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“O golpe de martelo da revolução”: a crítica da democracia burguesa em Rosa Luxemburgo (M. Löwy)

Atualizado: 6 de mar. de 2021



“O golpe de martelo da revolução”: a crítica da democracia burguesa em Rosa Luxemburgo


Michael Löwy [1]


Tradução de Patrícia Rocha Lemos [2] e Sabrina Areco [3]




Apresentação das tradutoras


Este texto foi apresentado originalmente como intervenção de Michael Löwy na conferência organizada pela Société internationale Rosa Luxemburg realizada em 2013 na cidade de Paris. Foi publicado, em setembro de 2016, na revista Agone 59 – Révolution et démocratie. Actualité de Rosa Luxemburg [Revolução e democracia. Atualidade de Rosa Luxemburgo], sob o título de “Le coup de marteau de la révolution”: La critique de la démocratie bourgeoise chez Rosa Luxemburg. A publicação do número especial da revista e o evento dedicado à Rosa inserem-se no conjunto de atividades vinculadas ao trabalho, ainda em andamento, de publicação de suas obras completas na França pelas edições Agone e o coletivo Smolny.


A tradução e a apresentação deste artigo aos Cadernos Cemarx foram motivadas pelo significativo movimento de difusão das obras de Rosa Luxemburgo nos últimos anos no Brasil e pelo crescente debate em torno de suas ideias. O autor Michael Löwy é conhecido do público marxista e seu texto chega a nós em momento bastante pertinente em que a questão da democracia está no centro do debate político do país.


Gostaríamos de agradecer imensamente a Michael Löwy, por autorizar a publicação traduzida de seu texto. Esclarecemos que as palavras destacadas em negrito ou itálico foram reproduzidas exatamente como o original enviado pelo autor. Aos livros citados no original adicionamos a referência da edição brasileira para aquelas que encontramos traduzidas. As notas da tradução foram identificadas como N. T.


Esperamos que as reflexões aqui postas possam contribuir para revisitarmos as ideias de Rosa tanto como um corpo teórico, por muito tempo secundarizado pelos estudiosos marxistas, como também enquanto estímulo para repensar os limites e possibilidades da democracia burguesa e os caminhos necessários para a transformação da nossa sociedade.



***


É conhecida a defesa da democracia socialista e a crítica aos bolcheviques apresentada na brochura de Rosa Luxemburgo (RL) sobre a Revolução Russa (1918) [4]. Algo que é menos conhecido, e até frequentemente esquecido, é sua crítica à democracia burguesa, seus limites, suas contradições e seu caráter estreito e mesquinho. Nós tentaremos neste artigo seguir esse argumento crítico em alguns dos escritos políticos da autora, sem nenhuma pretensão de exauri-lo.


Para essa discussão partiremos de Reforma ou Revolução? (1898), um dos textos fundadores do socialismo revolucionário moderno e onde essa problemática foi abordada de maneira mais aprofundada.


Esse brilhante ensaio, obra de uma jovem quase desconhecida à época, é uma síntese única entre a paixão revolucionária e a racionalidade discursiva. Repleto de lampejos irônicos e de intuições fulgurantes, ele permanece, mais de um século depois, com uma surpreendente atualidade. Contudo, tal texto não está isento de problemas, especialmente em sua polêmica econômica com Bernstein, na qual se percebe um tipo de fatalismo otimista: a crença na inevitabilidade do colapso (Zusammenbruch) econômico do capitalismo. A propósito, essa é uma ideia que encontramos ainda em nossos dias entre muitos marxistas que anunciam a atual crise financeira do capitalismo como “a derradeira”, significando o declínio definitivo do sistema. Parece-me que Walter Benjamin, que conheceu a Grande Crise de 1929 e suas consequências, formulou a conclusão mais pertinente sobre esse terreno: “A experiência de nossa geração: o capitalismo não morrerá de morte natural” [5].


Entretanto, um dos pontos fortes do argumento de RL está na discussão sobre a democracia, que ela dissocia do otimismo fácil da “religião do progresso democrático”. Com isso, recusa a ilusão de uma democratização crescente das sociedades “civilizadas”, dominante em sua época tanto entre os liberais como entre os socialistas. Além disso, em sua análise crítica da democracia burguesa não encontramos qualquer traço de economicismo. Manifesta-se nesse ponto, com toda a sua força, aquilo que Lukács designava em seu ensaio sobre “Rosa Luxemburgo como Marxista”, em História e Consciência de Classe (1923) [6], como o princípio revolucionário no terreno do método: a categoria dialética da totalidade. A questão da democracia é abordada por RL sob o ângulo da totalidade histórica em movimento, na qual a economia, a sociedade, a luta de classes, o Estado, a política e a ideologia são momentos inseparáveis do processo concreto.


