Divisões sociais e convergências estratégicas – identidade, igualdades e diferenças
(maio, 2003)
Daniel Bensaïd
Tradução de Giulia Molossi Carneiro
Revisão de Pedro Barbosa
O dossiê ao qual é dedicado o número 7 de Contratemps[i] é resultado de uma conferência realizada em novembro de 2002. A carta convite feita aos oradores e oradoras propôs como tema de reflexão: “A dinâmica das identidades, identificações e pertencimentos: gênero, classes, raças”. Nós indicamos o sentido no qual queríamos orientar uma reflexão coletiva: “Na tradição do movimento operário, as determinações de classe formam a clivagem principal, em torno da qual se organizam as dominações subordinadas (sexistas, racistas, coloniais, etc.). Essa hierarquização de contradições procede de uma certa análise das lógicas de dominação e determina, in fine, as modalidades de emancipação a implementar. Nessa perspectiva, os pertencimentos de gênero ou raciais têm sido amplamente relativizados, concebidos, na melhor das hipóteses, como interferências emitidas pelo sistema capitalista para preservar o motor principal de sua hegemonia ou, na pior, como formas de expressão reacionárias e concorrentes com a análise classista”.
Desta forma, nós afirmamos nossa preocupação em pensar a pluralidade de dominações e “a maneira como elas se nutrem umas das outras, sem somar-se mecanicamente, para constituir um espaço social hierarquizado complexo”. Propusemo-nos a procurar entender “as subjetividades clivadas, portadoras de interesses estratégicos por vezes conflituosos”, não para ceder à sua desintegração social, mas para trabalhar por sua unidade “respeitando sua autonomia” e para “atualizar as possíveis solidariedades e convergências no quadro de um projeto coletivo de emancipação”.
Solicitado como orador, Loïc Wacquant deu um acordo de princípio (sob reserva de suas disponibilidades profissionais), criticando, em uma correspondência com Patrick Simon e Sébastien Chauvin, a abordagem da carta de convite. Ele suspeitou, na referência à tríade gênero-classe-raça, de uma reunião não crítica às categorias da sociologia anglo-saxônica: “Porque uma tríade ao invés de um quarteto ou quinteto, e porquê estas três”, enquanto na Europa, pelo menos, as nacionalidades, cidadanias e imigrações são categorias tão pertinentes quanto (ou talvez mais) para pensar as divisões sociais? Por que tamanho interesse na noção altamente questionável de identidade? E por que adotar o termo de raça e não de etnia? Wacquant protestou particularmente contra uma “importação servil” que reifica a noção de raça (“sem aspas”), enquanto “ninguém mais se importa com a classe” e enquanto a idade ou a religião são determinantes mais fortes à escala planetária.
As questões e a interpelação foram pertinentes. Infelizmente, a agenda de Loïc não lhe permitiu continuar a troca. Numa breve resposta, Patrick Simon indicou somente que o título provisório do colóquio não significava uma repetição acrítica do princípio de divisão social frequentemente utilizado nas pesquisas anglo-saxônicas, mas que também não havia nada que os invalidasse em nome de uma questionável especificidade europeia, enquanto na França as relações de dominação racistas pós-coloniais pesam muito e que existe uma tendência persistente de as ocultar. Simon enfatizou que se tratava, antes de tudo, de reagir contra a tradição, dominante no centro do movimento operário, que reduzia as relações de gênero e de raça a uma interferência da dominação central de classe. Pois, se os diferentes modos de dominação são de fato independentes, nenhum deles é estritamente redutível ao outro.
A escolha de categorias segundo as quais se constrói a representação das divisões sociais é evidentemente controversa. Dessa forma, o termo “raça” não tem os mesmos significados no vocabulário de uma velha potência colonial como a França, no México ou nos Estados Unidos, onde pode ter sido retomado (virado ao avesso) e reivindicado por intelectuais negros radicais como W.E.B. Du Bois[ii]. Eleni Varikas enfatiza, então, que não se pode evitar ambiguidades e paradoxos no uso de noções de raça ou de etnia em função de diferentes histórias ou heranças culturais. Nenhuma das categorias conceituais é imune à tentação do “fantasma do natural” que hipostasia uma substância, uma origem ou uma natureza social. Assim, de acordo com o dicionário francês Le Robert, o termo etnia só se impôs no vocabulário francês nos anos 90, enquanto o dicionário inglês de Oxford o faz remontar à década de 1950. Recusando todo determinismo hereditário e toda característica anatômica, Le Robert define etnia como “comunidade de língua e de cultura”. Na sua contribuição ao presente dossiê, Michel Cahen contesta a conotação pejorativa frequentemente associada à noção de etnia, suspeita de um recuo particularista e anti-universalista (diferentemente da nação, que se inscreveria em um processo de universalização).
