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O feminismo da esquerda anticapitalista (Lidia Cirillo)


O feminismo da esquerda anticapitalista

Lidia Cirillo

Tradução de Neila Priscila dos Santos Costa

Revisão de Pedro Barbosa



No início deste ano, a associação Sinistra Critica (Esquerda Crítica) na Itália discutiu a elaboração de um manifesto feminista. Embora existam elementos que dizem respeito especificamente à Itália, as seguintes notas sobre as discussões de Lidia Cirillo levantam muitas questões importantes para a atualização de uma análise Feminista Marxista.


1. Feminismo e tendências democráticas, progressistas e revolucionárias.


O feminismo deve ser declinado em seu plural, feminismos, pois as mulheres pertencem a várias classes sociais e culturas e têm diferentes pontos de referência política. Por exemplo, existe uma forma de feminismo na Itália entre parlamentares de direita e mulheres de carreira, que reivindicam sua parcela de poder com base em argumentos feministas tradicionais, condenam a dinâmica da exclusão e da marginalização e exigem medidas antidiscriminatórias.


No entanto, o feminismo sempre nasce e renasce à esquerda, ao lado de tendências revolucionárias, democráticas ou progressistas: nas margens da revolução de 1789, nas revoluções nacionais da primeira metade do século XIX, dentro do movimento pela abolição da escravidão nos Estados Unidos, ao lado do movimento dos trabalhadores, na radicalização das décadas de 1960 e 1970, no movimento de justiça global...


O feminismo de direita sempre foi efeito de ideias nascidas e captadas à esquerda, uma espécie de desalinho que, mais cedo ou mais tarde, teve impacto na sociedade como um todo. Esse fenômeno pode ser explicado pela razão óbvia de que foi mais fácil (ou menos difícil) para as mulheres exercerem pressão sobre os homens à esquerda em nome da libertação, revelando suas contradições e usando seu próprio vocabulário e padrões de pensamento. Os conceitos de igualdade, autodeterminação, libertação, diferença, revolução etc. nada mais foram do que uma versão feminina de ideias elaboradas pelas correntes políticas, ao lado das quais nasceram ou renasceram várias formas de feminismo.


Essa observação não nos permite ter uma visão idílica das relações entre o feminismo e as tendências revolucionárias, democráticas e progressistas masculinas. A resistência dos homens ao feminismo tem sido tenaz, às vezes explícita e vulgar, às vezes sutil ou mesmo inconsciente.


O movimento socialista de primórdios incluía homens feministas como Saint-Simon e Fourier e misóginos indescritíveis como Proudhon e Lassalle. Engels lançou as bases conceituais de um feminismo anticapitalista, comparando mulheres ao proletariado e homens à burguesia e localizando na produção e reprodução as bases da organização social da espécie humana, mas depois essas intuições foram perdidas na teoria e nas práticas. Uma história completa de misoginia e antifeminismo no movimento dos trabalhadores poderia ser escrita, mas neste texto podemos apenas tocar nas duas atitudes mais difundidas na esquerda anticapitalista de hoje.


Em geral, poucos homens são tão rudes a ponto de deixar de prestar a homenagem esperada ao feminismo e de prever um futuro proletário, feminista e ambientalista. No entanto, esses reconhecimentos são quase sempre acompanhados por falta de interesse. Os meandros, diferenças e elaborações teóricas complexas do feminismo permanecem pouco conhecidos na medida em que o gênero pode representar uma estrutura imprescindível para a compreensão da lógica das relações humanas que permanece negligenciada.


A outra atitude, muito mais rara para falar a verdade, é o paternalismo dos homens que afirmam ensinar feminismo às mulheres, assumir a liderança e definir a agenda de seus trabalhos e discussões. Naturalmente, não podemos descartar o fato de que um determinado homem pode conhecer e entender mais sobre a política e o feminismo das mulheres do que uma determinada mulher. No entanto, o feminismo nasce, se consolida e se renova apenas no curso das mulheres que acessam a autonomia intelectual e psicológica. Pode ser um processo lento e tortuoso, mas não há substituto.