Dialética do Estado burguês


A abordagem eminentemente dialética do Estado burguês e de suas formas democráticas permite a RL escapar tanto das abordagens social-liberais (Bernstein!) que negam seu caráter burguês, como de certo marxismo vulgar que não leva em conta a importância da democracia. Fiel à teoria marxista do Estado, Rosa Luxemburgo insiste sobre o caráter do Estado enquanto “Estado de classe”. Mas ela acrescenta em seguida: “é necessário levar essa afirmação não em um sentido absoluto e rígido, mas em um sentido dialético”. O que isso quer dizer? Por um lado, significa que o Estado assume “sem dúvida, funções de interesse geral no sentido do desenvolvimento social”; mas ao mesmo tempo ele não o faz senão “na medida em que o interesse geral e o desenvolvimento social coincidem com os interesses da classe dominante”. A universalidade do Estado é, portanto, severamente limitada e, em larga medida, negada por seu caráter de classe [7].


Outro aspecto dessa dialética é a contradição entre a forma democrática e o conteúdo de classe: “as instituições que são formalmente democráticas, em seu conteúdo não são mais do que instrumentos dos interesses da classe dominante”. Mas ela não se limita a essa constatação, que é um locus clássico do marxismo. Ela não só não despreza a forma democrática como entende que essa forma pode entrar em contradição com o conteúdo burguês: “Temos provas concretas disso: uma vez que a democracia tem a tendência a negar seu caráter de classe e a se transformar em instrumento dos verdadeiros interesses do povo, as próprias formas democráticas são sacrificadas pela burguesia e por sua representação estatal” [8]. A história do século XX é atravessada do começo ao fim por exemplos desse tipo de “sacrifício” – desde a Guerra Civil na Espanha ao golpe de Estado de 1973 no Chile – o que não são exceções, mas antes a regra. Rosa Luxemburgo havia previsto desde 1898, com uma acuidade impressionante, aquilo que iria acontecer ao longo do século seguinte. Contra a visão idílica da história como “Progresso” ininterrupto, como evolução necessária da humanidade para a democracia e, sobretudo, contra o mito de uma ligação intrínseca entre capitalismo e democracia, e a opõe uma análise sóbria e sem ilusões acerca da diversidade dos regimes políticos:


"O desenvolvimento ininterrupto da democracia que o revisionismo, a exemplo do liberalismo burguês, considera como a lei fundamental da história humana, ou ao menos da história moderna, quando examinado de perto, revela-se como uma miragem. Não é possível estabelecer um nexo absoluto e universal entre o desenvolvimento do capitalismo e a democracia. O regime político é sempre resultado de um conjunto de fatores políticos tanto internos como externos; e dentro desses limites permite diferentes gradações, desde a monarquia absoluta até a República democrática." [9]


O que ela não poderia prever, certamente, era o surgimento de formas estatais autoritárias ainda piores que as monarquias: os regimes fascistas e as ditaduras militares que se desenvolveram nos países capitalistas, tanto no centro como na periferia, ao longo de todo o século XX. Mas ela tem o mérito de ter sido uma das raras pensadoras do movimento operário e socialista a desconfiar da ideologia do Progresso (com um “P” maiúsculo), comum aos liberais burgueses e a uma boa parte da esquerda, e a colocar em evidência a perfeita compatibilidade entre o capitalismo e as formas políticas radicalmente antidemocráticas.


Bernstein, partidário convicto da ideologia do Progresso, acreditava em uma evolução irreversível das sociedades modernas para uma maior democracia e, porque não, para o socialismo. A isso, RL observa que “o Estado, isto é, a organização política e as relações de propriedade – a organização jurídica do capitalismo –, tornam-se cada vez mais capitalistas e não socialistas” [10]. Pode-se afirmar, uma vez mais, que a oposição entre esquerda e direita na socialdemocracia corresponde ao antagonismo entre a fé no Progresso inelutável dos países “civilizados” e a aposta na revolução social.


Para Rosa, não apenas não existe afinidade particular entre a burguesia e a democracia, como frequentemente é em luta contra essa classe que os avanços democráticos acontecem: “Na Bélgica, a conquista democrática do movimento operário – o sufrágio universal – é um efeito da fraqueza do militarismo e consequentemente da condição político-geográfica particular da Bélgica e, sobretudo, esse ‘pedaço de democracia’ não foi alcançado pela luta da burguesia, mas contra a burguesia” [11].


