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Espinosa, pensador da liberdade burguesa (Ernest Mandel)


Espinosa, pensador da liberdade burguesa

(1978)

Ernest Mandel

Tradução de Leonardo R. Silvério

Revisão de Cristina Justino do Nascimento



Anunciador da liberdade de crença religiosa [1], fervoroso defensor da liberdade de opinião, de expressão, de imprensa e da educação [2], resoluto defensor da liberdade de assentamento e do comércio, bem como defensor do armamento geral das pessoas: sem dúvidas Espinosa [Baruch/ Benedito de Spinoza/ Espinoza] foi, praticamente em todas as áreas da vida social, o desbravador do liberalismo moderno. É dito que ele foi o primeiro pensador político moderno que chamou a si mesmo de democrata [3] e abertamente expressou sua preferência pela forma do Estado democrático.


Contudo, seus trabalhos políticos, o “Tractatus Theologico-Politicus” e o “Tractatus Politicus”, parecem marcados por uma profunda contradição. Numerosos autores tratam essas obras como um compromisso entre, por um lado, a proclamação da quase suprema e ilimitada soberania de um Estado absoluto, semelhante àquele presente no “Leviatã”, de Hobbes, e, por outro lado, uma ênfase sobre os direitos individuais tal como eles foram concebidos mais tarde pelos pensadores revolucionários franceses da segunda metade do séc. XVIII como Jean-Jacques Rousseau [4]. Tais autores sublinham que Espinosa enfatiza o dever de obedecer a toda autoridade estatal. Alguns autores vão ainda mais longe a ponto de chamá-lo um franco oponente do pensamento subversivo, ou ainda um pensador antirrevolucionário e político [5].


Indubitavelmente no escrito de Espinosa pode-se encontrar passagens nas quais ambas as interpretações são permitidas [6]. Mas realmente há uma contradição entre esses dois pontos de vista e opinião? Espinosa é certamente um tipo de pensador esquizofrênico? Dada a estrita lógica de pensamento que caracteriza toda sua obra, essa tese é dificilmente crível. É dificultoso imaginar que o próprio Espinosa não tenha reconhecido essas contradições. Consequentemente, deve-se esforçar para explicar essas contradições e investigar se não há uma coerência subjacente. Em outras palavras: nós estamos lidando com contradições reais ou aparentes? Espinosa é ou não é um defensor consistente da liberdade burguesa e da liberdade dos cidadãos e dos indivíduos burgueses?


Estou atento quanto a essas duas tentativas para desvendar o complicado nó de Espinosa sobre a aparente relação contradição com a liberdade burguesa.


A primeira tentativa é uma interpretação psicológica. Ela é baseada na transposição de algumas ideias filosóficas do autor para o campo da teoria política. Sendo assim, de acordo com a “Ética” de Espinosa, a liberdade reside no entendimento racional e no aumento de controle que o indivíduo pode adquirir sobre o passional [passionate], paixões egoístas que direcionam suas ações elementares, liberdade é uma função do indivíduo racional, do esforço individual e da inteligência pessoal. Isso significa que a liberdade é um dom de uma elite intelectual [7]. As grandes massas, sujeitas às paixões primitivas, podem, por definição, não serem livres [8]. De acordo com sua essência pessimista, até mesmo uma filosofia misantrópica, Espinosa não poderia ter defendido com consistência a otimista noção de liberdade. Alguns escritores concluem, na verdade, que Espinosa não foi um pensador liberal [9].


Contra essa interpretação da filosofia e convicções políticas de Espinosa podemos trazer numerosas afirmações do próprio grande pensador que não deixa a menor dúvida sobre o direcionamento geral de suas convicções políticas. Espinosa diz diretamente que a real finalidade do Estado é a liberdade de todos. Um Estado todo-poderoso que repousa apenas sobre o medo e sobre a pessoa governada pelo medo não pode governar através da razão [10]. Sendo assim, o melhor Estado deve repousar sobre uma multidão livre [11]. O que resulta em Espinosa, que expressa algumas opiniões revolucionárias mais do que um século antes da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, sendo um “elitista” que despreza a democracia e apenas aumenta as contradições ao invés de resolvê-las. Longe de ser um seguidor dos passos de Hobbes como um admirador de um Estado absoluto e autoritário, Espinosa dá um enorme passo que antecipa a proclamação dos direitos dos cidadãos contra o Estado [12].