A fim de não resolver em uma palavra um debate que merece mais e melhor, finalmente escolhemos como título do dossiê “gênero, classes, etnias”. Nesta fase da discussão, essa escolha envolve inevitavelmente um elemento de arbitrariedade. Outras polêmicas poderiam, portanto, surgir em relação ao uso de noções de comunidades ou pertencimentos. Contentemo-nos de enfatizar aqui que essas incertezas terminológicas são o indício de uma remodelação em curso do campo conceitual, na qual estão em jogo heranças históricas e tradições culturais diferentes, ao mesmo tempo em que questões teóricas inovadoras. Assim, parece impossível pensar as categorias da divisão social independentemente de uma história (o passado escravista nos Estados Unidos, o passado colonial na França, o papel da miscigenação no México, etc.) e de diferentes modelos nacionais de cidadania.
Se essas questões se revestem hoje de uma agudeza por vezes passional, é porque, entre outras coisas, elas revelam uma crise dos modos de socialização característicos da modernidade:
Crise dos pertencimentos nacionais, não somente enquanto referências identitárias, mas como cadinhos de integração social (através da língua, da escola, do trabalho), o crescimento dos comunitarismos (culturais ou religiosos) aparece assim como uma possível resposta à decomposição do vínculo nacional e à pane dos motores de integração social.
Crise de referências de classe e de solidariedades sociais que atravessam, dividem ou redistribuem os pertencimentos étnicos, nacionais ou religiosos, em favor de um vínculo de classe, como afirma Stéphane Beaud e Michel Pialoux em sua investigação sobre a região de Montbélliard, a “condição operária” está longe de ter desaparecido, mas a consciência de classe (e as práticas sociais – no trabalho, no bairro, na expressão cultural – nas quais ela se nutre) são minadas pelas metamorfoses sociais, mutações do trabalho, mudanças na habitação, individualização do consumo, etc. A complexidade crescente de diferenciações sociais não significa no entanto a dissolução das relações de classe.
Crise da família nuclear restrita como célula elementar e pilar da reprodução social. Essa crise refere-se tanto a fenômenos ligados à evolução da divisão do trabalho como a fatores cujo alcance é ainda difícil de mensurar (revolução reprodutiva, multiplicação de famílias monoparentais, turvação das representações sexuais, etc.).
Essa crise tripla se traduz evidentemente nas múltiplas resistências às diferentes formas de atribuição identitária, seja nacional, sexual ou social. Assistimos, assim, a um movimento duplo de “desafiliação” (segundo o termo de Robert Castel) e de re-afiliação, “desafixação” (Zigmunt Bauman) e re-fixação, desterritorialização e re-territorialização. O resultado é uma inquietude, uma incerteza e uma fragilidade, às quais se responde com aquilo que Stuart Hall chama de “explosão discursiva do conceito de identidade”: “pânicos identitários”, segundo Étienne Balibar, ou “guerras de identificação”, segundo Judith Butler, se trata mais de sintomas do que de respostas à crise. Inspirando-se, dentre outros, em Deleuze, uma estratégia discursiva oposta faz a apologia do nomadismo contra o sedentário, da expansão rizomática contra a ordem arborescente, do devir molecular contra a petrificação molar.
Contra a dispersão indefinida de identidades e diferenças, a noção de igualdade fornece um meio termo ou uma mediação (bem destacado no livro de Alex Callinicos, “Igualdade”). Para a maioria dos autores pós-modernos, a igualdade é, infelizmente, muitas vezes percebida como uma obscenidade, enquanto é tomada como sinônimo de identidade (no sentido de in-diferença). Celia Amoros assinala que as políticas da identidade utilizam frequentemente, pelo contrário, o termo identidade como uma marca da diferença: ela já não é mais o que “identifica” o mesmo, mas o que registra uma distinção (ver Celia Amoros, “A igualdade e a diferença sexual”, Viento Sur N° 59, novembro de 2001; ver também Celia Amoros “Igualdade e Identidade”, El concepto de Igualdad, Madrid, 1994). Ela nos lembra que a reivindicação igualitária (a igualdade para negros, para mulheres, para imigrantes...) só tem sentido se estiver inscrita no paradigma da igualdade de direitos herdado do Iluminismo. Essa igualdade pode certamente andar de mãos dadas com um universalismo nivelador e abstrato (máscara de uma dominação secreta), mas ela pode também significar uma identificação das diferenças: os iguais só são iguais entre si porque são distintos (diferentes) uns dos outros.