Esse seria o caso particular da Bélgica ou, antes, uma tendência histórica geral? Rosa Luxemburgo parece se inclinar para a segunda hipótese ao considerar que a única garantia da democracia é a força do movimento operário:


"O movimento operário socialista é hoje o único suporte da democracia, não existe outro. Não é o futuro do movimento socialista que está ligado ao da democracia burguesa, mas ao contrário, é o destino da democracia que está relacionado ao do movimento socialista. O que se constata é que a democracia não depende da renúncia da luta da classe operária por sua emancipação, mas sim que o movimento socialista torne-se forte para combater as consequências reacionárias da política mundial e da traição da burguesia. Qualquer um que apoie o fortalecimento da democracia deve sustentar igualmente o fortalecimento e não o enfraquecimento do movimento socialista; renunciar à luta pelo socialismo é renunciar ao mesmo tempo ao movimento operário e à democracia." [12]


Em outros termos: a democracia é, aos olhos de Rosa Luxemburgo, um valor essencial que o movimento socialista deve preservar frente a adversários reacionários, dentre os quais se encontra a burguesia, sempre pronta a trair suas proclamações democráticas se os seus interesses assim o exigirem. Nós apontamos anteriormente alguns exemplos dessa constatação. O que quer dizer, então, a referência às “consequências reacionárias da política mundial”? Trata-se sem dúvida de uma referência às guerras imperialistas e/ou coloniais, que não deixaram de reduzir ou suprimir os avanços democráticos dos países em conflito. Nós retornaremos a essa problemática adiante.


A surpreendente afirmação segundo a qual o destino da democracia está ligado ao do movimento operário e socialista foi confirmada pela história nas décadas seguintes: a derrota da esquerda socialista – em razão de suas divisões, seus erros ou de suas fraquezas – na Itália, na Alemanha, na Áustria, na Espanha, conduziu ao triunfo do fascismo, com o apoio das principais forças da burguesia, e à abolição de toda forma de democracia durante longos anos (na Espanha, durante décadas).


A relação entre o movimento operário e a democracia é eminentemente dialética. A democracia tem necessidade do movimento socialista e, ao mesmo tempo, a luta do proletariado tem necessidade da democracia para se desenvolver:


"A democracia pode ser atualmente inútil ou mesmo incômoda para a burguesia; mas para a classe operária ela é necessária e mesmo indispensável. É necessária, porque ela cria formas políticas (autoadministração, direito ao voto) que servem ao proletário de trampolim e apoio em sua luta para a transformação revolucionária da sociedade burguesa. Mas ela é também indispensável porque é apenas lutando pela democracia e exercendo seus direitos que o proletariado ganha consciência de seus interesses de classe e de suas tarefas históricas." [13]


A formulação de Rosa Luxemburgo é complexa. Em um primeiro momento, ela parece afirmar que é graças à democracia que a classe operária pode lutar para transformar a sociedade. Isso quer dizer que nos países não democráticos essa luta não é possível? Ao contrário, insiste a revolucionária polonesa, é na luta pela democracia que a consciência de classe se desenvolve. Ela referia-se, sem dúvida, a países como a Rússia czarista – incluindo a Polônia – onde a democracia não existia ainda e a consciência revolucionária despertava precisamente no combate democrático. É o que nós veremos, poucos anos mais tarde, durante a revolução russa de 1905. Mas ela pensa também, provavelmente, na Alemanha guilhermina, onde a luta por democracia estava longe de ser completa e encontrou no movimento socialista seu principal sujeito histórico. Em todo caso, longe de desprezar as “formas democráticas”, Rosa as distingue da instrumentalização e manipulação burguesas, associando o destino de tais formas diretamente àquele do movimento operário.


Então, quais são as formas democráticas fundamentais? Em 1898 ela menciona especialmente três: o sufrágio universal, a república democrática e a autoadministração. Mais tarde, ao tratar da Revolução Russa em 1918, ela adicionará as liberdades democráticas: de expressão, de imprensa, de organização. E sobre o Parlamento? RL não recusa a representação democrática enquanto tal, mas é cautelosa sobre o parlamentarismo em sua forma atual: ela o considera como “um instrumento específico do Estado de classe burguês, um meio de amadurecer e desenvolver as contradições capitalistas” [14]. Ela voltará a esse debate alguns anos mais tarde, em seus artigos polêmicos contra Jaurès e os socialistas franceses, nos quais ela os acusa de pretenderem chegar ao socialismo através do “pântano pacífico […] de um parlamentarismo senil”. A degradação dessa instituição revela-se em sua submissão ao poder executivo: “A ideia, em si mesma racional, de que o governo não deve deixar de ser instrumento de representação popular da maioria, foi transformada em seu contrário pela prática do parlamentarismo burguês, a saber: a dependência servil da representação popular para a sobrevivência do presente governo”. Ela saúda, nesse contexto, os socialistas revolucionários franceses que compreenderam que a ação legislativa no parlamento – útil para arrebatar certas leis favoráveis aos trabalhadores – não pode substituir a organização do proletariado para a conquista, por meios revolucionários, do poder político [15].


