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Frente única e hegemonia (Daniel Bensaïd)

Atualizado: 21 de jan. de 2021


Frente única e hegemonia

Daniel Bensaïd

Tradução de Roberto F

Revisão de Pedro Barbosa


Plano

1. Nas origens da questão

2. A hegemonia é solúvel no caldo pós-moderno?

3. Metamorfoses políticas dos atores sociais

4. Hegemonia e movimentos sociais

5. Pluralidade do social ou sociedade em fragmentos


Publicamos abaixo o resumo de uma contribuição apresentada por Daniel Bensaïd no quadro do “ciclo estratégia”, na universidade de verão da LCR [Liga Comunista Revolucionária francesa] que ocorreu em Port Leucate de 24 a 29 de agosto de 2007.


Durante a década de 1970, o conceito de hegemonia serviu de pretexto teórico ao abandono sem uma discussão séria da ditadura do proletariado pela maior parte dos partidos “eurocomunistas”. Como então lembrava Perry Anderson, ele não eliminava, em Gramsci, no entanto, a necessária ruptura revolucionária e a transformação da defensiva estratégica (ou guerra de posição) em ofensiva estratégica (ou guerra de movimento) [1].


Nas origens da questão


Ele aparece nas reflexões de Marx sobre as revoluções de 1848. Ledru-Rollin e Raspail eram, para ele, “os nomes próprios [representantes], o primeiro da pequena burguesia democrática e o segundo do proletariado revolucionário”. Diante da coalizão burguesa, os partidos revolucionários da pequena burguesia e do campesinato devem “se aliar ao proletariado revolucionário” para formar um bloco hegemônico: “Tendo perdido as esperanças na restauração napoleônica, o camponês francês abandona a fé em seu pedaço de terra e todo o edifício de Estado erigido sobre tal pedaço desmorona e a revolução proletária recebe o coro sem o qual o seu canto solo se transforma em lamento fúnebre em todas as nações camponesas” [2]. Esta oposição do “coro” vitorioso com o “solo” fúnebre retorna em 1871. A Comuna é então definida como “a representação verdadeira de todos os elementos saudáveis da sociedade francesa” e “a revolução comunal” representa “todas as classes da sociedade que não vivem do trabalho de outrem”.


Desde o fim do século XIX, os revolucionários russos utilizam o termo hegemonia para caracterizar o papel dirigente do proletariado em uma aliança operária e camponesa contra a autocracia e na condução da revolução democrática burguesa. Desde 1848, Parvus assim previa a necessidade do proletariado “estabelecer sua hegemonia moral”, e não somente um poder majoritário sobre as populações urbanas heterogêneas. É por isso que, segundo Lênin, os social-democratas “devem ir a todas as classes da população”, porque a consciência da classe trabalhadora não saberá ser realmente política “se os trabalhadores não estiverem habituados a reagir contra qualquer abuso, qualquer manifestação de arbitrariedade, de opressão e de violência, quaisquer que sejam as classes que forem vítimas delas”. “Qualquer um que atraia a atenção, o espírito de observação e a consciência da classe trabalhadora exclusivamente, ou mesmo principalmente, sobre ela mesma não é um social-democrata, porque, para se compreender bem, a classe trabalhadora deve ter um conhecimento preciso das relações recíprocas de todas as classes da sociedade contemporânea”. Este Lênin está muito mais próximo da atitude de Jaurès diante do caso Dreyfuss do que da de um Guesde, defensor de um “socialismo puro”.


Se o termo hegemonia não aparece durante a controvérsia entre Jaurès e Guesde sobre as implicações do Caso Dreyfus, sua lógica não deixa de estar presente [3]: “Há momentos, diz Jaurès, em que é de interesse do proletariado evitar uma degradação moral e intelectual demasiado violenta da própria burguesia […]. E isto porque, em tal batalha, o proletariado cumpre sua tarefa em relação a si mesmo, em relação à civilização e à humanidade, que ele se torna o tutor das liberdades burguesas que a própria burguesia era incapaz de defender”. Ele tinha razão, mas Guesde não estava de todo errado em sua advertência contra as derivas e as possíveis consequências da participação em um governo dominado pela burguesia. Para Jaurès, a medida em que crescia a força do partido, crescia também a sua responsabilidade. Chegaria o momento de “tomar assento nos governos da burguesia para controlar o mecanismo da sociedade burguesa e para colaborar o quanto fosse possível em trabalhos de reforma” que são “um trabalho iniciador [commençante] da revolução”. Para Guesde, ao contrário, um socialista em um governo burguês nunca é mais do que um refém. A ironia da história quis que Guesde, o intransigente, terminasse sua carreira como ministro de um governo de União nacional e patriótica, e que Jaurès fosse assassinado como um provável obstáculo a tal União.


