Ernest Mandel (1923-1995): economia política no século 20 e o novo projeto socialista
Ingo Schmidt
Tradução de Thales Stewart
Revisão de Pedro Barbosa
Análises marxistas da produção de mercadorias, suas contradições e tendências de crise certamente não são um produto raro. O que falta é uma visão geral, um condensamento de análises sobre as diferentes camadas da realidade capitalista, de maneira que se proporcione ao movimento dos trabalhadores e a outros movimentos um ponto de partida para determinar a ação política.
Das análises de segmentos individuais, por exemplo, do mercado de trabalho ou financeiro, surgem, via de regra, apenas propostas de reformas. Ao mesmo tempo, teóricos da crise discutem se um capitalismo regulado politicamente pode representar uma alternativa real ao neoliberalismo, ou se o capitalismo, tal como sua preponderância, pode ser substituído por uma economia socialista. Enquanto o socialismo for definido apenas negativamente, em oposição ao capitalismo, ele continuará demasiadamente abstrato para poder consolidar as lutas por reformas parciais em um movimento que possa suspender por completo as relações capitalistas atuais.
Sem uma tal orientação estratégica, as lutas por reformas parciais permanecem um trabalho isolado, uma tarefa de Sísifo, que retorna sempre ao ponto de início. Com base nas suas contribuições a respeito da orientação para a política socialista, a economia política marxista não se posiciona com grande destaque, como se poderia supor, ao observarmos sua agitada atividade de produção e publicação.
Teoria e prática
Com isso, os economistas marxistas se encontram hoje (apesar, em parte, das substanciais diferenças) em uma posição semelhante à de Ernest Mandel no início dos anos 60, quando publicou seu “Tratado de Economia Marxista”. Naquele tempo, o capitalismo passava por uma histórica e única fase de prosperidade. As classes subalternas puderam ser integradas através de reformas sociais, sem que fossem ameaçadas as taxas de lucro.
A disposição em aceitar essas reformas se ampliou devido à existência da União Soviética. Enquanto os postos de trabalho no Ocidente eram suficientes e, em parte, assegurados, além de progressivamente melhor pagos, o socialismo comandado do Leste [Befehlssozialismus] era menos atraente.
No período crucial da conjuntura do pós-guerra, socialistas como Mandel se esforçaram na elaboração de uma política socialista, que se atrelasse à crescente inquietação em relação a um mundo completamente “administrado”, e que se adaptasse ao fim da prosperidade e, com isso, ao agravamento das lutas por distribuição. Neste aspecto, eles se depararam com o problema de que o Marxismo voltado ao movimentos dos trabalhadores e anti-imperialistas estava aprisionado nos dogmas moldados pela [busca da] legitimação soviética, enquanto o Marxismo ocidental expressava a confortável convicção de que o conflito de classes no capitalismo tardio era tão abrangente que a política socialista não poderia mais ser concebida como política de classes. Hoje estamos diante do problema de que o conflito de classes se dispersou por todos os lados com o ocaso dos movimentos dos trabalhadores “estatizados” no ocidente e no oriente.
Com o desmanche dos movimentos de classe organizados, também o Marxismo crítico, surgido com Mandel e outros ao longo dos anos 60 e 70, perdeu seu ponto de referência.
Naquele tempo, tal como hoje, coloca-se a questão de se a economia política marxista pode ser renovada de tal maneira que possa contribuir para a elaboração de um novo projeto socialista.
Mandel e outros socialistas da sua geração tentaram, a partir das tradições marxistas do seu tempo, desenvolver inovações teóricas que permitissem uma análise do capitalismo após a segunda guerra mundial.
Hoje nos colocamos diante da questão de se uma concepção correspondente pode introduzir e contribuir para uma política socialista, como fizeram Mandel e outras tradições marxistas para a compreensão do capitalismo desde o fim da guerra fria.
Tratado de economia marxista e capitalismo tardio
Mandel desenvolveu a sua teoria econômica em seu “Tratado de Economia Marxista”, em edição francesa e alemã publicada em 1962, confrontando-se com os desdobramentos históricos. A discussão quanto às sociedades pré-capitalistas e a revolução neolítica lhe permitiu a introdução de conceitos como “sobreproduto social”, “divisão do trabalho”, “divisão de classes”. Um olhar sobre a história do comércio, da essência do dinheiro e das formas dos excedentes agrícolas conduziram-no ao surgimento do capital, cujo desenvolvimento através de crises periódicas e cada vez mais constantes e catalisadas foi por ele acompanhado, passando ainda pelo capitalismo monopolista e pelo imperialismo, até chegar no capitalismo tardio.
O capitalismo tardio foi caracterizado por ele como um período de decadência do capitalismo e como uma fase de travessia para o socialismo. Especialmente destacável neste aspecto são o estreitamento do mercado mundial após a ampliação do comunismo soviético no leste europeu, assim como da revolução chinesa; o conflito entre projetos de industrialização e poder neocolonial nas periferias; além da condução econômica keynesiana e da terceira revolução tecnológica nas metrópoles.
O Tratado de economia marxista abre mão de uma exegese de Marx e de considerações de linhas tradicionais do marxismo. Mandel apresenta a teoria, assim com ele a entende, no contexto dos desdobramentos históricos. Neste aspecto ele não é tão inovador. Com exceção da sua subsequente crítica da União Soviética, inspirada em Trotsky, sua interpretação do desenvolvimento capitalista poderia ter sido evidenciada com o auxílio da teoria do capitalismo de estado monopolista [staatsmonopolistischer Kapitalismus], abordada por marxistas soviéticos.