Nós encontramos argumentos análogos em um ensaio de 1904 sobre “A social democracia e o parlamentarismo”. Com a ironia mordaz que torna eletrizantes suas polêmicas, ela coloca em debate o “cretinismo parlamentar”, ou seja, a ilusão segundo a qual o parlamento é o eixo central da vida social e a força motriz da história universal. A realidade é completamente outra: as forças gigantescas da história mundial agem fora das câmaras legislativas burguesas. Longe de ser o produto absoluto do Progresso democrático, o parlamentarismo é uma forma histórica determinada da dominação de classe da burguesia. Ao mesmo tempo, em um movimento dialético (RL faz referência a Hegel), com a ascensão do movimento socialista, o Parlamento pode tornar-se “um dos instrumentos mais poderosos e indispensáveis da luta de classe” operária como tribuna das massas populares e um lugar de agitação para o programa da revolução socialista. Mas não poderemos defender eficazmente a democracia e o próprio Parlamento contra as ameaças reacionárias senão pela ação extraparlamentar do proletariado, “nas ruas” – por exemplo, sob a forma de greve geral. Esta é a melhor defesa diante das ameaças que pesam sobre o sufrágio universal. Em suma, o desafio para os socialistas é convencer “as massas laboriosas a contar cada vez mais com suas próprias forças e com sua ação autônoma e não mais considerar as lutas parlamentares como o eixo central da vida política” [16]. Nós retornaremos a isso.


As contradições da democracia burguesa: militarismo e colonialismo


As democracias burguesas “realmente existentes” caracterizam-se por duas dimensões profundamente antidemocráticas e estreitamente vinculadas: o militarismo e o colonialismo. No primeiro caso, trata-se de uma instituição, o Exército, hierárquico, autoritário e reacionário, que constitui um tipo de Estado absolutista no seio do Estado democrático. No segundo, trata-se de uma imposição, pela força das armas, de uma ditadura aos povos colonizados pelos Impérios ocidentais. Como lembra Rosa Luxemburgo, em Reforma ou Revolução?, o caráter de classe obriga o Estado burguês, mesmo democrático, a acentuar cada vez mais sua atividade coercitiva naqueles domínios que não servem senão ao interesse da burguesia: “a saber, o militarismo e a política alfandegária e colonial” [17].


A denúncia dessa “atividade coercitiva”, militarista e imperialista, será um dos principais eixos da crítica de RL ao Estado burguês.


Do ponto de vista capitalista,


"o militarismo tornou-se atualmente indispensável por três razões:1°, ele serve para defender os interesses nacionais em concorrência com outros grupos nacionais; 2°, ele constitui um domínio de investimento privilegiado tanto para o capital financeiro como para o capital industrial; e 3°, ele é útil internamente para assegurar sua dominação de classe sobre o povo trabalhador [...]. Dois traços particulares caracterizam o militarismo atual: seu desenvolvimento geral e concorrente em todos os países e que é, por assim dizer, impulsionado por uma força motriz interna e autônoma – fenômeno não verificado há poucas décadas; e o caráter fatal, inevitável, de uma explosão iminente, ainda que ignoremos a ocasião na qual ela se desencadeará, os Estado que serão concernidos, o objeto do conflito e todas as demais circunstâncias." [18]


Como se vê, Rosa Luxemburgo havia previsto em 1898 uma guerra mundial suscitada pela concorrência entre potências capitalistas nacionais e pela dinâmica incontrolável do militarismo. Essa é uma das intuições fulgurantes que atravessam o texto Reforma ou Revolução? ainda que ela não tenha previsto “as circunstâncias” do conflito.