É Gramsci que alarga a questão da frente única ao fixar como seu objetivo a conquista da hegemonia política e cultural no processo de construção de uma nação moderna: “O Príncipe moderno deve e não pode ser outra coisa que não o defensor [champion] e o organizador de uma reforma intelectual e moral; o que significa criar o terreno para um desenvolvimento superior da vontade coletiva nacional-popular, em direção à realização de uma forma superior e total de civilização” [4]. Esta abordagem se inscreve em uma perspectiva onde se trata de passar da guerra de movimento característica da luta revolucionária no “Oriente” a uma guerra de posição [*] “somente possível” no Ocidente: “Este me parece ser o significado da fórmula de frente única, mas Ilych [Lênin] não teve tempo para aprofundar sua fórmula” [5]. Essa compreensão alargada da noção de hegemonia permite precisar a ideia segundo a qual uma situação revolucionária é irredutível ao confronto corporativo entre duas classes antagônicas. Ela põe em jogo a resolução de uma crise generalizada de relações recíprocas entre todos os componentes da sociedade em uma perspectiva que concerne ao futuro da nação como um todo. Batalhando para fazer do Iskra “um jornal para toda a Rússia”, Lênin não estava somente advogando em favor de um “organizador coletivo eficiente”, ele também opunha, ao localismo corporativo dos homens de comitê [comitards], um projeto revolucionário à escala de todo o país.


Depois do fracasso da revolução alemã de 1923 e com o refluxo da onda revolucionária do pós-guerra, não se tratava de, apesar disso, proclamar a situação constantemente revolucionária e defender [prôner] a ofensiva em permanência, mas de empreender uma luta prolongada pela hegemonia por meio da conquista da maioria das classes exploradas e oprimidas em um movimento operário europeu profunda e prolongadamente dividido, política e sindicalmente. A tática da “frente única operária”, visando mobilizar em unidade, respondia a esse objetivo. A discussão programática sobre um corpo de “reivindicações transitórias”, partindo das preocupações cotidianas até colocar a questão do poder político, era o corolário. Esse debate, que foi objeto de um embate polêmico entre Thalheimer e Bukharin durante o V Congresso da Internacional Comunista (IC), foi em seguida relegado ao segundo plano, e depois desapareceu da ordem do dia, no curso dos sucessivos expurgos na União Soviética e na Internacional Comunista.


Ao opor à ditadura do proletariado uma noção de “hegemonia” reduzida a uma simples expansão da democracia parlamentar ou a uma longa marcha pelas instituições, os eurocomunistas adocicaram [édulcoraient] o alcance dos “Cadernos do Cárcere”. Alargando o campo do pensamento estratégico, acima e abaixo da prova de forças revolucionária, Gramsci articulou a ditadura do proletariado à problemática da hegemonia. Nas sociedades “ocidentais”, a tomada do poder é inconcebível sem uma conquista prévia da hegemonia, isto é, sem a afirmação de um papel dominante/dirigente dentro de um novo bloco histórico capaz de defender não somente os interesses corporativos de uma classe particular, mas de fornecer uma resposta de conjunto a uma crise global das relações sociais. A revolução não é mais somente uma revolução social, mas também e indissociavelmente uma “reforma intelectual e moral”, destinada a forjar uma vontade coletiva ao mesmo tempo nacional e popular [6]. Esta perspectiva exige que seja examinada novamente a noção de “desaparecimento do Estado” [dépérissement de l’État – fenecimento do Estado], visto que o momento revolucionário não desemboca na sua rápida extinção, mas na constituição de um novo Estado político e ético, oposto ao velho Estado corporativo.


