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Estratégia e partido (Daniel Bensaïd)

Atualizado: 19 de mar. de 2023


Estratégia e partido

Daniel Bensaïd

Tradução de Pedro Barbosa



Reproduzimos aqui o registro, já publicado pela Inprecor, do curso de formação dado em julho de 2007 por Daniel Bensaïd no Acampamento de Jovens da IV Internacional em Barbaste (França).


A questão da e a palavra estratégia retornam agora. Isso pode parecer banal, mas este não era o caso nos anos 80 e início dos anos 90: falava-se então sobretudo de resistência e as discussões sobre a questão estratégica haviam praticamente desaparecido. Tratava-se de resistir, sem necessariamente saber como se sairia daquela situação defensiva. Se hoje recomeça uma discussão sobre os problemas estratégicos – diremos de que se trata isso –, é porque a própria situação evoluiu. Para dizer de modo simples, a partir dos fóruns sociais a palavra de ordem “um outro mundo é possível” se tornou um slogan de massas ou pelo menos largamente difundido. As questões que se colocam hoje são: “que outro mundo é possível?” ou “que outro mundo nós queremos?” e sobretudo “como chegar a este outro mundo possível e necessário?”. A questão da estratégia é exatamente esta: não apenas a necessidade de transformar o mundo, mas de encontrar a resposta à questão de como transformá-lo, como conseguir transformá-lo.


Observações preliminares


Uma primeira observação é que o vocabulário de estratégia, tática e mesmo – na tradição dos camaradas italianos que estão familiarizados com Gramsci – as noções de guerra de posição [guerre d’usure - literalmente, guerra de desgaste], guerra de movimento, etc., todo este léxico, que se tornou o do movimento de trabalhadores no início do século XX, foi tomado de empréstimo da linguagem dos militares e especialmente dos manuais de história militar. Dito isto, não devemos nos enganar: do ponto de vista dos revolucionários, falar de estratégia não é apenas falar de enfrentamentos violentos ou confrontos militares com o aparelho de Estado, etc., mas é uma série de palavras de ordem e de formas de organização política, é uma questão de política para transformar o mundo.


Segunda observação: a questão estratégica tem duas dimensões complementares na história do movimento de trabalhadores. Primeiro, é a questão de como tomar o poder em um país. A ideia de que a revolução começa pela conquista do poder em um país, ou em vários, mas de qualquer modo ao nível das nações, nas quais são organizadas as relações de classe e as relações de força, a partir de uma história, de conquistas sociais e de relações jurídicas. Esta questão – a conquista do poder em um país, como a Bolívia, a Venezuela e esperamos que amanhã em um país europeu – permanece uma questão na ordem do dia e uma questão fundamental. Contrariamente ao que pretenderam certas correntes – como aquelas inspiradas por Toni Negri na América Latina ou na Itália, que pensam que a questão da conquista do poder em um país seja uma questão superada e até eventualmente reacionária, porque ela mantém as lutas nos quadros nacionais –, pensamos que a questão da luta pelo poder ainda começa sobre o terreno das relações de força nacionais, mas que ela está cada vez mais estreitamente combinada com a segunda dimensão da questão estratégica: a de uma estratégia à escala internacional, continental e nos dias de hoje mundial. Este já era o caso no início do século XX – e era este o sentido da ideia de revolução permanente: começar a resolver a questão da revolução em um ou vários países, mas a questão do socialismo colocava de partida a extensão da revolução a um continente e a todo o mundo. Esta ideia foi fundamental para os revolucionários da geração de Lênin, Trótski, Rosa Luxemburgo e o é ainda mais para nós. Podemos verificar isso: na Venezuela, pode-se nacionalizar o petróleo, ter uma certa independência em relação ao imperialismo, mas esta possibilidade tem limites se não há a extensão do processo revolucionário para a Bolívia, ao Equador e um projeto para a América Latina, que é a revolução bolivariana. Temos então este duplo problema: tomar o poder em alguns países, mas com o objetivo de se servir disso como trampolim para uma extensão internacional da revolução social.


