua. [6]


A narrativa de Livio termina com o 14º Congresso da FI (1995), onde ele sentiu "um forte ar de desencanto", baseado na "percepção de nosso enfraquecimento". Poucos meses depois, Ernest Mandel morreu e Livio fez a última saudação no funeral que se deu no cemitério Père Lachaise. Problemas de saúde o impediram de continuar suas memórias.


Em sua introdução à edição em inglês, Penelope Duggan, um membro importante da liderança da QI hoje, descreve brevemente os eventos após 1995 e os seguintes congressos da QI, onde um número crescente de países esteve representado. A história da QI continua e sua presença no mundo é agora maior do que no passado. Como os jovens rebeldes cantavam em maio de 68, "“ce n’est qu’un début, continuons le combat !” (este é apenas o começo, continuemos a luta!).



Notas

[1] Nos estágios iniciais de escrita, Livio discutiu o plano geral do livro comigo. Fiz algumas sugestões modestas que ele levou em consideração.

[2] O Livro é sobre sua experiência como dirigente da Quarta Internacional. Infelizmente nada é dito sobre seus compromissos políticos antes de 1947.

[3] Lequenne deixou a QI com a maioria francesa, mas logo entrou em conflito com Pierre Lambert, cuja orientação ele considerava profundamente negativa. Ele se tornou um marxista independente e alguns anos depois retornou a QI.

[4] Livio nota que dentre os delegados da América Latina existia um delegado do Partido Operário Comunista (POC) (cujo nome não é mencionado no livro), que estava em processo de entrada na QI. este delegado era o autor da presente resenha [Michael Löwy]… O POC, depois do assassinato em 1971, sob tortura, de um de seus jovens líderes, Luiz Eduardo Merlino, praticamente desapareceu.

[5] Nahuel Moreno publicou, sob o excêntrico pseudônimo de “Darioush Karim”, um panfleto violento contra Mandel, com o título A Ditadura Revolucionária do Proletariado (1979): em uma espécie de caricatura do comunismo da guerra civil na URSS, ele alegava que a democracia só era admissível “para o proletariado industrial e os trabalhadores revolucionários”.

[6] Em 1978 eu fui enviado pela QI para a Costa Rica, onde Fausto Amador vivia, para investigar o caso dele. Ele fingia criticar a FSLN por uma perspectiva “trotskista”. Mas apenas alguns anos antes ele havia aceitado um cargo menor na embaixada (Somozista!) em Bruxelas. Eu perguntei por que ele aceitou tal posição vergonhosa, e sua resposta foi: não por razões políticas, apenas porque era o único jeito do meu pai (um amigo de Somoza) me mandar um carro na Bélgica sem pagar impostos… no meu relatório eu aconselhei fortemente que não admitissem Amador na QI. Livio considerava sua admissão “uma página sombria na história do nosso movimento”.

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