Sem autonomia, mesmo o feminismo das mulheres da esquerda anticapitalista fica limitado a recorrer ao que foi teorizado e praticado nos meios separatistas. Esse feminismo provou ser capaz de elaboração independente e uma leitura mais relevante das relações de poder baseadas em gênero. Ao mesmo tempo, tem frequentemente representado necessidades e perspectivas dos círculos acadêmicos ou meios femininos com pouco interesse em conflitos de classe e sempre expostos à tentação de descrever seus próprios interesses específicos como interesses das mulheres em geral.


2. Estruturas Patriarcais


Compreender o feminismo significa antes de tudo entender a natureza das relações de poder entre mulheres e homens. Existe atualmente o chamado pós-feminismo que nega que a opressão ainda exista, pelo menos nos locais do mundo onde a igualdade formal foi alcançada. A fórmula “opressão específica” fornece um ponto de apoio para essa vertente. É preferível dizer que todas as sociedades humanas, sem exceção, têm a marca de estruturas patriarcais manifestas ou latentes, que de maneiras diferentes discriminam, excluem, oprimem e cometem violências contra mulheres.


O patriarcado, no sentido literal da palavra, é um sistema de relações em que a propriedade e a posição social são passadas do pai para o filho (gênero masculino), quase sempre para o filho primogênito. É óbvio que nas sociedades norte-ocidentais (mas também em outras) esse tipo de reprodução de posições sociais já não existe e a realidade é menos gritante e mais complexa.


No entanto, a lógica da genealogia masculina do poder, que permanece notória para além de seus aspectos legais e formais, tem uma dimensão antropológica que dois séculos de lutas pela emancipação ainda não conseguiram superar. As quatro conferências da ONU sobre mulheres forneceram dados que na época surpreenderam até os(as) teóricos(as) mais pessimistas da opressão, revelando, por exemplo, que a porcentagem de mulheres donas de terras e imóveis no mundo não excede de 3 a 4%. Além disso, os dados da Anistia Internacional sobre violências contra mulheres foram uma surpresa e confirmação amargas. Mas a maneira mais simples de entender as estruturas patriarcais é seguir o fio da existência de uma mulher desde o seu nascimento até a sua morte.


Em outras sociedades, encontramos o aborto seletivo e mais meninas do que meninos morrendo de desnutrição; em nossas sociedades (europeias), as estruturas patriarcais começam a agir mais tarde. Nos primeiros anos de vida, as meninas, em seu difícil caminho para a feminilidade, encontram o fenômeno que Freud chamou de “castração”, ou seja, a descoberta de que não dispunham de um pênis em seus corpos, levando a um doloroso sentimento de inferioridade que condicionaria suas habilidades intelectuais e o modo de se perceber e de ser percebida. A princípio, o feminismo respondeu à tese da castração argumentando que Freud sobrepunha a perspectiva masculina à feminina, mas mais tarde a questão se mostrou ainda mais complexa.


Se Freud, como alguns suspeitaram, por acaso tivesse confundido o ponto de vista da menina com o do menino, ele teria, assim, incorrido num erro básico, um equívoco amador. Dessa forma, não conseguiríamos explicar as razões de sua grande influência no pensamento ocidental[1], e não apenas ocidental. A tese da castração está ligada a experimentos clínicos, a resultados de testes que mostram que as mulheres se consideram castradas, carentes e privadas de alguma coisa. Assim, não é difícil de compreender que a castração desempenha uma função ideológica: é o ponto de vista daqueles que estão "acima" em uma relação de poder, interiorizada e incorporada por aqueles que estão "abaixo". Sob tal perspectiva, a teoria da inferioridade não seria proveniente de um preconceito masculino, mas uma realidade no inconsciente feminino. Essa realidade age toda vez que a diferença real e não presumida entra em jogo, as diferentes posições em relação ao poder. Para Freud, as mulheres não invejam o pênis, mas o falo, que é o poder em suas formas diversificadas e múltiplas, das quais o pênis é apenas o fetiche fálico.