Enfim, última observação introdutória: o problema da estratégia revolucionária é o de responder a um verdadeiro desafio, que não foi resolvido em Marx. Se se considera que os trabalhadores em geral, a classe trabalhadora, são mutilados física mas também moral e intelectualmente pelas condições de exploração – e Marx descreve isto em páginas e páginas de O capital, o embrutecimento pelo trabalho, a ausência de lazer, a impossibilidade de ter tempo para viver, ler e se cultivar… –, como uma classe que sofre uma opressão tão total poderia ser capaz, ao mesmo tempo, de conceber e construir uma sociedade nova? Havia em Marx uma ideia de que o problema se resolveria de maneira quase natural, que a industrialização do fim do século XIX criaria uma classe trabalhadora cada vez mais concentrada, portanto cada vez mais organizada e por isso cada vez mais consciente e que esta contradição entre as condições de vida em que ela é explorada e massacrada e a necessidade de construir um mundo novo seria regida por um tipo de dinâmica quase espontânea da história. No entanto, toda a experiência do século passado nos mostra que o capital reproduz permanentemente divisões entre os explorados, que a ideologia – dominante – domina também os dominados e que isto não se dá apenas porque há manipulação da opinião pelos meios de comunicação – os quais desempenham um papel cada vez mais importante, isto é verdade –, mas porque as condições da dominação, inclusive ideológica, dos explorados encontram suas raízes na própria relação de trabalho, no fato de não ser dono de sua ferramenta de trabalho, de não ser dono dos objetivos da produção, de ser – como dizia Marx – mais um instrumento da máquina do que o mestre da máquina. É isto que faz com que muitos fenômenos no mundo moderno nos apareçam, aos seres humanos que somos, como forças estranhas e misteriosas. Dizem para nós: não se deve fazer isso porque os mercados vão se enfurecer, como se os mercados fossem personagens todo poderosos, como se o dinheiro fosse ele próprio um personagem todo poderoso, etc. Eu não posso desenvolver isso, mas é importante dizer que as relações sociais capitalistas criam um mundo de ilusões, um mundo fantástico, que subordina assim os dominados e do qual eles devem se libertar.


Esta é a razão pela qual as lutas espontâneas contra a exploração, contra a opressão e contra as discriminações são necessárias. Se quiserem, é o combustível da revolução. Mas as lutas espontâneas não são suficientes para quebrar o círculo vicioso das relações entre o capital e o trabalho. É necessário uma parte de consciência, uma parte de vontade, um elemento consciente: é a parte de ação política e de decisão política que são carregadas por um partido. Um partido não é estranho à sociedade na qual estamos. Mesmo na organização mais revolucionária, sofre-se os efeitos da divisão do trabalho e da alienação (da alienação esportiva, por exemplo, porque isto está na ordem do dia neste verão), mas ao menos uma organização revolucionária pode se dotar de meios para resistir coletivamente e quebrar o encantamento, o feitiço, da ideologia burguesa.


“Tomar” o poder?


A partir disso, é preciso dizer coisas simples. Perguntam-nos: “mas o que significa ser revolucionário no século XXI? Vocês são favoráveis à violência?” Para começar, como diria o presidente Mao, a revolução não é um jantar de gala. O adversário é feroz e poderoso. Portanto, a luta de classes é uma luta e uma luta sob muitos aspectos impiedosa. E não fomos nós que decidimos isso. Então, há uma violência revolucionária legítima. Não devemos praticar um culto a ela, mas não é isso que para nós caracteriza principalmente a revolução. Gostaríamos até de ser pacifistas e de nos amar uns aos outros. Mas para tanto seria preciso criar, antes de tudo, as condições. Por outro lado, o que define para nós uma revolução é precisamente transformar um mundo cada vez mais injusto e violento. E transformar o mundo passa justamente pela conquista do poder.