O militarismo no interior e a expansão colonial no exterior são estreitamente ligados e conduzem ao declínio, à degradação, à degenerescência da democracia burguesa:


"em razão do desenvolvimento da economia mundial e do agravamento e generalização da concorrência no mercado mundial, o militarismo e as forças navais, instrumentos da política mundial, tornaram-se fatores decisivos da vida interna e externa dos grandes Estados. No entanto, se a política mundial e o militarismo representam uma tendência ascendente da fase atual do capitalismo, a democracia burguesa deve logicamente entrar em uma fase descendente. Na Alemanha, a era dos grandes armamentos, que data de 1893, e a política mundial inaugurada pela tomada de Kiautschou, tiveram como compensação dois sacrifícios pagos pela democracia burguesa: a decomposição do liberalismo e a passagem do Partido do Centro da oposição ao governo." [19]


Nós assistimos, no decorrer do século XX, a outros “sacrifícios” da democracia exigidos pelo militarismo – tanto na Europa (Espanha, Grécia) como na América Latina – ainda mais graves e dramáticos do que os exemplos citados aqui. No entanto, a análise de RL é mais ampla: ela se dá conta de que o peso crescente do Exército na vida política das democracias burguesas resulta não apenas da concorrência imperialista, como também de um fator interno às sociedades burguesas: o crescimento das lutas operárias. Em um artigo antimilitarista de 1914 ela evidencia duas tendências profundas que reforçam a preponderância política das instituições militares nos Estados burgueses:


"Essas duas tendências são, de um lado, o imperialismo, que leva a um crescimento massivo do Exército, ao culto da violência militar selvagem e a uma atitude dominadora e arbitrária do militarismo diante da legislação; de outro lado, o movimento operário que conhece um desenvolvimento igualmente massivo, acentuando os antagonismos de classe e provocando a intervenção cada vez mais frequente do Exército contra o proletariado em luta." [20]


Essa “violência militar selvagem” se exerce, no âmbito das políticas imperialistas, principalmente sobre os povos colonizados, submetidos a uma brutal opressão que não tem nada de “democrática”. A democracia burguesa produz, em sua política colonial, formas de dominação autocráticas e ditatoriais. A questão do colonialismo é evocada, mas pouco desenvolvida em Reforma ou Revolução? Porém, pouco depois, em um artigo de 1902 sobre a Martinica, RL irá denunciar os massacres do colonialismo francês em Madagascar, as guerras de conquista dos EUA nas Filipinas, ou da Inglaterra na África e, por fim, as agressões contra os chineses cometidas em acordo por Franceses e Ingleses, Russos e Alemães, Italianos e Americanos [21].


Em diversas ocasiões ela tratará dos crimes do colonialismo, em particular em A acumulação do capital (1913) [22]. Retomando a linha implacável de crítica da política colonial, no capítulo sobre a acumulação primitiva no Volume I do Capital, ela observa que não se trata de um movimento “inicial” e sim de uma tendência permanente do capital: “Aqui não se trata mais de uma acumulação primitiva, o processo continua até os nossos dias. Cada expansão colonial é necessariamente acompanhada dessa guerra obstinada do capital contra as condições sociais e econômicas dos nativos, assim como da pilhagem violenta de seus meios de produção e de sua força de trabalho” [23]. Isso resulta na ocupação militar permanente das colônias e na repressão brutal de suas sublevações, cujos exemplos clássicos são o colonialismo britânico na Índia e o francês na Argélia. Na verdade, a acumulação primitiva permanente persiste ainda nos dias de hoje, no século XXI, com métodos distintos do colonialismo clássico, mas não menos ferozes. Rosa Luxemburgo menciona também, em A acumulação do capital, o cenário que poderíamos chamar de colonialismo interno da maior democracia burguesa moderna, os Estados Unidos: com a ajuda da estrada de ferro, na ocasião da grande conquista do Oeste, foram expulsos ou exterminados índios com armas de fogo, álcool e sífilis, em seguida confinando os sobreviventes como bestas selvagens, em “reservas” [24]. Esse é mais um exemplo trágico das contradições da democracia burguesa.


Democracia e conquista do poder: o golpe de martelo da revolução


Retornemos ao texto de Reforma ou Revolução? para examinar agora a problemática acerca da relação entre democracia e conquista do poder. Bernstein e seus amigos “revisionistas” acreditavam na possibilidade de mudar a sociedade através das reformas graduais no âmbito das instituições da democracia burguesa, notadamente o parlamento, onde a social-democracia poderia um dia tornar-se majoritária. Por razões que nós já mencionamos acima, RL não pode senão rejeitar essa estratégia: “Marx e Engels não colocaram jamais em dúvida a necessidade da conquista do poder político pelo proletariado. Foi Bernstein que considerou o pântano ruidoso do parlamentarismo burguês como instrumento para a mudança social mais formidável da história, a saber, a transformação das estruturas capitalistas em estruturas socialistas” [25]. Essa conquista revolucionária do poder será democrática não porque ela se realizará no âmbito das instituições da democracia burguesa, mas porque ela será a ação coletiva da grande maioria popular: “Aqui reside a principal diferença entre os golpes blanquistas de uma ‘minoria decidida’ disparados sempre de maneira intempestiva e, por isso, sempre em momento inoportuno e a conquista do poder de Estado pela grande massa popular consciente” [26].


