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Emancipação, ciência e política em Karl Marx (Ernest Mandel)



Emancipação, ciência e política em Karl Marx

(1986)

Ernest Mandel

Tradução de Luciana Villani das Neves

Revisão de Pedro Barbosa



Marx... ou pas?: Reflexions sur un centenaire / introdução: Denis Woronoff, Jean-Marie Brohm. – Paris: Estudos e documentação internacional, 1986. 340 p. “Emancipação, ciência e política em Karl Marx”, Ernest Mandel, p. 281-298.



Ao longo de toda a sua vida, Marx se manteve fiel ao seu objetivo de emancipação. Ele não o abandonou nem quando de sua passagem da democracia pequeno-burguesa à democracia proletária e ao comunismo, nem quando da elaboração da teoria do materialismo histórico e do seu engajamento na práxis revolucionária. Nós o encontramos em todas suas maiores obras como naquelas de Friedrich Engels, do “18 Brumário de Luís Bonaparte”, dos “Grundrisse” e do “Capital” até “A guerra civil na França” e a “Crítica ao programa de Gotha”. A exigência é, por assim dizer, colocada como a priori da atividade científica e política. Maximilien Rubel chama de exigência moral (Rubel, 1957); outros falam de um axioma filosófico. Seja o que for, essa posição de princípio é suficiente para tornar absurda a censura formulada por tantos críticos de Marx, censura segundo a qual o marxismo teria chegado a uma hipóstase da História [2]. Marx mais de uma vez zombou daqueles que reverenciavam seus grilhões, pelo simples motivo de que eram grilhões forjados pela História.


Parece bastante seguro falar de um ponto de partida axiomático que pode ser expresso pela fórmula: “apenas o homem é o objetivo supremo do homem” (a expressão homem remete evidentemente à toda humanidade, não somente ao seu masculino). Esta fórmula está fundamentada em um ponto de vista antropológico. Um marxista ortodoxo, isto é, agindo no espírito de Marx, continua comprometido com a obrigação de combater todas as relações sociais desumanas. Só é possível se livrar desta obrigação se houver provas de que as relações desumanas favorecem a humanização do homem, mesmo que ele seja apresentado como pretensamente ruim, agressivo, contaminado pelo pecado, o que é evidentemente absurdo. Mesmo que transfiramos o inferno do nada de volta à terra, isto não é uma razão para se acomodar, ou para proclamar que é uma etapa de transição necessária rumo ao paraíso. Milhões de indivíduos não aceitariam isso, de qualquer maneira, nem psicologicamente e nem praticamente. Eles experienciam o inferno como inferno. Nenhuma mistificação pode impedir que a longo prazo se revoltem contra esse inferno. É um dever elementar lutar ao lado deles contra toda condição desumana. É essa obrigação que guiou Marx durante toda a sua vida. Ela deveria guiar a todos nós.


Bem longe de nos livrar dessa obrigação, a teoria do materialismo histórico e da tomada de partido em favor do proletariado na luta de classes que se desenrola na sociedade burguesa, lhe fornece uma base suplementar. Esta teoria científica declara que a história de todas as sociedades civilizadas tem sido, e continua a ser, a história das lutas de classes, e que esta luta de classes gira em torno de interesses materiais (a divisão do produto social em produto necessário e sobreproduto). Ela recoloca, em última instância, que o rendimento e os privilégios das classes dominantes, bem como a própria dominação, se devem à extorsão do sobretrabalho dos produtores, assim como à luta que se segue pelo aumento ou diminuição deste sobretrabalho. Ela estabeleceu que esta divisão da sociedade em classes é uma etapa de transição inevitável da história, imposta pelo desenvolvimento insuficiente das forças produtivas. Sem um desenvolvimento suficiente destas forças produtivas, uma sociedade sem classes realmente humana e fundamentada sobre satisfação das necessidades é irrealizável. A teoria do materialismo chega também à conclusão paralela de que as classes exploradas se revoltam periodicamente contra seus exploradores, talvez mesmo aspirando ao advento desta sociedade sem classes, e que, no entanto, por razões relacionadas à falta de uma base material, e também espiritual e moral, suficientemente desenvolvida, esse objetivo não pode ser alcançado a partir de relações pré-capitalistas ou do capitalismo nascente.


Chega-se assim à conclusão de que, como o resultado do desenvolvimento de forças de produção gigantescas, o capitalismo moderno criou, pela primeira na história, as bases possíveis para uma emancipação total, isto é, para uma sociedade sem classes. Esta emancipação pressupõe a abolição da propriedade privada, da produção mercantil (da economia de mercado), bem como da concorrência, da tendência ao enriquecimento privado e do egoísmo universal que são suas consequências. A realização deste objetivo somente é possível se a luta socialista (comunista) por essa sociedade sem classes se encontrar com o combate real travado efetivamente por uma classe que tem um interesse material nela, que está moralmente preparada e que se inclina socialmente, isto é, uma classe que é potencialmente capaz de paralisar toda a vida econômica, se assim o decidir, e tomar em mãos a organização da produção pelos próprios produtores associados.