Nós poderíamos descrever a segunda tentativa de resolver a contradição como historicista. No “Tractatus Theologico-Politicus”, a concepção de Espinosa relativa ao Estado supostamente evoluiu distante de Hobbes que foi, conjuntamente com Maquiavel, indubitavelmente o ponto inicial da filosofia política de Espinosa, mas também o ponto que ele consistentemente tentou superar [13]. Suas ideias ainda estavam em um processo de elaboração e conclusão, e evoluindo em direção à democracia política. Então veio o choque do assassinato de seu amigo, o republicano estadista Johan de Witt [14], por uma multidão feroz. Como resultado, Espinosa mudou algumas de suas ideias. Ele agora acreditava que as pessoas não estavam preparadas para os direitos políticos. Daí o tom “neutro”, até mesmo cético, do “Tractatus Politicus”, que foi suposta e decididamente menos democrático, sim, até mesmo menos liberal que o “Tractatus Theologico-Politicus”. Isso foi um passo para trás em direção a um tipo de realismo maquiaveliano [15]. Depois de tudo, a questão não é mais “Qual é o melhor regime político?”, mas se tornou “Como pode um regime político – monarquia, aristocracia oligárquica ou democracia – funcionar de maneira estável e sobreviver?” [16].


Essa é a interpretação parcialmente posta antecipadamente no trabalho impressionante do Professor Feuer [17] – em nossa opinião, é de longe o melhor tratamento a respeito do pensamento político de Espinosa. Mas sérias objeções podem ser levantadas contra essa interpretação. Uma minuciosa crítica textual não permite a consideração de que o “Tractatus Politicus” como um passado para trás na defesa das liberdades civis em relação ao “Tractatus Theologico-Politicus”. Ambos os livros claramente possuem diferentes funções políticas. O “Tractatus Theologico-Politicus” é uma obra pragmática, que tem a intenção de alcançar um objetivo concreto: defender o partido dos Estados Holandeses [Staatsgezinde party] do círculo ao redor de Johan de Witt contra as forças calvinistas. O “Tractatus Politicus”, por outro lado, tem um escopo teórico mais geral – embora em suas produções a tentativa de encontrar uma explicação para a derrota dos republicanos do partido dos Estados Holandeses em 1672 [18] indubitavelmente desempenha um papel.


Não obstante, não se deve considerar o “Tractatus Politicus” como menos liberal ou menos democrático do que o “Tractatus Theologico-Politicus”. No “Tractatus Theologico-Politicus”, nós encontramos passagens que expressam o ceticismo a respeito da competência política das grandes massas até mais bruscamente do que o que nós encontramos no “Tractatus Politicus”[19]. E, assim como nós tentaremos provar brevemente, o “Tractatus Politicus” contém um elemento revolucionário-democrático que constitui um passo extraordinariamente importante que antecipa o “Tractatus Theologico-Politicus”.


Queremos agora apresentar nossa própria interpretação contra essas duas tentativas. Ela pode ser resumida da seguinte maneira: Espinosa era um consistente e revolucionário defensor da liberdade burguesa. A aparente contradição entre o princípio de liberdade e algumas de suas ideias políticas refletem as limitações inevitáveis ao conceito burguês de liberdade no geral, especialmente nos séculos XVII e XVIII.


Para apoiar essa interpretação, nós vamos avançar em vários conjuntos de argumentos.


Em primeiro lugar, a crítica textual deve considerar as circunstâncias da prática política sob as quais o trabalho político de Espinosa fora publicado. É verdade que em cerca de 1670 a República Holandesa certamente era o Estado mais livre da Europa. Apesar disso, a liberdade de expressão pública e de imprensa estavam sob constante pressão calvinista e muito mais limitada do que em vários países ocidentais no séc. XVIII, sem mencionar o séc. XX. Nós não devemos esquecer que o “Tractatus Theologico-Politicus” teve que ser publicado anonimamente. Disso podemos tirar a conclusão que diversas passagens de ambos tratados foram por razões de segurança escritos com tom de ironia. Isso foi necessário para proteger o autor, seus amigos políticos e seus publicadores de perseguições. Ao invés de interpretar literalmente a opinião de Espinosa, nós devemos tratar essas passagens como formulações irônicas.