Prosseguindo em sua polêmica, RL ironiza a abordagem reformista de Bernstein e avança um argumento capital para justificar a necessidade de uma ação revolucionária:


"Fourier teve a fantástica ideia de transformar, graças ao sistema de falanstérios, toda a água dos mares do globo em limonada. Mas a ideia de Bernstein de transformar o mar amargo do capitalismo em água doce do socialismo, vertendo progressivamente garrafas de limonada reformistas, é talvez mais trivial, mas não menos fantástica. As relações de produção da sociedade capitalista aproximam-se cada vez mais das relações de produção da sociedade socialista. Inversamente, as relações políticas e jurídicas erguem entre a sociedade capitalista e a socialista um muro cada vez mais alto. As reformas sociais e a democracia não derrubarão esse muro, mas ao contrário, o fortalecem e consolidam. O que poderá derrubá-lo é apenas a martelada da revolução, isto é, a conquista do poder político pelo proletariado." [27]


A imagem de uma “martelada” faz-nos imediatamente pensar na afirmação de Marx, em seus escritos sobre a Comuna de Paris (1871), sobre a necessidade do proletariado revolucionário “quebrar” o aparelho do Estado capitalista. A ideia é essencialmente idêntica, ainda que RL não cite esses textos de Marx. Esse “golpe de martelo” é ainda mais indispensável se consideramos o papel crescente do militarismo e do Exército no sistema político. Em que ele consiste concretamente? Por quais meios pode se realizar essa conquista do poder? Qual a estratégia ou tática que propõe Rosa Luxemburgo? Esse não é um tema desenvolvido em Reforma ou Revolução?, mas aqui e ali ela deixa entender que os métodos revolucionários “clássicos” – a insurreição, as barricadas – não estão excluídos. Não somente os revisionistas, mas a direção do Partido socialdemocrata alemão, referiam-se com insistência ao Prefácio redigido por Friedrich Engels em 1895 para a reedição do trabalho de Marx, A luta de classes na França (1850). Neste texto o velho dirigente parece considerar que esses métodos clássicos de luta tornaram-se obsoletos pelo progresso da arte militar – os canhões e os fuzis modernos – que teria dado uma vantagem estratégica ao Exército.


Na realidade, o texto de Engels era bem menos categórico. A versão publicada foi consideravelmente “amenizada” pela direção do Partido, fato que Rosa Luxemburgo ignorava. Na realidade, Engels ficou indignado com essa manipulação. Em uma carta de 01 abril de 1895 ele escrevia: “para meu espanto, eu vejo hoje no Vorwärts um extrato de minha introdução reproduzida sem meu conhecimento, e modificada de tal forma que eu apareço como um pacífico adorador da legalidade a qualquer custo. Assim, eu desejaria particularmente que a introdução fosse publicada sem corte na Neue Zeit para que essa impressão vergonhosa seja apagada”. Friedrich Engels morreu alguns meses mais tarde. O texto integral não foi jamais publicado na Neue Zeit, nem evidentemente, na reedição do livro de Marx. Foi preciso esperar a Revolução de Outubro para que ele fosse finalmente publicado nos anos de 1920 [28]. Aqui a resposta de RL ao argumento “legalista”:


"Se Engels em seu Prefácio à Lutas de classe em França revisava a tática do movimento operário moderno, opondo às barricadas a luta legal, ele não tinha em vista – e cada linha desse prefácio o demonstra – o problema da conquista definitiva do poder político, mas da luta cotidiana atual. Ele não analisava a atitude do proletariado diante do Estado capitalista no momento da tomada do poder, mas sua atitude no quadro do Estado capitalista. Em uma palavra, Engels dava diretivas ao proletariado oprimido e não ao proletariado vitorioso." [29]


Na verdade, sua interpretação é bem discutível… Não há, em Engels, funções atribuídas às barricadas na “luta cotidiana atual”! O que é interessante nessa passagem é a atitude da autora de Reforma ou Revolução? diante da questão dos métodos da luta “armada”, “insurrecional”, “ilegal” – métodos tradicionais das revoluções, de 1789 a 1871 – que ela recusa excluir do arsenal político do proletariado. Ela não estava equivocada, uma vez que todos os grandes combates revolucionários do século XX, vitoriosos ou vencidos – as duas Revoluções russas (1905, 1917), a Revolução Mexicana (1910-1919), a Revolução Alemã (1918-19), a Revolução Espanhola (1936-37), e a Revolução Cubana (1959-1961), para citar alguns exemplos – fizeram uso desses métodos “ilegais” e “extraparlamentares”.