A igualdade já não confunde mais, então, as diferenças em uma sopa pós-moderna. Ela “irradia”, escreve Celia Amoros, se propaga e se difunde como uma reivindicação emancipadora à qual podem se associar “ações afirmativas” e outras “discriminações positivas”. Em contraste com esta exigência igualitária de “identidade-diferença”, tomada como uma cristalização provisória de relações de poder em vigor, as políticas de identidade seriam tentadas, ao contrário, por uma definição essencialista ou naturalizante da identidade, que se trataria apenas de reencontrar ou “recuperar” (segundo Luisa Muraro).
Jacques Derrida exprime também uma inquietação diante das possíveis derivas da reivindicação identitária ou comunitária, diante do “narcisismo das minorias” em pleno florescimento. “Como pensar a diferença como um universal sem ceder nem ao comunitarismo nem ao culto das pequenas diferenças?”, pergunta (ver Jacques Derrida, “De que amanhã...”, diálogo com Élizabeth Roudinesco, Fayard-Galilée, Paris, 2001[iii]). Para evitar a dupla armadilha do comunitarismo e do relativismo, ele convida a explorar as possibilidades de alianças variáveis e conjunturais, a “calcular o espaço, o tempo e os limites da aliança”. Essa problemática da aliança apresenta a vantagem evidente de repolitizar o problema ao invés de procurar respostas essencialistas; mas ela permanece discreta sobre as razões e os fundamentos dessas alianças mutáveis (por que esta ao invés de alguma outra? por que agora e não amanhã?), bem como sobre sua natureza estratégica ou tática (a menos que a sua variabilidade por definição exclua qualquer aliança estratégica).
Antropólogo do Quebec, Mikhaël Elbaz desenvolve igualmente uma crítica a um multiculturalismo ingênuo, servido como um acompanhamento ideológico das receitas neoliberais. Ele distingue assim:
- um multiculturalismo “comunal e corporativo”, que seria a marca de retorno de grupos estigmatizados buscando recuperar e estender seus direitos em nome dos males a serem reparados (correndo o risco de uma refeudalização[iv] dos laços sociais, em razão da substituição do bem comum pelas diferenças e da ascensão de frustrações recíprocas entre grupos sociais);
- um multiculturalismo concebido como uma “ideologia política que busca menos se apoiar sobre medidas legislativas e estatais do que contestar o monoculturalismo eurocêntrico ou androcêntrico”, esse multiculturalismo, negativo de certa forma, não está, porém, imune a uma busca arqueológica da autenticidade perdida ou da identidade roubada;
- um multiculturalismo, por fim, qualificado por Elbaz como “síndrome de Benetton”, que acompanharia prosaicamente a mundialização mercantil e a mercantilização cultural; Alain Brossat vê assim na retórica superficial da miscigenação (“tudo é misturável”) uma forma de dissolver a história (a herança da relação colonial ou escravista), em nome de uma ideologia erudita ou comercial: ao fazer do mestiço a “testemunha amnésica de uma disputa original”, a miscigenação tornaria assim inominável o dano sofrido (ver Alain Brossat, “Miscigenação cultural, disputa e desaparecimento”, Identidades Indecisas, revista Lignes n° 6, outubro de 2001).
Através de suas variantes, o multiculturalismo expressaria uma hesitação entre duas leituras possíveis da universalidade: 1. Apesar de nossas diferenças, todos nós pertencemos à espécie humana; 2. É por causa de e graças às nossas diferenças que ascendemos à humanidade comum. Elbaz procura evitar as miragens autoritárias do universalismo abstrato, bem como o "universalismo reiterativo da tribo universalizante". Ele também propõe repolitizar o dilema através de uma confrontação entre duas universalizações concorrentes (a da mundialização imperial e a das resistências a tal mundialização), onde está em jogo uma redistribuição de hegemonias e subalternidades.