Madeleine Francès corretamente deu um bom exemplo disso no capítulo III, parágrafo 9 e capítulos IV parágrafo 6 do “Tractatus Politicus”, nos quais os poderes absolutamente ilimitados do Estado são aparentemente defendidos com o recurso sofístico da lei natural: tudo que o Estado pode fazer é com direito [20]. Essas linhas foram então imediatamente seguidas pela passagem que foi interpretada por diferentes pessoas, incluindo Emilia Giancotti Boscherini, como direito de insurreição, como direito de revolução:


“Em terceiro ou último lugar, será considerado que essas coisas não estão dentro do direito da comunidade, que causa indignação na maioria. Para isso é certo, que pela orientação do homem natural conspira em conjunto, também através do medo comum, ou com o desejo de vingança de uma dor comum; e como o direito da comunidade é determinado pelo poder comum da multidão, é certo que o poder ou o direito da comunidade é de longe reduzido, o que dá oportunidade para vários conspirarem juntos” [21].


Isso é expresso ainda mais claramente em seguida. Considerar que a proclamação do direito de insurreição contra um governo que é oposto pela maioria da população e não oferece um meio legal para substituí-lo só poderia ser declarado um século após o esboço do “Tractatus Politicus”, na Declaração de Independência dos Estados Unidos em 1776. Assim podemos mensurar a audácia das ideias políticas de Espinosa!


Algumas vezes é sugerido que tais ideias são apenas uma extensão da doutrina do tiranicídio, o qual faz parte da teoria política desde a antiguidade e durante as guerras religiosas do séc. XVI! – depois da noite de São Bartolomeu! – foi elaborado particular e nitidamente pelos Huguenotes Franceses (cf. o famoso De Vindiciae contra tyrannos de 1579) [22]. Em nossa opinião, isso subestima o progresso radical representado pela filosofia política de Espinosa. Ao passo que a doutrina da rebelião legítima contra tiranos é ainda diretamente derivada da provisão da soberania do rei (que é declarada para ser limitada), a legitimidade de Espinosa da revolução repousa sobre a doutrina da essência do Estado como servo do bem-estar dos cidadãos. Quando essa função não é cumprida, os cidadão têm o direito de revolta.


Isso não demora para demonstrar que essas legitimação teórica da revolução burguesa é um produto da experiência histórica com atuais e reais revoluções – A Holandesa e a Inglesa. Ainda que Espinosa, tal como Hobbes, seja um cético sobre o efeito das revoluções – ambos escreveram após a vitória provisória da contrarrevolução na Inglaterra – ele não tira a mesma conclusão que Hobbes, que concluiu que todas as revoluções são necessariamente ilegítimas.


Em segundo lugar, nós devemos localizar completamente a limitação histórica da concepção burguesa de liberdade. Sua liberdade civil-parlamentar foi a primeira e principalmente a liberdade do proprietário, o pagador de impostos, para ter fala nos gastos do Estado pago pelos impostos. Isso não se opõe, portanto, ao princípio de liberdade – à liberdade de propriedade privada – para excluir os despojados e dependentes do direito de voto. Havia um perigo de que esses que não pagam impostos pudessem impor mais e mais gastos estatais a esses que pagavam, se tais pessoas não fossem excluídas. Esse argumento foi apresentado pelos dogmáticos liberais até o final do séc. XIX, e pode ser encontrado em praticamente todos os grandes pensadores burgueses do séc. XVIII e início do séc. XIX, de Locke e Montesquieu à Voltaire e Kant [23]. Não é de surpreender que o século anterior a Espinosa também não foi a favor do sufrágio universal, e explicitamente excluía mulheres e assalariados do direito de voto em uma comunidade democrática [24].


Dizendo de passagem, eu quero sublinhar que o contexto histórico-linguístico faz com que a tradução de “servos” para “escravos” [slaves] em uma tradução insustentável do famoso Alto Inglês. Nosso colega Préposiet sugere que “servos” pode ser traçado ao servos pessoais, mas nesse contexto isso também é insustentável [25]. Pieter de la Court, aliado político de Espinosa, usa a palavra “servos” para servidores [servants] no sentido de assalariados, todos aqueles que trabalham para outros, incluindo na produção. Em seu Aanwijzing ele diz que se deve sempre favorecer “os mestres sobre os servidores” [26]. A condenação dos pensamentos rebeldes no “Tractatus Politico-Theologicus” é secamente justificado no modelo burguês quando Espinosa diz que é inaceitável não manter promessas. A palavra “promessas” aqui pode ser interpretada em sentido geral, significando “obrigações” e “contratos”, incluindo letra de câmbio [27].