Mas o que quer dizer tomar o poder? Não significa se apropriar de uma ferramenta, ocupar cargos, tomar posse dos aparelhos de Estado. Tomar o poder é transformar as relações de poder e as relações de propriedade. É fazer com que o poder seja cada vez menos um poder de uns sobre os outros e cada vez mais uma ação coletiva e compartilhada. E para isso é necessário transformar as relações de propriedade – propriedade privada dos meios de produção, dos meios de troca e nos dias de hoje cada vez mais propriedade dos saberes. Porque, por meio das patentes ou da propriedade intelectual, há privatização dos conhecimentos que são um produto coletivo da humanidade (chega-se a patentear genes, amanhã fórmulas matemáticas ou línguas). Há privatização do espaço (existe cada vez menos espaço público – os camaradas mexicanos lhes dirão que encontramos no México ruas privadas – e isso começa a acontecer também na Europa), privatização dos meios de informação, etc. Portanto, para nós, tomar o poder é transformar o poder. E para transformar o poder é preciso transformar radicalmente as relações de propriedade e inverter a tendência atual à privatização do mundo.


Como superar esta dominação do capital, que se reproduz quase que naturalmente através da organização do trabalho, da divisão do trabalho, da mercantilização do lazer (etc.)? Como sair deste círculo vicioso que acaba por fazer os oprimidos aderirem ao sistema que os oprime? Durante a última campanha eleitoral, ouvi um operário dizer na televisão na França: “Como que os burgueses sabem votar em função de seus interesses e os trabalhadores, talvez a maioria deles, votam por interesses que lhes são contrários?” É justamente porque eles estão sob a dominação da ideologia dominante.


Então, como sair dela? A resposta dos reformistas foi por pequenas mordidas: um pouco mais de organização sindical, um pouco mais de votos eleitorais, etc. Então, evidentemente tudo isso é importante: o nível de organização sindical e mesmo os resultados eleitorais são índices das relações de força. Em países capitalistas desenvolvidos que têm hoje quase um século ou mais de um século de vida parlamentar, não seremos mais do que algumas centenas ou milhares de militantes no assalto ao poder se não construirmos relações de força no terreno sindical, no terreno social e também, mesmo que ele seja muito distorcido, no terreno eleitoral.


Portanto, de fato há esta mudança por fazer. Mas a ilusão reformista é a de que – para retomar uma fórmula que foi utilizada – a maioria eleitoral terminará por se juntar à maioria social e que em consequência disso a transformação da sociedade pode ser resultado de um simples processo eleitoral. Todas as experiências do século XIX e XX mostram o contrário. Só há possibilidades revolucionárias em certas condições relativamente excepcionais. Há condições de crise revolucionária e de situação revolucionária nas quais se produz uma verdadeira metamorfose, não simplesmente um pequeno progresso, mas uma transformação súbita na consciência de centenas de milhares e milhões de pessoas.


Os últimos exemplos na Europa foram o Maio de 68 na França, o “maggio rampante” italiano, 1974-1975 em Portugal… Podemos discutir se a situação foi verdadeiramente revolucionária ou em que medida. Trata-se, em todo caso, de experiências em que vimos pessoas, como se diz, aprenderem mais em alguns dias do que em anos e anos de discursos, escolas de formação, etc. Há uma aceleração da tomada de consciência.


Ritmos, auto-organização, conquista da maioria e internacionalismo


Primeiramente, portanto, toda concepção de estratégia revolucionária deve partir da ideia de que há ritmos na luta de classes, há acelerações, há refluxos, mas sobretudo há períodos de crise nos quais as relações de força podem se transformar radicalmente e colocar realmente na ordem do dia a possibilidade de transformar o mundo ou pelo menos de transformar a sociedade.