Esta classe é o proletariado moderno, a classe submetida ao salariato, a classe que se encontra preparada para esta tarefa por sua posição na sociedade burguesa e pelo desenvolvimento do capitalismo com todas as suas contradições, mas também por sua capacidade de organização coletiva e seu senso de solidariedade, que a experiência do capitalismo incute nela. A fórmula de Marx, segundo a qual a emancipação do proletariado representa a emancipação de toda a humanidade, não deve levar à ideia equivocada de que, segundo ele, a emancipação do proletariado conduziria automaticamente à de toda a sociedade, ou que substituiria ela. A tomada de posição apaixonada de Marx em favor da emancipação dos escravos negros americanos ou de nações oprimidas como a Polônia e a Irlanda, sua identificação com o levante dos Taï-Ping na China ou dos Cipayes na Índia [3] – estes grupos sociais não podem de modo algum serem incluídos no conceito de proletariado –, tudo isto é suficiente para resolver o debate.


A emancipação proletária é a pré-condição absoluta da emancipação universal. Mas é apenas a condição, não a substitui. Se o desenvolvimento histórico teve que, por exemplo, provar que os partidos que agem “em nome e no lugar” [en lieux et place] da classe trabalhadora criaram novas formas de exploração, novas situações desumanas, eles devem então ser combatidos sem cerimônia, exatamente como é o caso das situações específicas do capitalismo ou das sociedades pré-capitalistas, mesmo se considerar esta exploração e esta opressão “socialistas” como historicamente progressivas em relação ao capitalismo. Esta conclusão está em conformidade com o pensamento de Marx, embora, pelo que sabemos, ele jamais se expressou explicitamente sobre esse problema. Esta posição decorre do próprio conceito de progresso tal como ele emerge de toda a obra de Marx, conceito dialético e não mecanicista, com duplo sentido e não linear.


Por outro lado, a continuidade histórica da luta contra a exploração social funda uma poderosa tradição de luta e de organização, bem como de pensamentos, ideais, sonhos e esperanças revolucionárias, da qual a luta proletária por sua própria emancipação se nutre profundamente, da qual ela procede mesmo imediatamente, e sem a qual seu desenvolvimento teria sido incomparavelmente mais lento e mais árduo do que foi na realidade. Um país sem tradições revolucionárias pré-proletárias é um país em que o movimento operário político se desenvolverá com incríveis dificuldades.


Na análise da mecanização [machinisme] desenvolvida no Livro I do Capital, este duplo conceito de progresso é particularmente destacado. Em oposição às críticas românticas, superficiais e moralizadoras do capitalismo, Marx sublinha corajosamente e com razão o gigantesco progresso material da mecanização, seu gigantesco potencial de emancipar os seres humanos da obrigação do trabalho forçado. Na época do início da automação, do desenvolvimento da microeletrônica e dos robôs, estas afirmações soam de uma forma simplesmente profética. Mas se voltando simultaneamente contra os apologistas cínicos ou cegos da sociedade burguesa, Marx ressalta a diferença entre potencialidade e realidade e as consequências desumanas da mecanização no capitalismo. Ele ressalta a utilização especificamente capitalista do capital fixo e do sistema da fábrica, a forma capitalisticamente determinada da tecnologia e da indústria, que só pode se desenvolver minando e potencialmente destruindo as duas fontes da riqueza humana: a natureza e a força de trabalho. Como o trabalhador que trabalha no capitalismo, por mais progressivo que este seja em relação ao feudalismo, é um trabalhador diminuído, alienado, escravizado e desprezado, sua rebelião contra a sua situação é, consequentemente, tão progressiva quanto o próprio capitalismo. Esta rebelião é um movimento histórico que, por sua vez, estimula o progresso econômico e social, mesmo que não conduza imediatamente, nem mesmo a meio termo, a uma abolição real das situações desumanas. E o que é evidente para Marx a propósito do capitalismo (e das sociedades pré-capitalistas) se aplica perfeitamente às sociedades pós-capitalistas.