O caminho no qual Espinosa avança, elabora e transforma a doutrina de Hobbes da origem contratual do Estado dá uma confirmação notável de sua quase atitude democrática clássica-burguesa. Hobbes discute a transferência dos direitos pessoais ao Estado, para escapar dos horrores do “estado natural” – em termos Marxistas nós poderíamos dizer: a sociedade sem classes. A transferência original significa alienação dos direitos pessoais. Eles não desempenham um futuro papel na concepção de Hobbes sobre o Estado [28]. Não há necessidade de elaborar além sobre o caráter puro burguês do “conceito de contrato-social” – por pouco geralmente mascarado de o que acontece entre a comodidade dos proprietários sobre o mercado.


Com Espinosa, entretanto, as coisas estão tornando-se muito mais sofisticadas, mais democráticas. O cidadão individual, de fato, renuncia aos seus direitos para a comunidade. Mas isso não é apenas para escapar do medo que supostamente rege-o no estado natural, mas também para desfazer a insegurança que o previne de obter certos direitos de subsidiários e benefícios. Entre esses, Espinosa explicitamente inclui a propriedade privada, que apenas pode ser garantida após a emergência do governo, lei e justiça, desde que, no estado de natureza, a propriedade comum prevaleça. Assim, do ponto de vista da burguesia, não há apenas alienação do completo poder originário do indivíduo para o Estado; com Espinosa o contrato social torna-se um contrato autêntico, um quid pro quo [tomar uma coisa por outra]. O proprietário do produto aceita uma restrição parcial de sua liberdade pessoal vinda do Estado burguês, porque esse Estado cria uma garantia legal para o respeito dos termos de trocas. E pela introdução de um sistema de moeda corrente unitária, sistema alfandegário, sistema de impostos, sistema de lei civil, o desenvolvimento da circulação e produção de commodities etc., a consolidação da propriedade privada é imensamente facilitada. Essa é a síntese teórica e filosófica do balanço patrimonial histórica das lutas seculares da burguesia com e ao redor do poder do Estado pré-capitalista. Até mesmo J.J. Rousseau não formularia essas questões tão claramente a partir de um ponto de vista puramente burguês.


E desde que os interesses privados estejam em última instância na base do contrato social, através do “Tractatus Politicus” – apesar de algumas cláusulas sugerirem o oposto – o governo soberano da comunidade se mantém como soberano apenas como uma função do desejo dos cidadãos para reconhecê-lo enquanto tal [29]. Se o quid pro quo estiver quebrado, então o contrato praticamente se torna vazio e nós retornamos à atual guerra civil:


“Contratos ou leis, através do qual a multidão transfere seus direitos a um conselho ou homem deve, sem dúvidas, quebrá-los quando for conveniente para a efetivação do bem-estar geral. Mas para decidir esse ponto, se é conveniente ou não para o bem-estar geral quebrar o contrato, é dentro do direito de nenhuma pessoa privada, mas daquele apenas que detém o domínio [Sec. 3]; portanto sobre essas leis aquele que detém o domínio permanece o único sendo o único intérprete. Além disso, nenhuma pessoa privada pode por direito reivindicar essas leis, e então elas não podem realmente aderir àquele que detém o domínio.


“Não obstante, se eles são assim uma natureza que não pode se quebrar sem que ao mesmo tempo enfraqueça a força da comunidade, que, sem ao mesmo tempo mudam para indignação o medo comum da maioria dos cidadãos, pelo fato que a comunidade está dissolvida, o contrato chega ao fim; e assim tal contrato é reivindicado não pela lei civil, mas pela lei da guerra. E então aquele que detém o domínio não é obrigado a observar os termos do contrato por nenhuma outra causa que essa que oferece um homem no estado de natureza que deve se acautelar de ser seu próprio inimigo, para que ele não venha a se destruir...” [30]


Philip II da Espanha, Charles I da Inglaterra, George III da Inglaterra, Louis XVI da França e Tzar Nicholas III da Rússia pagaram um alto preço por suas incompreensões pessoais – e a incompreensão da classe que eles encarnaram – da simples e profunda verdade que Espinosa engenhosamente sintetizou. Aqui Espinosa em uma brilhante forma antecipa a teoria geral das revoluções políticas.