A noção de hegemonia implica então, para Gramsci:

– a articulação de um bloco histórico em torno de uma classe dirigente, e não a simples adição indiferenciada de descontentamentos categoriais;

– a formulação de um projeto político capaz de resolver uma crise histórica da nação e do conjunto das relações sociais.


Estas são as duas ideias que tendem a desaparecer hoje de certos usos pouco rigorosos da noção de hegemonia.


A hegemonia é solúvel no caldo pós-moderno?


No final da década de 1970, o recurso confuso à noção de hegemonia pretendia não somente responder às condições contemporâneas da transformação revolucionária, mas também tapar o vazio escancarado deixado pela liquidação sem exame da ditadura do proletariado [7]. O marxismo ortodoxo, de Estado ou de Partido, parecia então à beira de se exaurir [à bout de souffle]. A questão reapareceu nos anos 90, em um contexto diferente. Para abrir uma brecha no horizonte chumbado [plombé] do liberalismo triunfante, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, infletindo a interpretação, o conceberam como uma cadeia de atores sem um vínculo forte, ou como uma coalizão de sujeitos sociais que se recusavam a se subordinar a uma contradição considerada principal.


A hegemonia exclusiva de uma classe no interior de uma composição de alianças mais ou menos táticas e variáveis seria dali em diante substituída pelas “cadeias de equivalência”: “Nós sustentamos que as lutas contra o sexismo, o racismo, as discriminações e os estragos ecológicos devem ser articuladas àquelas dos trabalhadores para fundar um novo projeto hegemônico de esquerda”. A dificuldade reside nas modalidades de tal articulação. Bourdieu respondeu a isso com uma “homologia” postulada entre diferentes campos sociais. Mas se se renuncia a toda estruturação do conjunto dos campos por uma lógica impessoal – a do capital neste caso – a articulação ou a homologia não depende mais do que de um decreto de uma vanguarda ou de um voluntarismo ético. Este é o centro da controvérsia entre Zizek e Laclau. O último prevê uma primeira estratégia que conservaria a categoria de classe, esforçando-se para conciliá-la com a multiplicação das identidades representadas pelos novos movimentos sociais, e a inscrevendo em uma cadeia enumerativa (movimentos de raça, de gênero, de etnia, etc… “sem se esquecer do bom e velho movimento dos trabalhadores”!). O conceito marxista de classe, no entanto, dificilmente se integra a esta cadeia enumerativa, na medida em que, ao se resignar a ser o simples elo de uma cadeia, o proletariado perderia o seu papel privilegiado. Uma estratégia alternativa buscaria dilatar a noção de classe trabalhadora até correr o risco de dissolvê-la no magma de uma classe que ganha salário sem distinções [salariat sans rivages] ou do povo como um todo, fazendo-a perder assim, de uma outra maneira, sua função estratégica.


Os “novos movimentos sociais” colocariam então à dura prova uma definição do socialismo baseada na centralidade da classe trabalhadora e da Revolução maiúscula. Slavoj Zizek responde que a proliferação das subjetividades políticas, que parece relegar a luta de classes a um papel de segundo plano, não é mais do que o resultado da luta de classes no contexto concreto do capitalismo globalizado: “Eu não aceito que os diferentes elementos que intervém na luta pela hegemonia sejam em princípio equivalentes. Sempre haverá um que, ainda que seja parte interessada [partie prenante] da cadeia, sobredetermina. Esta contaminação do universal pelo particular é mais forte que a luta pela hegemonia: ela estrutura de antemão o terreno mesmo sobre o qual uma multidão de conteúdos particulares luta pela hegemonia” [8]. Em outras palavras, a luta de classes não é solúvel no caleidoscópio dos pertencimentos identitários ou comunitários, e a hegemonia não é solúvel em um inventário das equivalências ao estilo de [Jacques] Prévert.