A globalização mercantil do mundo, o apagamento de contornos e fronteiras (entre territórios, classes, sexos) alimentam certamente um retorno (desvio?) às tiranias de raízes e origens, ao mesmo tempo que um elogio à diferença padronizada; ou ainda, uma dialética equívoca entre identidades erigidas em normas e um relativismo cultural sem margens. A questão é então colocada para distinguir o reconhecimento legítimo da pluralidade dos laços sociais ("o homem plural", segundo Bernard Lahire), de uma desintegração neurótica dos atores sociais. O nó singular de múltiplos pertencimentos que compõe cada individualidade resulta de uma pluralidade (de agora em diante adquirida) de tempos sociais e espaços de socialização.
Nas tradições do movimento socialista desde o século XIX, as posições dominantes iam de um reducionismo radical (absorvendo todas as contradições sociais ao conflito de classe) ao reconhecimento de uma pluralidade de clivagens de conflito (de idade, de sexo, de raça), consideradas no entanto como secundárias ou subalternas. A ideia compartilhada era a de que a relação de classe constituía um fator poderoso (se não irresistível) de unificação. Essa hipótese foi beneficiada, durante todo um período, por uma confirmação parcial. É surpreendente recordar a que ponto, em 1968 e nos anos 70, diferentes categorias sociais esperavam do proletariado ou do movimento operário uma solução a seus problemas específicos.
Essa espera se baseava parcialmente, sem dúvida, em uma representação mítica. Mas a força de tal representação expressava também uma realidade social e política. A referência de classe parecia sobredeterminar as outras formas de pertencimento social e agir sobre elas como uma espécie de atrativo estranho. Ela confirmava praticamente, assim, a hipótese filosófica apresentada por Marx em 1844, em sua crítica à filosofia hegeliana do direito, do proletariado como “classe universal” à qual foi atribuída um interesse particular pelo interesse geral (uma classe cuja condição de emancipação particular é a emancipação geral).
Essa relação se tornou hoje problemática. No tríptico classe-gênero-etnia (ou nação, ou raça), a referência de classe não pesa (teórica e praticamente) tanto e tão diretamente. Sentimos isso durante toda a conferência preparatória. A leitura do presente dossiê confirma tanto mais isso que, em razão de uma compreensível sobrecarga de trabalho, Stéphane Beaud e Sophie Béroud não puderam fornecer os artigos inicialmente previstos sobre a “dupla memória operária” (social e colonial) da imigração e sobre as relações históricas entre corporativismo e consciência de classe.
Uma das questões cruciais consistiria, portanto, em (tentar) desembaraçar o que, na geometria variável das divisões sociais, revela tendências estruturais (sociológicas e históricas) e o que revela sobretudo fatores políticos conjunturais. No capítulo das tendências mais fortes estão, sem dúvida, a complexidade crescente da divisão do trabalho, a estratificação dos grupos sociais, o processo de individualização, mas também as consequências a longo prazo da descolonização e a tomada de palavra por parte de grupos historicamente oprimidos (que foram precisamente o objeto dos “estudos subalternos”).
No entanto, seria perigoso confundir essas fortes tendências com as consequências reversíveis das derrotas sociais provocadas pela contrarreforma liberal das últimas duas décadas: declínio do Estado social, desmantelamento dos serviços públicos, ataques aos sistemas de solidariedade social, individualização do trabalho e do salário, flexibilidades diversas. As “balcanizações” ou “libanizações” (sociais, étnicas, religiosas) não são uma fatalidade, mas o desafio de uma luta de resultado incerto, através da qual as divisões, os laços e as frentes sociais são redefinidas.
O papel central atribuído por Marx à luta de classes não depende, principalmente, de um determinismo sociológico, segundo o qual o proletariado seria mecanicamente conduzido a agir de acordo com sua essência. Ele é antes de ordem estratégica: reunir os protestos particulares e superar as diferenças em um combate comum e em um processo de universalização. Nesta perspectiva, a unidade da diversidade não resulta de uma vontade arbitrária. Ela é resulta da generalização das relações mercantis impostas pelo despotismo do capital que penetra todos os poros da vida social e sobredetermina todas as formas de opressão e de dominação. O grande unificador do tempo-espaço estratégico ou o grande coordenador dos campos sociais é o próprio Capital. A elaboração das divisões sociais e sua articulação devem, portanto, ser confrontadas com o dispositivo conceitual fornecido pelas noções de modo de (re)produção e relações de (re)produção. Porque, como Terry Eagleton energicamente enfatiza, “recusar falar da totalidade é recusar falar do capitalismo”.