Ciência e emancipação


O desenvolvimento do socialismo científico enquanto ciência tem sua própria coerência interna, que não é necessariamente idêntica à lógica da emancipação. A ciência nunca trabalha com uma segurança absoluta. Ela formula hipóteses teóricas que sempre devem ser verificadas novamente à luz de novos dados e novos desenvolvimentos. Ela é fundamentalmente dubitativa, como Marx expressou sucintamente quando perguntado sobre seu lema favorito: "de omnibus est dubitatum" (é preciso duvidar de tudo, nota do editor). Não há nesse estado de espírito e nessa abordagem a menor suspeita de dogmatismo, embora a dúvida se refira aos resultados (sempre provisórios) da pesquisa, e não à potencialidade de verdade que recobre a própria pesquisa. Esses resultados, julgados segundo suas sequências práticas e à luz de seus pressupostos, devem ser constantemente ou confirmados ou modificados, pela pesquisa que se persegue sem cessar. Trata-se, portanto, de uma “dúvida otimista” apoiada sobre as possibilidades ilimitadas da práxis social humana, que remete em última análise, como a tendência à emancipação, às suas bases antropológicas primeiras.


Marx era um sábio no sentido mais sério do termo. Ele baseou sua teoria cientifica, seja ela da economia (teoria de valor, teoria da mais-valia, da moeda, do capital, das leis de evolução do modo de produção capitalista, das crises, etc.), da sociologia ou da história (teoria do materialismo histórico, das classes, do Estado, da revolução, etc.) sobre um estudo minucioso de todos os dados disponíveis da ciência de seu tempo. Como ele mesmo dizia, nada é mais desprezível do que o pseudocientista que, para provar uma tese, esconde dados importantes ou nega os fatos.


A principal força do socialismo científico reside no fato de que ele coloca um objetivo emancipatório – a libertação do proletariado, do trabalho e da humanidade toda – como proveniente do movimento real da sociedade e da história. As contradições internas do modo de produção capitalista, cientificamente estabelecidas e atestadas por dois séculos de história, contradições que nenhum Estado, nenhuma religião, nenhum terror, que nenhuma “sociedade de consumo” pôde suprimir, elas resultam, por um lado, numa cadeia de sucessivas crises do sistema no domínio econômico-social, cultural, político, militar, moral e ideológico, o que se encontra totalmente confirmado pelo desenvolvimento histórico real. Resultam, por outro lado, numa tendência histórica à organização do trabalho assalariado, um dos pressupostos mais importantes que deriva da análise marxista da sociedade capitalista em particular. Basta pesquisar quantos trabalhadores assalariados organizados sindicalmente havia à escala mundial em 1847-48, quantos em 1900, quantos em 1948 e quantos hoje, para reconhecer a exatidão desta afirmação (quem além de Marx previu isto na metade do século 19?). Não há hoje nenhum país do mundo, nem mesmo a menor ilha do Pacífico, onde exista o trabalho assalariado, sem que disso resulte inevitavelmente uma luta de classes elementar entre o capital e o trabalho, sem que os assalariados tentem criar organizações elementares de autodefesa e de luta.


A queda do capitalismo, a passagem a uma sociedade sem classes e a substituição do regime de coerção no trabalho pela associação livre dos produtores podem ser os frutos desta auto-organização e desta luta de classes inevitável e elementar do proletariado moderno. Assim, o projeto emancipatório recebe, pela primeira vez na história, um sujeito revolucionário que dispõe de capacidades objetivas e subjetivas de levá-lo a cabo na realidade. Não é necessário enfatizar mais que se trata apenas de uma possibilidade que não é de forma alguma inevitável. Caso contrário, a atividade realizada pelos socialistas em favor da educação, da organização e do estímulo da consciência de classe, atividade iniciada pelos próprios Marx e Engels, seria amplamente inútil e, em todo caso, não essencial. O colapso do capitalismo é inevitável: esta é a única certeza que decorre da análise marxiana das contradições internas do sistema. Após duas guerras mundiais, duas grandes crises econômicas, aquela dos anos de 1919-33 e a crise atual, isto nos parece dificilmente contestável tendencialmente. Mas este colapso pode conduzir a dois resultados totalmente opostos: um avanço em direção ao socialismo, ou uma regressão em direção à barbárie. Depois da experiência de Auschwitz e de Hiroshima, na época da corrida armamentista nuclear e da ameaça crescente que pesa sobre o ecossistema, isso não representa uma fórmula propagandista, mas um perigo real claramente definido. Não há nada que mereça a definição de “ciência proletária”. O que existe é a ciência enquanto tal, que obedece apenas às suas próprias leis, abstraída toda determinação de classe direta. Que seria, de outro modo, a ciência dentro da sociedade sem classe? Sem nenhuma dúvida, sobretudo no domínio das ciências sociais, os homens e mulheres que produzem trabalho científico em uma sociedade de classes, são homens e mulheres socialmente determinados. Seu pensamento não é apenas uma “fonte cientifica pura”, mas repousa sobre os pressupostos condicionados pela sociedade de classes. Na medida em que este é o caso, seus pensamentos não são totalmente científicos, só o são parcialmente, e o pesquisador científico deve separar o grão científico do joio ideológico. Em outras palavras: não existe “ciência burguesa”, existem estudiosos que são, ao mesmo tempo, ideólogos burgueses.