Apenas em “O capitalismo tardio”, publicado em 1972, Mandel desenvolveu posições autônomas. Algumas já presentes no “Tratado de economia marxista” como esboços a respeito do capitalismo tardio, que depois se tornou o ponto central de uma análise teórica aprofundada.
O ponto de partida é a tese de que as empresas devem buscar lucros maximizados, e que se sobressaíssem à taxa média de ganhos. Com isso, elas recorrem a meios financeiros através dos quais elas possam se destacar das empresas concorrentes. Esses lucros maximizados alimentam-se da formação monopolizada dos preços, inovações tecnológicas e exportações nas periferias, nas quais é mais barato obter força de trabalho do que nas metrópoles.
Com isto, o quadro geral está delimitado, a partir do qual Mandel analisa o papel do Estado e a composição monopolizada do preço [Monopolpreisbildung] por ele [Estado] assegurada no capitalismo tardio. A saber, neste âmbito, trata-se especialmente: do programa econômico, da economia de guerra permanente e da inflação constante moderada por bancos centrais e agentes tarifários. Contudo, ele examinou também as revoluções tecnológicas e a nascente internacionalização dos processos de produção, as quais ameaçavam cada vez mais práticas monopolistas que sustentavam a concorrência também no capitalismo tardio.
Em seguida, ele aborda na sua análise a reação das classes subalternas quanto às diferentes estratégias de acumulação do capital.
A acumulação do capital a ser observada empiricamente é, portanto, não a consumação de uma relação intrínseca do capital, e sim, mais logicamente, o resultado da concorrência e da luta de classes.
Ondas longas e o fim do curto século XX
O capitalismo tardio surge pouco antes do fim da retomada do pós-guerra e no meio do ressurgimento das lutas dos trabalhadores, assim como no contexto de novos movimentos sociais e anti-imperialistas. O prognóstico de Mandel, de que ondas longas não deteriam a decadência do capitalismo de modo duradouro, e que, por fim, conduziriam a novas crises e lutas de classe, foi, portanto, confirmado do modo mais emblemático possível.
Para a confrontação da derrota das esquerdas – do golpe militar no Chile, passando pela eleição de Thatcher e Reagan, até a dissolução da União Soviética –, nem o “Capitalismo tardio” nem outros trabalhos posteriores de Mandel fornecem contribuições.
O “Ondas longas do desenvolvimento capitalista”, publicado primeiramente em língua inglesa, em 1980, não apresenta, enfim, qualquer inovação teórica, pois ele apenas confronta a relação entre as ondas longas da acumulação de capital às lutas de classes. A aplicação dessas inovações na realidade é, porém, problemática, visto que, do final do período de retomada do pós-guerra até o ressurgimento das lutas de classe, elas são reprimidas de baixo, enquanto em qualquer tempo que seja, uma ofensiva do capital já está em curso, de cima.
Em trabalhos posteriores, como em “A crise – economia mundial 1974-1986” e no trabalho realizado com Winfried Wolf “Cash, Crash & Crisis” [“Dinheiro, quebra e crise”, em tradução livre], o desenvolvimento do capitalismo e suas variadas crises são minuciosamente retratados.
Mandel, todavia, se esquiva da questão de se, no capitalismo tardio, a subentendida internacionalização e, com ela, o intrínseco impulso das exportações de capital, assim como a expansão das novas tecnologias da informação levaram a uma nova e longa fase de progresso do capitalismo.
Da mesma maneira, ele evita a questão dos seus efeitos, que podem representar um fracasso dos “experimentos de Gorbatchev” no capitalismo mundial. No “Para além da Perestroika”, lançado em 1989, ele trabalha os limites da reforma do sistema soviético, colocada em marcha pela burocracia; ele não examina, porém, as barreiras que uma nova constituição de um movimento de trabalhadores autônomo surgido de baixo podem colocar.
Com a União Soviética, também o capitalismo tardio analisado por Mandel foi engolido pela globalização neoliberal. Com isto, foram feitos esforços para o desenvolvimento de alternativas socialistas delimitadas do comunismo soviético e da socialdemocracia.
Ao mesmo tempo, não é claro como o desenvolvimento capitalista pode ser avaliado desde a dissolução da União Soviética. Baseando-se no longo crescimento do pós-guerra, dos anos 50 ao início dos anos 70, as taxas de crescimento nos países centrais foram, desde então, visivelmente pequenas. Mesmo assim, não se pode falar em derrocada do capitalismo, se levarmos em conta uma nova expansão do capitalismo e o surgimento de novos polos de crescimento, sobretudo na China e na Índia. Se pode supor, aliás, que nós, desde o início dos anos 90 até a crise financeira mundial de 2008/2009, nos confrontamos com um nem tão longo progresso, e que no momento nos encontramos numa fase de estagnação, que até alguns dos novos polos de crescimento já alcançaram.
Em relação à análise do capitalismo, é válido confirmar a necessidade de continuidade, da mesma maneira que de determinação de uma nova política socialista. Nos anos 60, Mandel e outros se viram nesta tarefa e, com este objetivo, interpretaram o Marxismo no seu tempo e trouxeram novas contribuições. Do mesmo modo temos que fazer também hoje com as ideias de uma nova esquerda para a nossa época.
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