A questão é indissociavelmente analítica e estratégica. Os autores que rejeitam as categorias totalizantes em prol de uma desconstrução radical de representações sociais estão aliás perfeitamente conscientes disso. O elogio da micropolítica e de seus anti-poderes teoriza a renúncia a uma transformação radical de conjunto (uma resignação para não mais mudar o mundo). Françoise Collin opõe, assim, “rupturas localizadas” à “teoria totalizante”, um “trabalho de minar” ou uma “mordida generalizada” a rupturas brutais, um “dispositivo de contaminação” a um “dispositivo de confrontação”. Ela defende “uma ocupação de terrenos e não uma oposição frontal” (Françoise Collin, "Diferença/indiferença dos sexos", Les Rapports sociaux de sexe, Actuel Marx n° 30, Puf, 2001, p. 186). Quanto à Judith Butler, ela recomenda uma adição sem síntese e “um modo de gestão politicamente produtivo dos conflitos” (ibid., p. 206). Até hoje nada provou a eficácia destas políticas modestas diante das maiores crises da acumulação de capital, do novo militarismo imperial, da violência das crises ecológicas e sociais. Pelo contrário, inextricavelmente ligadas a questões legítimas, podemos identificá-las como uma concessão ao desencanto pós-moderno e uma adaptação ao grau zero das estratégias de emancipação.
O nosso objetivo não é opor a estas retóricas o culto nostálgico de uma unidade social imaginária, e menos ainda acusar os movimentos sociais de terem “dispersado a esquerda”. Não nos reconhecemos no “conservadorismo de esquerda”, fundado sobre a ilusão de um acesso imediato à realidade, sobre uma crença pragmática na transparência da linguagem e sobre a busca de uma verdade fundadora absoluta, na qual Judith Butler vê “um materialismo anacrônico” que visa fundar “uma ortodoxia de esquerda revigorada”. Nosso engajamento constante com a eclosão de novos movimentos sociais, com as mobilizações contra a mundialização mercantil e a guerra, com o desenvolvimento de fóruns sociais mundiais ou continentais, demonstra nossa disposição para pensar a novidade sem tirar um traço de herança.
Mas a radicalização expressa nos últimos anos nestas manifestações testemunha a ligação orgânica entre crise social e crise ecológica, entre mundialização mercantil e militarismo imperial. É a razão pela qual os encontros militantes de Porto Alegre ou Florença têm (para grande desagrado de alguns) tão facilmente feito a vinculação entre a luta contra a dívida do terceiro mundo, contra a especulação financeira, contra o desmantelamento dos serviços públicos e contra a retomada da economia de guerra e das expedições neocoloniais. Elas prepararam, assim, a irrupção de um movimento antiguerra mundial, do qual as manifestações monstruosas de 15 de fevereiro marcaram a data de nascimento[v].
A complexidade das divisões sociais, a multiplicidade de resistências, o cruzamento de pertencimentos e identidades, colocam sob uma nova luz a questão da sua unidade e da sua convergência.
A resposta se encontra certamente no aprofundamento da reflexão teórica. Mas ela também se encontra nas práticas do novo internacionalismo, onde sindicatos, movimentos ecológicos, marchas de mulheres, culturas populares oprimidas estão forjando novas alianças estratégicas e tomando consciência do que lhes é comum.
Contretemps n° 7, maio de 2003.
Notas de tradução
[i] Revista fundada por Daniel Bensaïd em 2001.
[ii] Sociólogo, historiador, militante pan-africano pelos direitos civis, editor e escritor americano. Fundou o “Movimento Niágara” e durante sua vida publicou mais de 20 livros.
[iii] No Brasil, o livro “De que amanhã...” foi publicado pela Editora Zahar em 2004.
[iv] Conceito utilizado por Jürgen Habermas, sendo, grosso modo, considerado como um modo paradoxal de transformação social que faz aparecer modelos sociais pré-modernos como resultado da modernização.
[v] Bensaïd se refere às manifestações antiguerra que ocorreram ao redor do mundo em 2003.
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