Mas o método revolucionário ao qual deu primazia, como sabemos, é a greve de massas, essa “forma natural e espontânea de toda grande ação revolucionária do proletariado”. Na verdade, trata-se de um movimento para o qual converge uma grande variedade de iniciativas de luta: greves econômicas e políticas, greves de demonstração ou de combate, greves de massa e greves parciais, lutas reivindicativas pacíficas ou batalhas de rua, combates de barricadas – “um oceano de fenômenos, eternamente novos e flutuantes”. Certamente, a greve de massas “não substitui e nem torna supérfluos os enfrentamentos diretos e brutais nas ruas”, no entanto, a experiência russa de 1905 mostra que “o combate de barricadas, o enfrentamento direto com as forças armadas do Estado, não constituem na revolução atual senão o seu ponto culminante, uma fase do processo da luta de massa proletária” [30]. O confronto não é eliminado, mas situado no “ponto culminante” da luta, o que lhe dá evidentemente um papel importante.


RL retornará ao texto de Engels em sua versão amenizada pela direção do SPD – a única conhecida na época e que claramente a incomoda – em seu discurso no Congresso de fundação do KPD (Spartakusbund) em dezembro de 1918. Nessa ocasião ela não argumenta, como em 1898, que a Introdução de 1895 trata da «luta cotidiana atual»: “Com todo o conhecimento de especialistas, então disponível no domínio da ciência militar, Engels nos demonstra aqui […] que é perfeitamente fútil crer que o povo trabalhador possa fazer revoluções de rua e se sair vitorioso”. Ele estava enganado e esse documento serviu, observa ela, para reduzir a atividade do Partido exclusivamente ao terreno parlamentar. Sem excluir uma “utilização revolucionária da Assembleia nacional” como tribuna, ela enxerga como caminho a seguir a tomada do poder pelos conselhos de operários e de soldados, como na Rússia em outubro de 1917 [31].


Rosa Luxemburgo não oferece receitas. Ela aposta na inventividade do movimento revolucionário e se limita a observar que “a democracia é indispensável, não porque ela torna inútil a conquista do poder político pelo proletariado, mas, ao contrário, porque ela torna necessária e ao mesmo tempo possível essa tomada do poder”. No entanto, esse processo exige uma ruptura institucional, um processo radical de subversão, capaz de quebrar o muro jurídico e político do Estado capitalista: a “martelada” da revolução.


Democracia socialista e democracia burguesa (1918)


Nós não discutiremos aqui a questão da democracia no socialismo, o que escapa à nossa temática. O que nos interessa aqui é o que escreve RL, em seu texto sobre a revolução russa, a respeito do tema da democracia burguesa. É importante sublinhar que no manuscrito de 1918 a crítica fraternal dos erros dos bolcheviques sobre o terreno da democracia não significa de nenhuma maneira a adesão de RL à democracia burguesa. Ela diz explicitamente: a tarefa histórica do proletariado é “criar no lugar da democracia burguesa uma democracia socialista”. Vejamos mais de perto esse seu argumento em polêmica com Trotsky:


"‘Como marxistas, nós não fomos jamais idólatras da democracia formal’, escreve Trotsky. Certamente, nós não fomos jamais idólatras da democracia formal. Mas do socialismo e do marxismo também não, nós não fomos jamais idólatras. Segue-se por isso que nós temos o direito, à maneira de Cunow-Lensch-Parvus, de rejeitar o socialismo ou o marxismo quando eles nos incomodam? Trotsky e Lenin são a negação viva dessa questão. Nós não fomos jamais idólatras da democracia formal e isso quer dizer exatamente isso: que nós distinguimos sempre o núcleo social da forma política da democracia burguesa. Nós desmascaramos sempre o núcleo duro da desigualdade e da servidão social que se escondem sobre o doce invólucro da igualdade e da liberdade formal. Isso não para rejeitá-las, mas para incitar a classe operária a não se contentar com esse invólucro e, ao contrário, a buscar a conquista do poder político para preenchê-lo de um conteúdo social novo. A tarefa histórica que se incumbe ao proletariado, uma vez ao poder, é criar no lugar da democracia burguesa a democracia socialista, e não suprimir toda democracia." [32]


Rosa Luxemburgo retoma aqui a distinção “clássica”, já formulada em Reforma ou Revolução?, entre a forma democrática, a igualdade e a liberdade formais, e o conteúdo burguês, desigual e que destrói a liberdade. Mas aqui ela afirma claramente a solução: nem democracia burguesa, nem ditadura de uma elite revolucionária, mas uma democracia socialista com um novo conteúdo social.