A experiência histórica mostra que somente uma ruptura completa com a sociedade burguesa, sua ideologia, seus valores e sua forma de pensamento que tornou Marx e Engels capazes de tomar clara e totalmente partido em favor do proletariado. E é somente a partir deste engajamento pelo proletariado e sobre a base da experiência da luta de classes real do proletariado que eles puderam desenvolver uma teoria rigorosamente científica da mais-valia, das classes e do Estado. Neste sentido, existe uma ligação dialética indestrutível entre ciência e emancipação, e, portanto, igualmente entre emancipação e ciência, ao menos na sociedade de classes. As ciências sociais podem começar a se desenvolver independentemente de qualquer projeto de emancipação. Mas até agora, somente o marxismo, unificando ciências sociais e projeto de emancipação, foi capaz de desenvolver uma ciência coerente que coloca radicalmente em questão todas condições sociais desumanas, ao explicar suas origens, sua natureza profunda, sua evolução e as condições de seu desaparecimento.


Emancipação e política


Em um certo sentido, as “Teses sobre Feuerbach", de Marx, aparecem como conclusão de “A ideologia alemã”, representam o ato de nascimento do marxismo. Elas culminam na célebre fórmula: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”. Por esta fórmula, o pensamento de Marx muda de um projeto de emancipação vagamente determinado antropologicamente para um engajamento prático e político pela realização de tarefas históricas precisas. O mundo não pode ser mudado se não pela ação de homens e mulheres concretos, como os que existem realmente: homens e mulheres condicionados por sua existência social, ligados na sociedade burguesa (como em toda sociedade de classe) às classes sociais determinadas. A tarefa prática de suprimir a escravidão da humanidade se transforma, assim, em tarefa prática da política de classe: definir as condições nas quais uma ou várias classes sociais podem tornar efetiva a emancipação do gênero humano.


Assim, embora a emancipação possa se encontrar, de modo marginal, separada da ciência, ela não pode jamais, para Marx ou para um marxista, estar separada da política, menos ainda a política estar separada dela, pelo menos se utilizarmos o conceito de “política” no sentido mais amplo do termo: toda atividade que resulta em uma ação coletiva em favor de uma transformação do Estado e da sociedade, até a realização da sociedade sem classes e a extinção do Estado. Porque, toda atividade de emancipação não política, não passa de uma atividade emancipatória de grupos isolados ou pequenos, que permanece, consequentemente, elitista e que nega na prática a possibilidade da autoemancipação da mais amplas massas, mesmo que se apoie sobre a “propaganda pela ação”.


A experiência histórica provou que somente a atividade revolucionária das grandes massas, em situações pré-revolucionárias ou revolucionárias, permite aos homens e mulheres suprimir radicalmente todas as situações de escravidão e, assim, transformar radicalmente a si próprios. Esta é a atividade política – a política revolucionária – que deve ser preparada sistematicamente e a longo prazo por uma ação contínua, e, portanto, por uma organização contínua, mesmo em período não-revolucionário. E tudo que vai além das aspirações de emancipação individual ou de grupos muito pequenos, tudo que concerne à emancipação coletiva, é da política emancipatória, socialista e revolucionária.


A problemática das variantes políticas leva à compreensão do necessário pluralismo político no movimento operário, porque somente a práxis pode provar o que está certo e o que está errado (nem o partido, nem o comitê central, nem o presidente, nem o secretário geral, tem sempre razão): somente o pluralismo garante uma correção rápida dos erros inevitáveis. Isto leva a compreensão da relação orgânica entre democracia socialista proletária e construção do socialismo, o que representa uma obrigação não ética, mas eminentemente política.


A natureza particular da revolução socialista e da sociedade sem classe, que só podem ser realizadas como um projeto consciente; a natureza particular do próprio proletariado, que pela primeira vez na história deve mudar a sociedade partindo de uma situação de classe economicamente dominada, e não de uma classe já economicamente dominante (e que deve, para este fim, conquistar o poder político): tudo isto significa que esse objetivo só pode ser alcançado pela auto-organização e auto-atividade das grandes massas proletárias. Isto em nada contraria o planejamento leninista de um partido de vanguarda, tornado necessário pela diferenciação social do proletariado e de sua consciência, assim como pela descontinuidade da atividade das massas.


A emancipação, a ciência e a política se combinam, assim, em todos os níveis do marxismo: no nível da teoria “pura”, no da teoria aplicada e no da práxis política cotidiana.

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