Metamorfoses políticas de atores sociais


Relatando uma entrevista na qual Stálin justificava diante de um jornalista americano o partido único em uma sociedade onde os limites entre as classes estão supostamente em vias de serem eliminados, [Trótski] exclama em “A revolução traída”: “Como se as classes fossem homogêneas! Como se suas fronteiras estivessem delimitadas de uma vez por todas! Como se a consciência de uma classe correspondesse exatamente ao seu lugar na sociedade! O pensamento marxista, assim, não é mais do que uma caricatura. Na verdade, as classes são heterogêneas, dilaceradas por antagonismos internos, e só chegam a seus fins comuns pela luta de tendências, grupos e partidos. [Pode-se conceber, com algumas reservas, que ‘um partido é parte de uma classe’. Mas como uma classe está composta de várias camadas – algumas olham para frente e outras para trás –, uma mesma classe pode formar vários partidos. Pela mesma razão, um partido pode se apoiar sobre camadas de diversas classes. Não se encontrará em toda história política um só partido representante de uma classe única, a menos que se consinta em tomar por realidade uma ficção policial [policière]” [9]. Ele se envolvia assim em uma nova via. Se a classe é suscetível de ter uma pluralidade de representações políticas, é porque isto é do jogo entre o político e o social.


Os teóricos da II Internacional haviam constatado que a “fragmentação econômica impede a realização da unidade de classe e torna necessária a sua recomposição política”, mas se lamentavam por esta recomposição ser “incapaz de estabelecer o caráter de classe dos atores sociais”. O conceito de hegemonia intervém para esconjurar esse vazio. Em ruptura com as ilusões de um progresso mecânico e de uma temporalidade histórica de sentido único, ele exige que se leve em consideração a incerteza histórica. Só se pode, diz Gramsci, prever a luta, não seu resultado [10].


A distância [écart] mantida entre social e político permite, ao contrário, pensar a sua articulação como uma possibilidade determinada. Trótski criticou assim seus contraditores por remanescerem prisioneiros “de categorias sociais rígidas, ao invés de conceber as forças históricas vivas”. Ele via o achatamento da política em categorias formais da sociologia como um engessamento [carcan] teórico. Faltando chegar a conceber a política segundo suas próprias categorias (apesar de fortes intuições sobre o bonapartismo ou o totalitarismo), ele se contentou, entretanto, com invocar essas enigmáticas “forças históricas vivas” e apelar à criatividade da vida. Para ele, como para Lênin, não existia outra saída se não considerar a Revolução Russa como uma anomalia, uma revolução à contratempo, condenada a se sustentar custasse o que custasse, na espera de uma revolução alemã e europeia, que não vieram.


No discurso leninista, a hegemonia designava uma liderança política no interior de uma aliança de classes. Mas o campo político continuava concebido como uma representação ou um reflexo direto e unívoco de interesses sociais pressupostos. Lênin foi, apesar disso, um virtuoso da conjuntura, do instante propício, da política praticada como um jogo estratégico de deslocamentos e de condensações, do mesmo modo que as contradições do sistema podem irromper sob formas imprevisíveis (por exemplo uma luta estudantil ou um protesto democrático), lá onde ninguém esperava. Diferentemente dos socialistas ortodoxos que viam na guerra mundial um simples desvio, um parêntese lamentável na marcha ao socialismo sobre os caminhos delimitados [balisés] para o poder, ele foi capaz de pensar a guerra como uma crise paroxística que requeria uma intervenção específica. É por isso que, no reverso [à rebours] de uma ortodoxia que postulava a adequação natural entre base social e direção política, a hegemonia leninista supunha uma concepção da política “potencialmente mais democrática do que tudo o que se pode encontrar na tradição da II Internacional” [11].


A distinção fundadora entre o partido e a classe trabalhadora abre, efetivamente, a perspectiva de uma autonomia relativa e de uma pluralidade da política: se o partido não se confunde mais com a classe, esta pode dar lugar a uma pluralidade de representações. No debate de 1921 sobre os sindicatos, Lênin esteve logicamente com aqueles que sentiam a necessidade de apoiar uma independência das uniões sindicais diante dos aparatos de Estado. Mesmo que ele não tenha extraído todas as consequências, sua problemática implica o reconhecimento de uma “pluralidade de antagonismos e de pontos de rupturas”. A questão da hegemonia, praticamente presente, mas deixada de lado, poderia assim desembocar em uma “virada autoritária” e na substituição da classe pelo partido. A ambiguidade do conceito de hegemonia precisa, com efeito, ser resolvida, seja no sentido de uma radicalização democrática, seja no de uma prática autoritária.