Rosa Luxemburgo havia previsto, já em 1914 “a intervenção do exército contra o proletariado em luta”. Como sabemos, em janeiro de 1919, RL, Leo Jogiches, Karl Liebknecht e outros espartaquistas foram assassinados, vítimas dessa “violência militar selvagem” que ela havia denunciado. Isso ocorreu em uma respeitável democracia (burguesa) constitucional. O que Rosa Luxemburgo não havia previsto, mesmo em seus piores pesadelos, é que esses assassinatos políticos cometidos por militares contrarrevolucionários ocorreriam sob a égide de um governo dirigido pelo SPD, o Partido Social-Democrata Alemão…



Notas

[1] LÖWY, Michael. “Le coup de marteau de la révolution”. La critique de la démocratie bourgeoise chez Rosa Luxemburg. Revue Agone, Marseille, n° 59, pp 31-48, 2016. [2] Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: pat.csrp@gmail.com. [3] Doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: sabrinaareco@gmail.com. [4] N. T.: No Brasil, publicado em: LUXEMBURGO, Rosa, “A Revolução Russa” em: LOUREIRO, Isabel (org.), Rosa Luxemburgo – textos escolhidos, vol. II (1914-1919), São Paulo, Editora UNESP, 2011. [5] BENJAMIN, Walter. Paris, capitale du XIX siècle. Le Livre des Passages. Paris: Ed. Du Cerf, 2000, p. 681. [6] LUKÁCS, Georg (1923). Histoire et Conscience de Classe. Paris: Ed. de Minuit, 1960, p. 48. [7] LUXEMBURG, Rosa (1898). Réforme ou Révolution?. Paris: Ed. Maspero, 1978a, trad. Irène Petit, p. 39. [8] LUXEMBURG, 1978a, p. 43. [9] Ibid., pp. 67-68. [10] LUXEMBURG, 1978a, p. 43. [11] Ibid., p. 67. [12] Ibid., p.70. [13] LUXEMBURG, 1978a, p. 73. [14] LUXEMBURG, 1978a, p. 43. [15] LUXEMBURG, Rosa. Le socialisme en France (1898-1912). Paris: Belfond, 1971, p. 196-228. Apresentação de Daniel Guérin. [16] LUXEMBURG, Rosa (1904). Social-démocratie et parlementarisme. In: L’État bourgeois et la Révolution. Paris: Petite collection La Brèche, 1978b, pp. 25, 29, 34-36. [17] LUXEMBURG, 1978a, p. 42. [18] Ibid., p. 41. [19] Ibid., p. 69. [20] LUXEMBURG, Rosa. Le revers de la médaille (abril 1914). In: LUXEMBURG, 1978b, p. 41. [21] LUXEMBURG, Rosa. Martinique (1902). In: Gesammelte Werke 1/2. Berlin: Dietz Verlag,1970 pp. 250-251. [22] N. T: Edição brasileira: LUXEMBURG Rosa. A acumulação do capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1984. [23] LUXEMBURG, Rosa. Die Akkumulation des Kapitals (1913). In: Gesammelte Werke 5. Berlin: Dietz Verlag, 1990, pp. 318-319. [24] Ibid., pp. 344, 350. [25] LUXEMBURG, 1978a, p. 77. [26] Ibid., p. 78. [27] Ibid., 1978a, p. 44. [28] Sobre esse tema, ver a advertência de Emile Bottigelli em Karl Marx, Les luttes de classes en France 1848-1850. Paris: Editions Sociales, 1948, pp. 9-20. [29] LUXEMBURG, 1978a, pp. 75-76. [30] LUXEMBURG, Rosa. Grève de masses, parti et syndicat (1906). In: OEuvres I. Paris: Ed. Maspero, 1976, trad. Irène Petit, pp. 127-128, 154. [31] LUXEMBURG, Rosa. Notre programme et la situation politique (1918). In: LUXEMBURG, 1976, pp. 106-108. [32] LUXEMBURG, Rosa. La Révolution russe (1918). In: Œuvres II (Écrits politiques 1917- 1918). Paris: Maspero, 1971.

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