Outro exemplo. A violência contra mulheres tem um escopo e uma difusão que os dados da Anistia Internacional finalmente tornaram visíveis. No entanto, uma mulher em particular pode dizer que não vive qualquer espécie de violência em sua vida, além da violência que a natureza nos inflige por doenças e pela morte. Mesmo assim, sua vida será profundamente condicionada por violências, porque o risco de violência implica tomar certas precauções, adotar estilos de vida e atitudes psicológicas. A extensão em que o mundo foi feito à medida do homem é comprovada pelo paradoxo de que a vítima é quem acaba na prisão. As estruturas patriarcais que atravessam a sociedade tornam o risco de violência uma das principais razões para a segregação de mulheres, especialmente mulheres jovens.


Muitos outros exemplos podem ser citados, como a dupla jornada de trabalho das mulheres, que consiste em realizar tarefas que antes eram domínio dos homens, não havendo contrapartida deles para com as tarefas ditas femininas; ou a super-representação do masculino na esfera pública, que impõe ritmos e maneiras, contrários aos da própria existência das mulheres ou, novamente, as imagens normativas da feminilidade construídas e cristalizadas através de milênios de monopólio masculino sobre a tradição simbólica. Parece que algo está mudando entre as novas gerações na Itália, mas essas mudanças são lentas e incertas.


Outros efeitos dessas estruturas latentes são mais complexos, mais difíceis de identificar e definir. É verdade que também pensamos com o nosso sexo [1], talvez menos do que o assumido pela psicanálise, mas certamente também pensamos com o nosso sexo. Se é verdade que os homens têm o monopólio da cultura há milênios, então uma hipótese perturbadora é possível. A hipótese é que toda vez que uma mulher penetra em campos de conhecimento particularmente estruturados e formalizados, ela deve atravessar uma floresta petrificada de sinais e símbolos masculinos, na qual terá mais dificuldade para se orientar.


Do mesmo modo, a maneira como se manifesta a presença das mulheres na política é uma consequência da existência de estruturas patriarcais. Com seus silêncios, sua presença limitada, sua insegurança, as mulheres lançam críticas a toda arena política. Quanto maior a presença e o domínio masculino em um determinado corpo político, mais ele tem a ver com as lógicas do poder.


Pode-se estabelecer com isso um teorema, formular uma proposição ou uma equação para entender este assunto. As instituições políticas, o exército, o clero, por exemplo, são meios predominantemente masculinos porque são também aqueles mais profundamente envolvidos no poder. Por várias razões, essas instituições podem incorporar mulheres: para escaparem das críticas e da gritante ausência de mulheres, para recuperar credibilidade ou simplesmente porque precisam de um relacionamento com o corpo social.


O exemplo mais significativo de distribuição masculina e feminina é precisamente a Igreja Católica. Uma instituição que cria laços com vastos setores populares, mesmo às vezes alimentando os famintos e saciando a sede dos sedentos, não poderia prescindir da energia das mulheres e de sua tendência a se verem como cuidadoras. Acima dessa ideia de uma Igreja aberta ao feminino, donde suas articulações se estendem profundamente na sociedade, ergue-se a cúpula de uma hierarquia de poder rigidamente fechada às mulheres, expressão dessa capacidade de conservar as relações humanas mais arcaicas típicas das religiões.


3. Três temas fundamentais para o feminismo anticapitalista na Itália


As estruturas patriarcais condicionam a vida das mulheres e constroem o gênero de maneiras bastante diversas, em diferentes épocas e locais. O grande número de reivindicações – por exemplo, as compiladas na plataforma da Marcha Mundial das Mulheres de 2000 – mostra a amplitude dos problemas não resolvidos em escala global. É certo que as mulheres afegãs têm problemas diferentes daqueles vivenciados por francesas ou alemãs e que as questões centrais na Itália contemporânea não são as que estiveram na linha de frente das décadas que se estenderam pelos séculos XIX e XX, que acompanharam a primeira grande onda dos movimentos feministas. É evidente que em diferentes meios sociais, em diferentes gerações e nas mais variadas aspirações das mulheres, os obstáculos que elas devem superar não são os mesmos.