Segunda ideia fundamental (estas são ideias bastante gerais): em todas as experiências revolucionárias, vitoriosas ou derrotadas, que podemos revisitar nos séculos XIX ou XX, desde a Comuna de Paris até a Revolução dos cravos ou a experiência da Unidade Popular no Chile, em todas as situações de crise mais ou menos revolucionária, surgem formas de duplo poder, isto é, órgãos de poder exteriores às instituições existentes. Foram os conselhos de fábrica na Itália em 1920-1921, os sovietes na Rússia, os conselhos operários na Alemanha em 1923, os cordões industriais e os comandos comunais (isto é, as associações de vizinhos) no Chile em 1971-1973, as comissões de moradores de ocupação de fábrica até a assembleia de Setúbal em Portugal em 1975. Portanto, toda situação intensa de luta de classes faz aparecer o que chamamos de órgãos de auto-organização, de organização democrática própria da população e dos trabalhadores, que opõem sua legitimidade às instituições existentes. Isto não quer dizer uma oposição absoluta. Os bolcheviques conjugaram durante todo o ano de 1917 a reivindicação de uma Assembleia Constituinte eleita por sufrágio universal com o desenvolvimento dos sovietes. Há uma transferência de legitimidade de um órgão ao outro que não tem nada de automática. É preciso fazer a demonstração prática de que os órgãos de poder popular são mais eficazes em uma crise, são mais democráticos e mais legítimos do que as instituições burguesas. Mas não há situação revolucionária real sem que apareçam ao menos elementos do que chamamos de dualidade de poder ou duplo poder.


Enfim, o terceiro elemento é a ideia da conquista da maioria como condição da revolução. O que distingue a revolução de um putsch ou de um golpe de Estado é ser um movimento majoritário da população. É preciso tomar ao pé da letra a ideia de que a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores, e que, por mais determinados e corajosos que sejam os militantes revolucionários, eles não fazem a revolução no lugar da maioria da população.


Este foi todo o debate dos primeiros congressos da Internacional Comunista, particularmente do terceiro e do quarto, após o desastre do que se chamou de a “ação de março” de 1921 na Alemanha, uma ação efetivamente putschista (golpista), minoritária (à escala da Alemanha da época, isto é, com centenas de milhares de pessoas). Isto abriu um debate na Internacional Comunista em relação àqueles que acreditavam poder copiar de maneira simples a revolução russa, dizendo-lhes: mas atenção, é preciso conquistar a maioria, não no sentido eleitoral – não se trata de ser legalista, dizendo que enquanto não se tiver a maioria no parlamento, não se pode fazer nada –, mas no de uma legitimidade majoritária entre massas, o que é uma ideia diferente.


Aqueles entre vocês que puderem ler – e é sempre útil reler – a História da revolução russa, de Trótski, verão como ele é atento a isso, inclusive ao menor movimento nas cidades, nas eleições locais (etc.), entendido enquanto índice do que amadurece como possibilidade entre as massas. A conquista da maioria se tornou o problema na Internacional Comunista a partir do terceiro congresso de 1921 e fez aparecer as noções de frente única, de reivindicações transitórias e, mais tarde, com Gramsci em particular, de hegemonia. Isto é, trata-se de conquistar uma hegemonia. A revolução não é simplesmente o enfrentamento capital-trabalho na empresa, mas é também a capacidade do proletariado de demonstrar que uma outra sociedade é possível e que ele é a força principal para construí-la. Esta demonstração se faz em parte antes da tomada do poder, senão ela é um salto no vazio, é um salto à vara sem impulso ou um golpe ou um putsch. Portanto, as ideias de reivindicações transitórias e de frente única são ferramentas úteis para a conquista da maioria.