Em terceiro lugar, nós não podemos ignorar o estágio específico de desenvolvimento da burguesia emergente no dia de Espinosa. Na segunda metade do séc. XVII, a burguesia ainda não era a burguesia triunfante da segunda metade do séc. XVIII e do séc. XIX, que o véu ilimitado de otimismo sobre as leis do mercado, a liberdade econômica, e o liberalismo laissez-faire. Na época de Espinosa, foi uma burguesia que continua lutando pela supremacia econômica, que continua fraca pré-industrial. O centro de gravidade ainda eram as trocas internacionais e bancária. Essa burguesia emergente ainda tinha que proteger a liberdade econômica das trocas tal como uma muda frágil.


Essa burguesia é confrontada com uma massa popular que ainda não consistia no proletariado moderno, ou até mesmo no semiproletário ou artesão e trabalhadores assalariados ocasionais – os famosos bras nus da Revolução Francesa [31]. A massa popular das cidades holandesas da segunda metade do séc. XVII consistiam em uma maioria independente de artesãos, pescadores e vendedores, seguidos por uma minoria de pobres miseráveis que viviam de esmolas da igreja calvinista. Os “servidores”, i.e., assalariados, eram apenas o terceiro grande grupo. O interesse socioeconômico e político dessa massa popular no geral nada tinha em comum com essa burguesia financista e comerciante, menos ainda com esses armadores que formam a transição entre o trabalho de campo e manufaturado. Do contrário, essa massa era conservadora, protecionistas, monopolista.


O monopolista, artista calvinista pequeno-burguês dificilmente superou a Idade Média e para um grau de interesses de compartilhamento material com o monopolistas Holandeses Ocidentais da Companhia das Índias e os grandes latifundiários que os apoiaram. Que essas forças aliadas contra o partido dos Estados Holandeses [Staatsgezinde party] da recente burguesia foi, sem sentido, o resultado de mal-entendido ou estupidez, como vários autores assumem por engano.


Diferentemente durante a Revolução Francesa ou nas revoluções de 1830 e 1848, até mesmo a temporária aliança entre burgueses liberais e a maioria das massas populares que se levantaram contra um obstáculo insuperável: relações econômicas ainda não amadurecidas. Portanto, a rápida derrota do lado apoiado por Espinosa, os Estados Holandeses [Staatsgezinden]. Isso explica o ceticismo de Espinosa a respeito da liberdade política para as massas populares, um ceticismo que foi preenchido em concomitância com os poderes das relações sócio-políticas concretas de sua época.


Espinosa, como um apoiador da liberdade civil em geral, corajosamente proclama que a uma comunidade de livres cidadãos é a única razoável e, portanto, a melhor comunidade. Espinosa, como um defensor dos interesses da burguesia de seu tempo, acrescenta a isso que se deve ser cauteloso e cético a respeito das consequências práticas da liberdade política para as amplas massas, hic et nunc [aqui e agora]. Mas se compararmos com a passagem relevante sobre a inevitável luta civil e revoltas sob as relações democráticas do “Tractatus Politicus” com as partes paralelas do “Du contrat social” de J. J. Rousseau (escrito um século depois sob condições muito mais favoráveis à burguesia e, assim, para a liberdade burguesa do que em 1672), que reconhece quão mais audaciosas e radicais foram as ideias políticas de Espinosa do que essas das grandes mentes do Iluminismo Francês. Não até a Revolução Francesa, quando os próprios revolucionários aparentavam em um estágio durante a Revolução poderia ter avançado mais com uma posição radical.


“Tractatus Politicus”:


“Experiência é pensar em ensinar algo...não há domínios tão pouco duradouros, como aqueles que foram populares ou democráticos, tampouco qualquer um no qual há muitas sedições. Ainda se escravidão, barbárie e desolação forem chamadas de paz, os homens não poderiam ser mais infelizes. Sem dúvidas há, geralmente, mais e mais baratas brigas entre pai e filhos do que entre mestres e escravos; isso ainda avança não para a arte do trabalho doméstico para mudar o direito de um pai para o direito de propriedade e contagem de crianças, mas como escravos” [32].