No entanto, devemos abandonar a ilusão cronológica e suspeitar de que temos quase garantido a emancipação. Se é verdade que, onde a igualdade formal foi alcançada, tarefas mais complexas aguardam o feminismo, também é verdade que as batalhas já vencidas, problemas aparentemente já resolvidos e relações antigas podem ressurgir para enfrentar-nos. A violência contra as mulheres é o exemplo mais comum desses problemas e sua maior visibilidade tem explicações diferentes e complementares. Hoje em dia, as mulheres se manifestam com mais frequência contra situações que toleraram em anos anteriores, a opinião pública se torna cada vez mais escandalizada por questões que costumavam ser desprezadas e ridicularizadas; os homens reagem, como geralmente ocorre nas relações de poder, com uma combinação de perspectivas atrasadas e violência retaliadora.


O feminismo anticapitalista de esquerda não deve se referir apenas às necessidades e aspirações das mulheres proletárias; deve antes assumir as demandas das mulheres em seu conjunto. Naturalmente, como nossa intervenção se direciona para certos meios, é certo que as demandas das mulheres trabalhadoras, imigrantes, mulheres desempregadas, das estudantes, mulheres de partidos de esquerda, dos movimentos e sindicatos estarão na frente.


A seguir estão alguns exemplos de temas em que temos trabalhado nos últimos anos e que devem permanecer como prioritários no futuro próximo.


A) Críticas à guerra, ao militarismo e às violências


A política das mulheres dispõe de instrumentos para uma crítica específica ao movimento militar-viril produzido pela guerra permanente, sem retroceder a ideias sobre uma natureza pacífica das mulheres e a não-violência feminina. A não-violência é a outra face da violência: ambas se pautam na naturalização das relações de poder. A violência é uma força dissuasiva permanente contra aqueles que os estão desafiando; enquanto a não-violência pode desarmar apenas um dos dois lados, o lado que está "embaixo", sujeito a opressão, exploração e espoliação neocolonial. A prova mais óbvia disso na Itália foram os porta-vozes da não-violência, intransigentes no enfrentamento à violência perpetrada contra os oprimidos e que de repente votam no parlamento por refinanciamentos para a missão militar italiana no Afeganistão.


O feminismo mais sagaz já explicou que a suposta natureza pacífica das mulheres está, em grande parte, ligada à necessidade de interiorizar uma agressividade que as relações de poder com os homens não lhes permitem exibir. As críticas ao militarismo e à violência (sobretudo as violências contra as mulheres) vão muito além da idealização da subalternização e da opressão. As mulheres podem certamente se engajar nessa crítica antes de tudo porque não precisam se conformar com os estereótipos nos quais a construção da masculinidade se baseia. Elas não são intimadas a exibir dureza e força, fantasmas ligados à construção da sexualidade masculina. Mais do que os homens, elas estão sujeitas ao impacto devastador das relações humanas dominadas pela violência.


Contra as violências que fundam as relações de poder (baseadas em gênero, classe, origem geográfica, etc.), nosso feminismo se espelha, acima de tudo, em sociedades que buscam abolir tais abusos. Por isso, apoia-se em projetos de resistência, de lutas e transformações radicais. É, também, contra guerras, o militarismo, os exércitos e sua organização hierárquica. Não pensa que a violência seja necessariamente a resposta adequada à violência; considera a vida de qualquer pessoa como uma dádiva e, portanto, não é apenas contra a pena de morte, mas também contra a crueldade e os excessos da legítima defesa pessoal. No entanto, não faz da não-violência um princípio, porque reconhece o direito dos sujeitos das lutas de libertação a defender seus próprios caminhos.