As reivindicações transitórias podem parecer elementares. Na França, nós estamos muito contentes com a campanha de Olivier Besancenot, mas, francamente, um salário mínimo [“smic” - salaire minimum de croissance] de 1.500 euros e uma melhor distribuição das riquezas não são palavras de ordem muito revolucionárias. Há alguns anos elas teriam parecido até muito reformistas. Elas parecem radicais hoje porque os reformistas já não fazem sequer esse trabalho. As palavras de ordem não tem uma virtude mágica, elas não valem por si, mas em uma situação dada, como ponto de partida de uma tomada de consciência. Enquanto se diz hoje que não se pode viver decentemente em um país como a França com menos de 1.500 euros por mês, vemos uma resposta de que não somos realistas: se se elevarem os salários, os capitais vão fugir. Isto coloca um novo problema: como impedir os capitais de fugir? É preciso, portanto, atacar a especulação financeira, atacar a propriedade… O direito à moradia coloca o problema da propriedade fundiária e imobiliária… Então, trata-se de palavras de ordem que, em um momento dado, cristalizam os problemas que podem ser compreendidos e que podem ser uma alavanca para a mobilização de milhares ou centenas de milhares de pessoas, a partir do que pode-se fazer uma demonstração pedagógica, progressiva, na ação e não apenas no discurso, do que é a lógica do sistema capitalista e por que mesmo reivindicações tão elementares e legítimas se chocam de frente com a lógica do sistema.


Este debate pode lhes parecer elementar hoje. Mas, nos debates da Internacional Comunista, aqueles que queriam copiar a revolução russa propunham imediatamente a palavra de ordem de armamento do proletariado… Sim, claro, se quisermos resistir ao inimigo, é preciso chegar a isso. Mas, antes de chegar lá, é preciso primeiro que se dê toda uma tomada de consciência que parte de reivindicações mais elementares: a escala móvel de salários, a divisão do tempo de trabalho, etc. Essas coisas, que são banais para nós, estavam longe de estar adquiridas. Foram objeto de debates muito violentos e duradouros na Internacional Comunista. E em torno dessas reivindicações, que são vividas como necessárias e vitais pela maior parte das pessoas, nós propomos a mais ampla unidade de todos que estão dispostos a lutar seriamente por elas. Esta é a razão pela qual as reivindicações transitórias estão ligadas ao problema da frente única. Sabemos muito bem que os reformistas não irão até o fim. Sabemos bem que eles cederão à chantagem e que se o capital lhes lançar um ultimato, eles capitularão. Mas, por outro lado, o caminho até então percorrido terá um valor de demonstração pedagógica aos olhos daqueles que querem realmente lutar até o fim pelas necessidades vitais, pelas necessidades culturais, pelos direitos à vida, à saúde, à educação, à moradia... E, a partir disso, podemos avançar.


Por fim, quarto elemento: porque não pensamos que a revolução possa resultar em uma sociedade mais igualitária em um só país, cercado pelo mercado mundial, desde o início nós temos a preocupação de construir relações de força internacionais. O fato de construir um movimento internacional – uma Internacional se possível, mas também redes, a esquerda anticapitalista europeia, as reuniões da esquerda revolucionária na América Latina, etc. – faz parte do programa. Novamente, não é um instrumento técnico. É a tradução prática de uma visão política a respeito da dimensão internacional da revolução.


Hipóteses estratégicas e não modelos


Nos doze minutos que devem me restar, eu gostaria de abordar dois últimos pontos.


Primeiramente, nos perguntam se temos um modelo de sociedade. Não temos modelo de sociedade. Não se pode, ao mesmo tempo, dizer que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores e supor ter em nossas bagagens os planos com as dimensões da cidade futura, etc. Por outro lado, o que temos é a memória de um século de experiências de lutas, revoluções, vitórias e derrotas que podemos carregar, transmitir e não apagar. O que temos não é um modelo de sociedade, mas são as hipóteses para uma estratégia revolucionária.