Em sua acepção democrática, ele permite ligar uma multiplicidade de antagonismos. É necessário, então, admitir que as tarefas democráticas não estão reservadas somente à etapa burguesa do processo revolucionário. Na acepção autoritária do conceito de hegemonia, a natureza de classe de cada reivindicação é, ao contrário, fixada a priori (burguesa, pequeno-burguesa ou proletária) pela infraestrutura econômica. A função da hegemonia é reduzida, então, a uma tática “oportunista” de alianças flutuantes e variantes ao sabor das circunstâncias. A teoria do desenvolvimento desigual e combinado obrigaria, por outro lado, a “uma expansão incessante das tarefas hegemônicas” em detrimento de um “socialismo puro”.


Hegemonia e movimentos sociais


A concepção gramsciana de hegemonia estabelece as bases de uma prática política democrática “compatível com uma pluralidade de sujeitos históricos”. Também é isto que se implica da fórmula de Walter Benjamin segundo a qual não se tratava mais, dali em diante, de estudar o passado “como antes, de modo histórico, mas de modo político, com categorias políticas” [12]. A política não é mais uma simples atualização de leis históricas ou de determinações sociais, mas um campo específico de forças reciprocamente determinadas. A hegemonia gramsciana assume plenamente essa pluralidade política. É cada vez mais difícil hoje pressupor uma homogeneidade da classe trabalhadora. Kautsky e Lênin já haviam compreendido que a classe não tem consciência imediata de si mesma, que sua formação passava por experiências e mediações constitutivas. Para Kautsky, a intervenção decisiva dos intelectuais, transmitindo “do exterior” a ciência ao proletários, representava a mediação principal. Para Lukács, ela residia no partido, incarnando a classe para si, diante da classe em si [**].


A introdução do conceito de hegemonia modifica a visão da relação entre o projeto socialista e as forças sociais capazes de o realizar. Ela impõe a renúncia ao mito de um grande Sujeito, a emancipação. Ela modifica também a concepção dos movimentos sociais, que não são mais movimentos “periféricos” subordinados à “centralidade operária”, mas atores em si inteiros [à part entirère], cujo papel específico depende estritamente de seu lugar em uma combinação (ou articulação hegemônica) de forças. Ela evita, enfim, que se ceda à simples fragmentação incoerente do social ou que esta seja esconjurada por um golpe de força teórico, provocando a se pensar o Capital como sistema e estrutura, no qual o todo condiciona as partes.


Certamente, as classes são o que os sociólogos daqui em diante chamam de “constructos”, ou ainda segundo Bourdieu as “classes prováveis”. Mas sobre o que repousa a validade de sua “construção”? Por que “prováveis” ao invés de improváveis? De onde vem esta probabilidade, se não de uma certa obstinação do real em se inserir no discurso. Insistir na construção das categorias pela linguagem ajuda a resistir às representações essencialistas, em termos de raça ou de etnia. Ainda falta a tal construção um material apropriado, sem o qual se terá dificuldade de compreender como a luta de classes real e sangrenta tem assombrado a política por mais de dois séculos.


Laclau e Mouffe admitem tomar suas distâncias diante de Gramsci, para quem “os sujeitos hegemônicos são necessariamente constituídos a partir das classes fundamentais, o que supõe que toda formação social é estruturada em torno de só um centro hegemônico”. À pluralidade de atores, pluralidade de hegemonias? Esta hegemonia em fragmentos é contraditória com o sentido estratégico original do conceito, como unidade da dominação e da legitimidade, ou “capacidade dirigente”. Em uma dada formação social, existiria, segundo tais autores, diversos “nós de hegemonia”. Por inversão pura e simples da relação entre unidade e pluralidade, singularidade e universalidade, a pluralidade não é mais então o que é preciso explicar, mas o ponto de partida de toda explicação.