Nosso feminismo também responde à violência contra as mulheres com uma lógica de autodefesa. Não queremos dizer com isso, autodefesa armada das mulheres contra os homens, porque as relações entre os gêneros são reguladas de uma maneira muito diferente. Não se acredita que o problema possa ser resolvido através do recrudescimento das penas, mesmo que se considere necessária a proteção do Estado que, por enquanto, não é substituível por nenhuma outra forma de proteção. Deve-se entender por autodefesa as iniciativas das mulheres para o estabelecimento e financiamento de centros antiviolência; para que as denúncias não se voltem contra as vítimas, nutrindo a noção de culpabilização da vítima e para que a vida metropolitana seja organizada a partir das necessidades das mulheres, de modo que as mulheres não precisem pagar pela irracionalidade e violência manifestas e latentes.


Por fim, nosso feminismo lembra que a política das mulheres é só aparentemente desarmada, pois a dinâmica da libertação tem sido frequentemente apoiada por pessoas amparadas e munidas pelos movimentos democráticos, progressistas ou revolucionários. A resistência ao nazismo / fascismo (por exemplo) teve um impacto importante no feminismo e nas mulheres.


B) Pela laicidade e pela autodeterminação, contra o fundamentalismo católico


Vivemos num país em que a Igreja Católica ainda é vista como uma entidade estatal na qual exerce seu poder temporal: nunca renunciou à laicidade do Estado e continua a combatê-la de todos os modos possíveis. Nos últimos anos com o fortalecimento das direitas e seus sistemas políticos que favoreceram o poder de chantagem das forças políticas católicas, agravou-se a intromissão do clero com todas as suas implicações patriarcais e homofóbicas.


O acesso ao aborto legal e gratuito tem sido desafiado de várias maneiras; impediu-se o uso experimental do aborto farmacêutico; aprovou-se uma lei horrível, que concebe o embrião como sujeito legal desde o momento da concepção. Além disso, testemunhamos uma oposição muito dura e muitas vezes agressiva e racista a qualquer forma de reconhecimento de casais de gays e lésbicas. Findou-se há pouco tempo, com um ato de desobediência civil de um médico, o dilema de Piergiorgio Welby, um paciente com distrofia muscular terminal. Durante meses, Welby havia solicitado que desligassem a máquina que o forçava a sobreviver dolorosamente e que o teria imposto uma morte ainda mais dolorosa a curto prazo. Seu pedido se tornou uma causa política clamorosa, na qual a burocracia do Vaticano exerceu todos os seus poderes de pressão e intimidação sobre juízes e médicos.


O fundamentalismo católico (como todas as outras formas de fundamentalismo), para além das aparências e invólucros humanitários e pacifistas da ação política da hierarquia eclesiástica, não representa uma ameaça apenas para mulheres e homossexuais, mas para todos os processos de libertação. A Igreja se posicionou contra a guerra, mas depois apoiou a ideia da "missão de paz" do exército italiano. Defendem uma postura acolhedora em relação aos imigrantes, mas apoiam os governos de direita que promulgam leis discriminatórias anti-imigração. Além disso, nunca devemos esquecer que a Igreja Católica foi uma das instituições que favoreceu a ascensão do fascismo e sustentou o regime por mais de vinte anos.


Evidentemente, paz, hospitalidade e democracia são preocupações menores para o clero católico em comparação com aquelas que o levam a privilegiar relações com a direita, isto é, o controle sobre a vida cotidiana não apenas dos fiéis, mas de todo o país, sobre o qual ele visa exercer seu poder temporal. Nos últimos anos, os movimentos feministas e queer têm sido as únicas forças que resistem ao fundamentalismo católico (cristão em geral).