Para os países capitalistas desenvolvidos, onde os assalariados constituem a grande maioria da população ativa, trabalhamos com a ideia de uma greve geral insurrecional. Para alguns, isso pode parecer uma ideia do século XX, talvez do XIX, mas não quer dizer que a revolução assumirá forçosamente a forma de uma greve geral perfeita, de uma greve geral com piquetes de greve armados e que seria insurrrecional. Mas quer dizer que nosso trabalho é organizado nesta perspectiva, que através de lutas e greves locais, greves regionais e de setores, tentamos familiarizar os trabalhadores com a ideia de greve geral. Isso é muito importante, porque em uma situação de crise é o que pode permitir que haja espontaneamente uma reação de massas neste sentido.


No Chile, no momento do golpe de Estado de Pinochet em setembro de 1973, o presidente Allende, que ainda dispunha da rádio, não convocou a greve geral. Se tivesse havido um trabalho metódico e sistemático nessa direção, teria sido possível haver uma greve geral espontânea com ocupação de fábricas, que talvez não tivesse impedido o golpe de Estado, mas teria tornado isso pelo menos muito mais difícil. E de uma luta que se perde lutando recupera-se sempre mais rápido do que uma luta que se perde sem lutar. Esta é quase uma regra geral de todas as experiências do século XX. Trabalhar com a ideia de uma greve geral não é proclamá-la permanentemente, mas fazer amadurecer a ideia, para que ela se torne quase um reflexo de resposta do mundo assalariado diante de uma agressão patronal, de um golpe de Estado ou de uma repressão antidemocrática.


O levante de julho de 1936 na Catalunha e na Espanha contra o golpe de Estado dificilmente teria sido imaginável sem o trabalho prévio, sem a experiência de Astúrias em 1934, sem o trabalho do POUM e dos anarquistas, etc. Trabalhar com uma perspectiva de greve geral significa proclamá-la tola e abstratamente, mas que se busca se apropriar de todas as experiências que já criam hábitos, familiarizam e cultivam reflexos no movimento de trabalhadores. A insurreição não é necessariamente a insurreição de Outubro, revista de maneira lírica pelo filme de Eisenstein – mesmo que ele seja esplêndido –, mas pode ser coisas muito simples: a autodefesa de um piquete de greve, o trabalho no exército, os comitês de soldados quando houver um exército de recrutamento baseado em serviço militar obrigatório na França ou em Portugal (etc.): é tudo o que desorganiza as forças de repressão da burguesia. Estes são, portanto, fios condutores que nos permitem estabelecer um elo entre as lutas cotidianas, mesmo as mais modestas, e o objetivo que nós perseguimos.


Hoje, muitos camaradas, na Itália, França e creio que um pouco por toda parte, insistem na necessidade de organizações independentes dos partidos social-liberais, social-democratas, etc. Mas por que querer organizações independentes? Porque nós buscamos um outro objetivo, porque temos uma ideia de para onde nós queremos ir. Sabemos que participar de um governo burguês ao lado dos social-democratas – poderemos talvez ganhar uma pequena reforma – nos afasta do objetivo em vez de nos aproximar dele. Pois isso aumenta a confusão e não a esclarece. Evidentemente, se não adotamos o critério de saber em direção a qual objetivo queremos avançar e de ter não uma resposta definitiva, mas ao menos uma ideia sobre a maneira de chegar lá, então nós somos abalados pela menor situação tática, pela menor decepção eleitoral, pela menor derrota.


Para construir na duração, é preciso ter uma ideia precisa. Provavelmente a revolução nos surpreenderá. As revoluções por vir jamais serão a simples repetição de revoluções passadas, simplesmente porque as sociedade não são mais as mesmas. Repito com frequência que estamos um pouco como na situação dos militares: eles aprendem nas escolas de guerra a partir das batalhas passadas, mas as novas batalhas jamais são as mesmas. É por isto que se diz que os militares estão sempre com o atraso de uma guerra. E nós corremos sempre o risco de estar com o atraso de uma revolução. Mesmo os mais revolucionários são surpreendidos. Os bolcheviques, apesar de sua reputação, se dividiram quando chegou o momento da insurreição de Outubro. Nenhuma organização revolucionária é um partido de aço, monolítico… A prova final se dará quando a ocasião se apresentar.