“Du contrat social”:


“...não há governo tão sujeito às guerras civis e agitações intestinais como a democracia ou o governo popular, porque não há um que mantenha uma tendência tão forte e permanente para mudar de forma, ou que demande mais vigilância e coragem para sua manutenção. [...] Se houvesse um povo de deuses, seu governo seria democrático. Um governo tão perfeito não é para os homens” [33].


Há um último aspecto importante da ação consistente de Espinosa a favor da liberdade burguesa e é o mais surpreendente.


Na história da luta de classes ideológica entre burguesia e as classes não-burguesas pré-capitalistas, o princípio de liberdade tem um papel central estratégico, mas simultaneamente ambíguo. A disputa da burguesia pelos direitos humanos é uma luta que beneficiou toda a humanidade. Os movimentos dos trabalhadores modernos querem preservar e desenvolver essa herança positiva do Iluminismo e das grandes revoluções burguesas-democráticas, todas as burguesias, ainda mais quando a burguesia decadente cada vez mais a esmaga sob seus pés [34][34].


Mas liberdade econômica, na instância final da força motriz da cruzada burguesa, é sempre uma liberdade que beneficia apenas uma minoria. Liberdade de empreendimento necessariamente cresce para liberdade de exploração. O proletariado é uma classe “livre” comparada aos servos [serfs] – mas é também “livre” do sentido de subsistência, separada do sentido da vida e da produção. Liberdade econômica para a burguesia não pode funcionar sem a coerção econômica que força os assalariados a venderem sua força de trabalho.


A “extrema esquerda” do humanismo burguês dos séculos XVI, XVII e XVIII foi o lar para apenas alguns bravos espíritos que tiveram, se não uma clara realização, ao menos uma intuição dessa ambiguidade do princípio burguês de liberdade. Essa categoria inclui primeiro e principalmente a utopia socialista primitiva, o inglês Thomas Morus, o italiano Campanella e a francesa Morelly. Isso também inclui a grande Alemanha revolucionária de Thomas Münzer. E entre eles está Benedito de Espinosa.


A ambiguidade do princípio burguês de liberdade burguesa resulta de uma função dual da propriedade privada, da riqueza privada. A propriedade privada liberta seus proprietários, mas ao mesmo tempo condena os números crescentes de cidadãos livres para se tornarem não-proprietários, i.e., para serem economicamente dependentes e privados de liberdade. Espinosa não foi um economista e suas atitudes acerca da propriedade aparentam terem sido inspiradas por motivos éticos e filosóficos. Ainda que ele fosse da opinião de que a propriedade é um vício porque promove nossas paixões e nosso egoísmo, e impede o controle pela razão [35]. Isso nos parece ser mais real do que aparência.


A biografia de Espinosa é essencial para o retrato completo de nosso Espinosa. Ele foi um mercador, que de repente deixou de lado sua fortuna e suas altas expectativas de prosperidade. Ele era uma pessoa diferente de outros como Huygens, Locke e Voltaire, que se tornaram ricos e não eram apenas na teoria capitalista. Espinosa ganhou um escasso salário como artesão: como um moedor de lentes ópticas. Ele se afastou da comunidade Menonita em Leiden. Essa comunidade foi herdada de seus predecessores, os Anabatistas, uma parte do credo da comunidade, embora os Menonitas tenham substituído a agitação revolucionária dos Anabatistas com o quietismo [forma de cristianismo místico] como retirada de toda atividade política [36].


Até mesmo quando Espinosa deixa a comunidade e vai para a Haia, onde ele está em um círculo de ricos amigos políticos, ele permanece fiel ao seu modo de vida modesto [37]. Ele nunca perdeu suas atitudes críticas para Johan de Witt [38]. Ele era também muito realista para se tornar socialista em um tempo em que as condições socioeconômicas não eram maduras. Mas ele era muito crítico da burguesia para negar os problemas sociais criados pela liberdade burguesa. Daí sua proposta surpreendente – duzentos anos antes da primeira legislação social – de que o Estado deveria cuidar dos pobres [39]. Isso não é apenas uma manobra política com intenção de reduzir a influência do calvinismo. Há também propostas que contradizem o interesse fundamental da classe da burguesia. Aqui nós atingimos o limite externo da liberdade burguesa, quando em sua consistência mais distante começa a ignorar a burguesia e o capitalismo. E nessa fronteira, nós encontramos nosso grande pensador!