Pluralidade do social ou sociedade em fragmentos


Após a era das oposições simples (regime do povo / antigo regime, burguês / proletários, amigo / inimigo), as fronteiras do antagonismo político se tornaram mais instáveis nas sociedades cada vez mais complexas. Assim, a oposição de classe não permite mais dividir todo o corpo social em dois campos claramente delimitados. Diferentemente dos “antigos”, os “novos movimentos sociais” teriam assim em comum a preocupação de se distinguir da classe operária e de contestar as novas formas de subordinação e de mercantilização da vida social. Isso resultará em uma multiplicidade de exigências autônomas e na criação de novas identidades com forte conteúdo cultural, a reivindicação de autonomia se identificando então com a liberdade. Esse novo “imaginário democrático” será a portador de um novo igualitarismo, preocupante aos olhos dos neoconservadores.


Para Laclau e Mouffe, renunciar ao mito do sujeito unitário, ao contrário, torna possível o reconhecimento de antagonismos específicos. Essa renúncia permite conceber um pluralismo radical que abre espaço para atualizar novos antagonismos, novos direitos e uma pluralidade de resistências: “O feminismo ou a ecologia por exemplo existem sob múltiplas formas, que dependem da maneira pela qual o antagonismo é discursivamente construído. Temos assim um feminismo que se opõe aos homens enquanto tais; um feminismo da diferença que busca revalorizar a feminilidade; e um feminismo marxista para o qual o capitalismo continua o inimigo principal, indissoluvelmente ligado ao patriarcado. Consequentemente, haverá uma pluralidade de formulação dos antagonismos fundados sobre os diferentes aspectos da dominação das mulheres. Do mesmo modo, a ecologia pode ser anticapitalista, anti-produtivista, autoritária ou libertária, socialista ou reacionária, e assim por diante. Consequentemente, os modos de articulação de um antagonismo, longe de serem pré-determinados, resultam de uma luta pela hegemonia” [13]. Por detrás desse pluralismo tolerante, se perfila o espectro de um politeísmo de valores insuscetíveis [soustraites] a qualquer teste de universalidade. A guerra dos deuses não está mais tão longe.


Ao invés de combinar os antagonismos operantes no campo das relações sociais, Laclau e Mouffe apostam em uma simples “expansão democrática”, na qual as relações de propriedade e de exploração não seriam mais do que uma imagem dentre outras do grande caleidoscópio social. A “tarefa da esquerda” não seria mais então combater a ideologia liberal-democrática, mas se encarregar de “aprofundá-la e alargá-la na direção de uma democracia pluralista radical”. Os diferentes antagonismos exacerbados pela crise social e moral reportam-se, no entanto, à desmedida [mal-mesure] do mundo, às desordens da mercantilização generalizada, às desregulações da lei do valor, que, sob o pretexto de racionalizações parciais, geram uma irracionalidade crescente. Qual é o grande fator de convergência dos movimentos reunidos nos fóruns sociais ou nos movimentos anti-guerra, se não o próprio capital?


Laclau e Mouffe terminam logicamente por criticar o próprio conceito de revolução, que implicaria necessariamente, a seus olhos, a concentração do poder com vistas a uma reorganização racional da sociedade. A noção de revolução seria, por natureza, incompatível com a pluralidade. Bem-vinda [Welcome], pluralidade! Adeus [Exit], revolução! O que é que permite então escolher entre os diferentes discursos feministas, ou entre os múltiplos discursos ecológicos? Como desfazer sua divisão [départager] e torná-los “articuláveis”? E “articuláveis” com o que? Como evitar que a pluralidade desmorone sobre si mesma em um magma disforme?


O projeto de democracia radical se limita definitivamente, para Laclau e Mouffe, a celebrar a pluralidade do social. Eles devem renunciar por isso a um espaço único da política em prol de uma multiplicidade de espaços e de sujeitos. Como evitar então que esses espaços coexistam sem se comunicar, e que esses sujeitos coabitem na indiferença recíproca e no cálculo do interesse egoísta?


Seguindo uma “lógica da hegemonia”, na articulação entre antirracismo, antissexismo e anticapitalismo, os diferentes frontes são levados a se apoiar e se fortalecer uns aos outros, para construir uma hegemonia. Esta lógica ameaçaria, no entanto, os espaços autônomos a cair [s’écraser] em um combate único e indivisível. Uma “lógica da autonomia” (ou da diferença) permitiria, ao contrário, que cada luta mantivesse a sua especificidade, mas isto ao preço de um novo enclausuramento em diferentes espaços que tendem a se fechar uns aos outros. Mas sem convergências entre diversas relações sociais, a autonomia absoluta não seria mais do que uma justaposição corporativista de diferenças identitárias.