A questão do partido


O último ponto que eu gostaria de abordar é a questão do partido. Esta não é uma questão técnica: temos uma estratégia e construímos uma ferramenta para ela. A questão do partido é precisamente parte da questão estratégica. Tentar imaginar uma estratégia sem partido é como um militar que teria em suas bagagens cartas de um estado-maior e planos de guerra, mas que não teria tropas nem exército. Só há realmente estratégia se há, ao mesmo tempo, a força que a carrega, a encarna e a traduz no dia a dia, na prática, etc. Esta é toda a diferença entre a ideia de partido nos grandes partidos social-democratas anteriores a 1914 e em Lênin. Hoje Lênin não é muito popular. Mesmo na esquerda radical ele aparece como autoritário, etc... Eu acredito que há nisso uma grande injustiça, mas este não é o tema de hoje.


No que Lênin mudou e revolucionou a ideia de partido? Para os grandes partidos social-democratas, a tarefa era essencialmente pedagógica, uma tarefa de educador, embasada na concepção de uma espécie de lógica espontânea do movimento de massas e do partido fornecendo ideias, com escolas muito interessantes. Para retomar a fórmula de um célebre dirigente social-democrata de antes de 1914, o partido não deve preparar uma revolução. A ideia de Lênin é totalmente oposta: o partido não deve se contentar com acompanhar e esclarecer a experiência das massas; ele deve tomar iniciativas, fornecer objetivos para lutas, propor palavras de ordem que correspondem a uma situação e, em um momento dado, ser capaz de orientar a ação.


Para resumir em uma fórmula: a ideia que dominava na II Internacional, em sua grande época, era a de um partido pedagogo ou educador. A partir de Lênin e na III Internacional, a ideia é a de um partido estrategista, um partido que organiza as lutas lhes propondo seus objetivos, e que pode, além disso, organizar e limitar as derrotas, preparando a retirada quando for necessário. Há um episódio famoso: uma derrota, pois foi uma derrota que sofreram os trabalhadores de Petrogrado e de Moscou em julho de 1917, poderia ter sido definitiva se não tivesse havido um partido para organizar a retirada e retomar a iniciativa. Portanto, o partido não é uma ferramenta qualquer. É indissociável do programa e do objetivo que nós fixamos.


Enfim, e esta talvez seja a última palavra que darei a respeito do partido, temos mais uma coisa a considerar. Não se trata, para nós, simplesmente de um partido de luta, de combate, de ação. Trata-se de um partido democrático, pluralista. Algumas vezes entre nós este é um defeito, há excessos, mania de tendências, etc. Por vezes é útil, por vez é menos… Mas, por outro lado, apesar dos inconvenientes, nós prezamos muito por isso porque o pluralismo na organização significa que não detemos uma verdade definitiva e que há uma troca permanente entre o partido que nós queremos construir e as experiências do movimento de massas. E como estas experiências são diversas, esta diversidade pode se traduzir em tal ou qual momento também sob a forma de correntes em nossas próprias fileiras. E há uma outra razão: se somos a favor de uma sociedade pluralista, se consideramos que existe a possibilidade de uma pluralidade de partidos, e inclusive de uma pluralidade de partidos reivindicando o socialismo, se isto é uma das consequências extraídas da experiência do stalinismo, então é preciso que, de uma certa maneira, nós desenvolvamos a democracia em nossas próprias organizações, em nossas organizações de juventude, em nossas seções da Internacional, mas também na prática que nós tentamos realizar nos sindicatos e associações. Desde já, porque isso é eficaz para as lutas, porque a unidade não caminha sem a democracia, porque se queremos construir frentes amplas contra Sarkozy ou contra qualquer outro, é preciso que ao mesmo tempo as diferentes visões do mundo possam se reconhecer nela. Portanto, a democracia é uma condição e não um obstáculo à unidade. E é também uma cultura democrática que servirá para o futuro, porque a burocracia e a burocratização não são apenas o stalinismo.