De fato, Benedito de Espinosa foi um dos pensadores mais audaciosos e revolucionários de todos os tempos!



– Originalmente publicado em: Tijdschrift voor de studie van de Verlichting, Themanummer: De politieke filosofie van Spinoza, 6 de jaargang, 1978, nrs. 1-4, pp. 241-254. Disponível em http://www.ernestmandel.org/nl/werken/txt/1978/spinoza.htm. Tradução para o inglês de Alex de Jong.


Notas [1] Espinosa é o primeiro pensador político a secularizar o Estado e a política, separando-os da religião. Entre outras fontes, ver “Jean Préposiet,Spinoza et la liberté des hommes (Paris, 1967)”, pp. 136-7. [2] “Tractatus Theologico-Politicus” citado aqui e demais a partir de “The Chief Works of Benedict de Spinoza, introduction and translation by R.H.M. Elmes (New York, 1951), vol. I”, p. 259. [3] “L.S. Feuer, Spinoza and the Rise of Liberalism (Boston 1958)“, p. 101. Espinosa enfatiza isso no “Tractatus Theologico-Politicus” (op. cit. p. 262) que a regra da democracia é superior. [4] "Tractatus Politicus”, citado aqui e demais a partir de “The Chief Works of Benedict de Spinoza, vol. I“, op. cit. [5] Ver a introdução de Gebhardt à edição alemã de “Tractatus Theologico-Politicus(Leiden, 1925), p. 21. Também ver Paul Vernière, “Spinoza et la pensée française avant la révolution (Paris, 1954)”. [6] Ver também a passagem no “Tractatus Theologico-Politicus” que condena a afirmação de pensamentos rebeldes (op. cit., p. 262). Isso é repetido no “Tractatus Politicus” (op. cit. p. 326). É também afirmado que mesmo as instruções injustas de um Estado devem ser executadas [implemented] (op. cit. pp. 302-3). [7] “Ética“, citada aqui e demais a partir de “Ethik, German translation by Otto Raensch (Leipzig, 1922)”, pp. 242, 274, 275. [8] “Tractatus Theologico-Politicus”, op. cit., p. 289. [9] Paul Vernière, op. cit., p. 681 [10] “Tractatus Politicus”, op. cit., p. 313. [11] ”Tractatus Politicus”, op. cit., p. 314, “Tractatus Theologico-Politicus”, op. cit., p. 259. [12] ”Tractatus Politicus”, op. cit., p. 341. [13] Por exemplo, a doutrina do original “estado de natureza” ou a doutrina do deve de obedecer o Estado. [14] Nota do editor: Johan de Witt (1625-72) foi um político fundamental na República Holandesa no período em que o comércio capitalista a tornou uma potência internacional. De Witt foi um líder do acampamento dos republicanos dos Estados Holandeses [Staatsgezinde], o “partido” [party] do comércio da elite que favoreceu a mudança de poder do governo central para o regente, o proeminente comércio capitalista. Seus oponentes eram os Orangistas, apoiadores do príncipe de Orange e da Casa de Orange-Nassau. Era de conhecimento popular que Espinosa e Johan de Witt se conheciam, mas isso desaprovado. Ver “Herbert Harvey Rowen, John de Witt, Grand Pensionary of Holland, 1625-1672 (Princeton, 1978)“ pp. 410-411. [15] Ver, por exemplo, a introdução ao “Tractatus Politicus” op. cit., p. 289. Nós estamos lidando aqui com um mal entendido concernente ao método de Espinosa. O estudo da existência das condições políticas é o ponto de partida dele para estudo científico, mas não há maneira de aceitar essas condições. Espinosa que entender as condições sócio-políticas, de maneira a possibilitar a mudança em direção ao objetivo da liberdade racional para a população. Esses métodos contêm a semente da essência das famosas teses sobre Feuerbach de Marx. [16] “Tractatus Politicus”, op. cit., p. 360. Ver Paul Vernière, op. cit., pp. 684-7. A constituição elaborada por Siéyès foi supostamente inspirada