Considerado em um sentido estratégico, o conceito de hegemonia é irredutível a um inventário ou a uma soma de antagonismos sociais equivalentes. Para Gramsci, ele é um princípio de reagrupamento de forças em torno da luta de classes. A articulação das contradições em torno de relações de classe não implica ao mesmo tempo a sua classificação hierárquica em contradições principais e secundárias, nem a subordinação de movimentos sociais autônomos (feministas, ecológicos, culturais) à centralidade proletária.


Assim, as reivindicações específicas das comunidades indígenas da América Latina são duplamente legítimas. Historicamente, elas foram expropriadas [dépouillées] de suas terras, oprimidas culturalmente, despossuídas de sua língua. Vítimas do rolo compressor da mundialização mercantil e da uniformização cultural, elas se revoltam hoje contra o estragos ecológicos, contra a pilhagem de seus bens comuns, em defesa de suas tradições. As resistências religiosas ou étnicas às brutalidades da mundialização apresentam a mesma ambiguidade que as revoltas românticas do século XX, divididas [tiraillées] entre uma crítica revolucionária da modernidade e uma crítica reacionária nostálgica dos velhos tempos. A divisão entre essas duas críticas é determinada por sua relação com as contradições sociais inerentes às relações antagônicas entre o capital e o trabalho.


Isso não significa a subordinação dos diferentes movimentos sociais autônomos a um movimento operário ele próprio em reconstrução permanente, mas a construção de convergências em que o próprio capital é o princípio ativo, o grande sujeito unificador.


O conceito de hegemonia é particularmente útil hoje para pensar a unidade na pluralidade de movimentos sociais. Ele se torna problemático, por outro lado, quando se trata de definir os espaços e as formas de poder que ele supostamente ajuda a conquistar.


27 de agosto de 2007

– Traduzido com base na versão em inglês. Revisado com base no original francês.


Notas

[1] Perry Anderson, Sur Gramsci, Paris, 1978, Petite collection Maspero.

[2] K. Marx, Le Dix-huit Brumaire, Paris, Folio Gallimard, 2002, p. 308.

[3] Le Monde, 16 de maio, 2003.

[4] A. Gramsci, Cahiers de prison n° 13, Paris, Gallimard, 1978, p. 358.

[*] Nota da revisão: neste trecho, no original se lê “une guerre d’usure (ou de position)”; ou seja, “uma guerra de desgaste (ou de posição)”.

[5] A. Gramsci, Cahiers de prison, n° 7, Paris, Gallimard, 1983, p. 183.

[6] A ideia de uma “reforma intelectual e moral” é recuperada de Renan e de Péguy, cujo pensamento pôde encontrar eco na Itália por meio de Sorel.

[7] Ver Étienne Balibar, Sur la dictature du prolétariat, Paris, Maspero, 1976; Louis Althusser e Étienne Balibar, Ce qui ne peut plus durer dans le Parti communiste, Paris, Maspero; Ernest Mandel, Critique de l’eurocommunisme, op. cit., e Réponse à Louis Althusser et Jean Ellenstein, Paris, La Brèche, 1979.

[8] Butler, Laclau, Žižek, op. cit., p. 297-298 et 319-320.

[9] L. Trotski, La Révolution trahie, Paris, Minuit, 1963, p. 177.

[10] A. Gramsci, Cahiers de prison, 6, Paris, Gallimard.

[11] E. Laclau e C. Mouffe, Hegemony and socialist Strategy, op. cit., p. 55. Ver Daniel Bensaïd, “La politique comme art stratégique”, Un Monde à changer, Paris, Textuel, 2003.

[12] Walter Benjamin, Paris capitale du XIXe siècle, Paris, Cerf, 1989, p. 405-408.

[**] Nota da revisão: no original, se lê: “le parti, incarnant la classe en soi face à la classe pour soi”; em uma tradução literal, acreditamos que se inverteria o sentido pretendido pelo autor.

[13] Ibid., p. 168.

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