Alguns imaginam que a questão está encerrada com o stalinismo. Não! O que produz a burocracia não é o partido ou como alguns dizem hoje a “forma partido”. É a divisão social do trabalho, é a desigualdade. As organizações sindicais e as organizações associativas não são menos burocráticas do que os partidos. Elas frequentemente são ainda mais, porque há interesses materiais envolvidos. As organizações não governamentais [ONGs] no terceiro mundo, que vivem de subvenções da Fundação Ford ou Friedrich Ebert Stiftung, são em grande parte também burocratizadas e por vezes corruptas. Não é a forma de organização que cria a burocracia. As raízes da burocracia estão na divisão do trabalho entre trabalho intelectual e manual, na desigualdade diante do tempo livre, etc. Portanto, a democracia tanto na sociedade como nas nossas organizações é a única arma que temos.


Hoje isso é ainda mais importante (e terminarei com isso). As pessoas têm uma visão de que um partido é uma brigada, que é militar, é disciplina, é autoridade, é a perda de sua individualidade… Eu penso exatamente ao contrário. Nos dias de hoje não se é livre sozinho, não se é genial sozinho. Nos tornamos assim em nossa individualidade, mas em uma organização de luta coletiva. E se tomarmos as experiências políticas recentes, os partidos, com todos os seus inconvenientes, com seus riscos de burocratização – inclusive nossos pequenos partidos –, são apesar de tudo a melhor forma de resistir a formas bem piores de burocratização e de corrupção pelo dinheiro. Estamos em uma sociedade em que o dinheiro está em todo o lugar e a tudo corrompe. Como resistir a isso? Não é pela moral. É por uma resistência coletiva ao poder do dinheiro. Cada vez mais nos deparamos com a força dos meios de comunicação, e por vezes é o mesmo. Porém as mídias tendem a desapossar as organizações sociais e as organizações revolucionárias de suas próprias palavras e de seus próprios porta-vozes. Há um mecanismo de cooptação do quadro de pessoal político pelas mídias. São as redes de televisão que decidem: este tem uma boa cabeça, este recebe bem a luz, aquela é bastante simpática... Eles fabricam isso. Nós queremos preservar o controle de nossa palavra e de nossos porta-vozes. Não acreditamos em salvador supremo nem em indivíduos milagrosos. Sabemos que o que fazemos é resultado de uma experiência e pensamento coletivos. Esta é uma lição de responsabilidade e humildade. A importância das mídias em nossas sociedades desresponsabiliza as pessoas. Muitas pessoas defendem na televisão uma ideia completamente excêntrica e uma semana depois mudam sem jamais se explicarem, sem jamais prestar contas sobre o que disseram. Nossos porta-vozes Francisco Louçã em Portugal, Olivier Besancenot na França ou Franco Turigliatto na Itália são responsáveis, pelo que dizem, diante de centenas e milhares de militantes. Não são indivíduos que falam de acordo com seus caprichos ou emoções do momento. Falam em nome de uma coletividade e têm responsabilidades diante dos militantes que lhes mandataram. Isso é, para nós, uma prova de democracia. E, contrariamente ao que se diz, os partidos políticos tal como nós o concebemos – não os grandes aparelhos eleitorais – constituem a melhor resistência precisamente democrática a um mundo que é muito pouco democrático… e são um dos elos, uma das peças, do que entendemos por estratégia revolucionária.


1º de julho, 2007.


Publicado em Inprecor n. 558-559, fevereiro-março de 2010. Os subtítulos são da redação de Inprecor.


Observação: esta publicação foi atualizada em março de 2023 com uma tradução feita diretamente do original em francês. A tradução anterior havia sido foi feita a partir do castelhano.

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