em partes pelo Tratado. Ver George Pariset, “Siéyès et Spinoza”, “Revue de Synthèse historique, vol. XII, 1906”. [17] L.S. Feuer, op. cit., pp. 150-51; também 92-3, 98. [18] L.S. Feuer, op. cit., p. 153. [19] Por exemplo, “Tractatus Theologico-Politicus”, op. cit., final da introdução. [20] Madeleine Francès, ‘La liberté politique selon Spinoza’, Revue philosophique de la France et de l'étranger, no. 3, 203, 1958, juillet-septembre. [21] “Tractatus Politicus”, op. cit., p. 305. Ver também p. 312. [22] De Vindiciae contra tyrannos, citado de Francis William Coker Readings, Political Philosophy, edição revisada e ampliada (New York, 1948), pp. 351ff. [23] Ver: Immanuel Kant, Kant’s Principles of Politics, including his essay on Perpetual Peace. A Contribution to Political Science [1793], trans. W. Hastie, Edinburgh: Clark, 1891); part II, 'Principles of Political Right' (online em: [https://oll.libertyfund.org/titles/kant-kants-principles-of-politics-including-his-essay-on-perpetual-peace], Locke, Second Treatise of Government (1689). [24] “Tractatus Politicus”, op. cit., p. 319. [25] Jean Préposiet, op. cit., pp. 239-40. [26] Pieter de la Court, Interest van Holland ofte Gronden van Holland’s Welvaren (1662), p. 40. Também ver seu Aanwijzing der heilsame politieke gronden en maximen van de Republiek van Holland en West-Friesland (1669). Recentemente um debate similar tomou lugar sobre o sentido da palavra “servidor” [servant] nos escritos dos Levellers [importante partido político na Inglaterra durante o período da Guerra Civil (1642–1651) e a Comunidade (1649–1660)] durante a Revolução Inglesa. Aqui bem concerne a negação do direito de voto a esse grupo. C.B. Macpherson [The Political Theory of Possessive Individualism, p. 107, e “Servants and Labourers in 17th Century England”, em Democratic Theory Essays in Retrieval, Oxford 1973] argumenta por uma tradução de “servidores” [servants] com a inclusão de trabalhadores assalariados. Peter Laslett (‘Market Society and Political Theory’, em Historical Journal, vol. 7, no. 1 (1964) diz que “servidor” [servant] somente inclui servidores domésticos nessa categoria. [27] Ver J.P. Raszjumovski, ‘Spinoza und der Staat’, in Unter dem Banner des Marxismus, 1927, n. 2-3. [28] Para Hobbes, paz significa apenas “lei e ordem”, o oposto de discórdia. Mas para Espinosa, uma “paz” encontrada na escravidão e na tirania é pior do que a discórdia. O subtítulo do “Tractatus Politicus” descreve isso como um tratado que visa provar como evitar a tirania e garantir a liberdade para os cidadãos (op. cit., p. 279). [29] “Tractatus Politicus”, op. cit., p. 297. [30] “Tractatus Politicus”, op. cit., II, § l5, 16. [31] “Tractatus Politicus”, op. cit., p. 296. [32] “Tractatus Politicus”, op. cit., p. 311-312. [33] Um estudo notável do proletário e semiproletário na Revolução Francesa é o livro escrito por Daniel Guérin, Bourgeois et bras nus,1793-1795 (Paris, 2013). [34] “The Social Contract”, livro III, fim da seção ‘Democracy’. Online em: [http://constitution.org/jjr/socon_03.htm#004 ]. [35] “Ethica“, op. cit., pp. 149, 241. [36] L. S. Feuer, op. cit., pp. 42-3, 45, 56, 58. [37] Por exemplo J. Podenfoord (Den Haag, 1697), ‘Avec ses idées de communisme, il tache de détourner les hommes et “les jeunes gens de la bonne vie” ‘(citação de Feuer, op. cit., pp. 55, 273). [38] “Tractatus Politicus”, op. cit., p. 376. Ver também pp. 367, 383-4. [39] “Tractatus Theologico-Politicus”, op. cit., p. 207.

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