Quanto ao feminismo, uma certa desorientação tem implicado durante muito tempo em uma resistência enfraquecida. No momento mais delicado, quando a lei sobre técnicas de reprodução foi implementada e aprovada pelo governo de direita, organizações e grupos feministas permaneceram envolvidos em uma discussão na qual era óbvio que os argumentos mais sofisticados das forças católicas estavam recebendo mais atenção, assim como as preocupações com as implicações alarmantes da pesquisa científica.


O fantasma do cientista criador do Frankenstein, temores arcaicos sobre a perda do poder feminino na reprodução, inquietações fundadas sobre os limites da investigação científica ou sobre o papel das multinacionais no tráfico de embriões combinaram-se e representaram um obstáculo à iniciativa. Como resultado, as feministas não conseguiram ir muito além das discussões sobre esse assunto. Esta é outra razão pela qual o referendo sobre a revogação desta lei foi perdido. De fato, foi perdido por duas razões. A primeira é a participação muito baixa nas urnas, insuficiente para atingir o quórum. A questão em discussão era complexa e, ao contrário do aborto, as experiências diretas envolviam um número muito limitado de pessoas. A segunda é que, enquanto o referendo sobre a lei que descriminalizou o aborto nos três primeiros meses de gravidez seguiu anos sem ser atendido na prática e nos argumentos sobre o direito das mulheres à autodeterminação, o referendo sobre técnicas reprodutivas foi descartado poucos meses antes da votação, e nesse contexto, a mídia teve um papel determinante.


Posteriormente, ataques direcionados ao acesso a abortos legais, em que a postura misógina e retrógrada era evidente, reativaram o movimento das mulheres que, em janeiro de 2006, em uma demonstração de centenas de milhares de mulheres nas ruas de Milão, deu uma resposta contundente. No mesmo dia, as principais organizações do movimento LGBTQ+, incluindo lésbicas, gays e transgêneros, se manifestaram pelos PACS [2] (referente ao reconhecimento de uniões civis). E o ano de 2006 foi, no seu conjunto, um ano de manifestações, iniciativas e lutas relacionados a temas como a laicidade e a autodeterminação.


C) A defesa dos direitos das trabalhadoras


Paradoxalmente, as derrotas do trabalho assalariado e a globalização abriram novas oportunidades de emprego para as mulheres. Este não é um novo paradoxo, na verdade, mas algo que já foi visto de alguma maneira na história das relações de classe.


As mulheres têm sido “preferidas” nas economias quando aparecem pela primeira vez no mercado mundial, porque essas economias dependiam de produções com alto fator de força de trabalho e, portanto, baixos salários, restrições à organização sindical e limites severos de direitos. Também na Europa, quando o movimento dos trabalhadores permaneceu fraco, ele teve que enfrentar o problema da competição feminina com a força de trabalho masculina, o que é pelo menos uma explicação parcial dos aspectos misóginos do movimento operário em suas origens. Defender os direitos das trabalhadoras reduziria o interesse dos empregadores em preferir contratar mulheres.


As mulheres têm sido preferidas nas economias dos países mais desenvolvidos, em que o setor de serviços cresceu e onde houve ataques e cortes drásticos aos direitos do trabalho assalariado, sobretudo através do amplo processo de casualização, em outras palavras, de precarização.


O outro lado da moeda é que o trabalho casualizado, que afeta o conjunto do trabalho assalariado, tem uma preferência pelas mulheres, para as quais um emprego estável parece ter se tornado quase impossível. As leis que protegem a maternidade agem nesse contexto como um forte desestímulo à contratação de empregadas permanentes. Não apenas isso, mas em uma dinâmica de carreira cada vez mais competitiva, as mulheres permanecem destinadas a permanecer para trás ou escolher entre carreira e gravidez. Para falar a verdade, na maioria dos casos, é impossível optar por uma profissão, quaisquer que sejam os planos de vida pessoais de uma mulher, porque ser mulher em idade fértil limita as possibilidades de parceria em uma empresa ou trabalho estável.


Além disso, estão em crise áreas profissionais como o ensino, que garantiam salários razoáveis, mas horários de trabalho e direitos compatíveis com as opções de vida da maioria das mulheres.


No passado, diante de tais problemas, o feminismo também se viu lidando com a alternativa de exigir direitos específicos para as mulheres, mesmo aceitando o risco de aumentar suas dificuldades para conseguir um emprego, ou renunciar a esses direitos, colocando-as mais cedo ou mais tarde em contradições insolúveis.


A questão não pode ser resolvida apenas a partir de uma perspectiva de gênero. Tal proteção torna mais difícil para as mulheres encontrar emprego quando as relações sociais são desfavoráveis às classes subordinadas: não é por acaso que o fascismo era um forte protetor da maternidade. Por esse motivo, leis que permitem às mulheres conciliar trabalho com uma existência diferente da dos homens não são suficientes. Também é necessário impor formas de contratação que impossibilitem a discriminação. Na Itália, na década de 1970, uma reforma referente ao trabalho temporário forçou os empregadores a contratar muito mais mulheres para as fábricas do que gostariam. Mas muitas outras medidas são possíveis.


Ainda sobre direitos, também se faz necessário modificar algumas perspectivas e filosofias. Isso significa reivindicar, por um lado, o menor número possível de direitos específicos para as mulheres, mas exigir em troca, que a medida da igualdade tome como referência o ponto de vista das mulheres e não dos homens. Nesse sentido, rejeitamos o regulamento europeu que revogava a proibição do trabalho noturno para mulheres, solicitando que ele também fosse estendido aos homens, exceto em casos excepcionais em que o trabalho noturno é absolutamente essencial. Ou, no caso de aposentadorias precoces para mulheres, preferimos anos sabáticos para tarefas referentes ao cuidado, que poderiam ser realizadas por mulheres e homens, assim como preferimos licença maternidade/paternidade para mães e pais.

Obviamente, esses critérios não se aplicam quando se trata da diferença irredutível dos corpos humanos (1). Isso significa que existem direitos específicos das mulheres (1), como licença para gravidez e parto com compensação total de renda, acesso ao aborto legal sem custo, acesso a técnicas de reprodução assistida para mulheres mais velhas. Nesse caso, a diferença deve ser levada ao limite, não se pode defender a igualdade de direitos dos homens em decidir, uma vez que são os corpos e as vidas das mulheres os mais envolvidos e transformados.


– Traduzido do inglês por Neila Priscila dos Santos Costa (Facebook: Neila Sanco).

Maio, 2020. (Tradução inglesa de Marie Lagatta)


Lidia Cirillo tem sido membro da seção italiana da Quarta Internacional desde 1966. Ativista feminista e figura de liderança da Marcha Mundial de Mulheres na Itália, ela também fundou os “Quaderni Viola” (Cadernos Roxos, uma revista feminista). Ela é autora de vários trabalhos feministas: “Meglio Orfane” (Melhor órfãos), “Lettera alle Romane” (Carta a uma mulher romana), e recentemente “La Lune Severa Maestra” (A lua, mestre severa) sobre a relação entre feminismo e movimentos sociais.


Notas da tradução


[1] Importante destacar a atualidade das discussões acerca das categorias de sexo e de gênero. Embora a autora mencione a categoria sexo, ela própria associa tal categoria à de gênero em seu texto. Será necessário (re)considerar na leitura tais sentidos sob a ótica de estudos contemporâneos no âmbito da diversidade e das relações de gênero para melhor compreensão da proposta da autora.


[2] Patto Civile di Solidarietá é uma reivindicação que defende a aprovação, neste caso na Itália, de uma legislação semelhante às leis de uniões de fato que se foram aprovando em diversos países europeus. No Brasil, podemos tomar como similar a união estável.


Nota da revisão


[1] Embora na versão em inglês de fato conste “ocidental” e depois novamente “ocidental”, acreditamos que seja: “... sua grande influência no pensamento oriental, e não apenas ocidental”.

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