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Democracia e emancipação social (Antoine Artous)


Democracia e emancipação social

(2000)

Antoine Artous

Tradução de Paulo Sampaio

Revisão de texto por Pedro Barbosa



Sumário

I. A propósito da problemática passada da Liga

II. Um retorno necessário sobre a democracia

III. Sobre o definhamento do Estado

IV. À guisa de conclusão


O artigo a seguir se inscreve na seguinte preocupação geral: parece-me necessário operar um esclarecimento programático dos elementos-chave que estruturaram o horizonte estratégico ⎼ em um sentido bastante amplo ⎼ proveniente da tradição marxista com relação à perspectiva de emancipação social. Trata-se de um assunto vasto. Ainda assim, é preciso compreender o que está em jogo. Não se trata aqui de discutir a história do marxismo em suas relações com as lutas pela emancipação, mas sim de reexaminar as perspectivas gerais nas quais a tradição marxista inscreveu estas lutas. Ao sublinhar aquilo que, à luz das experiências passadas, mostra-se problemático, não empreendemos um simples trabalho de desconstrução, mas manifestamos uma preocupação com a reformulação de certos elementos programáticos.


Esse esclarecimento só é possível a partir de certa “leitura” da tradição marxista a esse respeito: ou seja, a partir de um percurso político. Abordaremos, portanto, a tradição na qual se insere a Liga [LCR, seção francesa da IV Internacional] ⎼ não em sentido estrito (do programa dito “trotskista”), mas segundo uma filiação que passa por outubro de 1917, pela criação da Terceira Internacional, pela oposição de esquerda ao stalinismo, pela construção de organizações de extrema-esquerda no pós-1968, etc.


Esse horizonte estratégico se articula ao redor de dois eixos essenciais:


- uma certa escansão política: luta pelo poder, ditadura do proletariado e democracia socialista, perspectiva de definhamento do Estado.


- a apropriação coletiva dos meios de produção.


Mesmo que estes dois elementos estejam articulados, eu os abordarei aqui essencialmente o primeiro nível. E por um ângulo particular: a questão da democracia. É evidente que, dado o assunto em questão, não poderemos fazer mais do que introduzir uma discussão que, além disso, revisita alguns problemas ligados à questão da democracia. Um esclarecimento programático equivalente a respeito da questão da apropriação coletiva dos meios de produção (que não se reduza à mera recuperação dos debates sobre o período dito de transição) me parece necessário.


I. A propósito da problemática passada da Liga


Nosso objetivo não é rever o conjunto de discussões que atravessaram a Liga e a Quarta Internacional no pós-1968. E menos ainda remontar a um passado mais distante ainda, às discussões que ocuparam o movimento operário entre as duas guerras mundiais do século passado, não apenas sobre outubro de 1917, mas também sobre a revolução alemã e a revolução espanhola de junho de 1936; ou ainda sobre a revolução chinesa e, em sentido mais geral, sobre a "revolução colonial" do pós-Segunda Guerra. No entanto, foi através destas discussões e deste trabalho de reflexão que a perspectiva estratégica da Liga foi progressivamente sistematizada.


A lembrança é sempre útil. Ela mostra que, para a Liga, a referência à tradição iniciada em outubro de 1917 não equivale à defesa de um modelo de processo revolucionário ideal ⎼ no caso, o processo representado por outubro de 1917 na Rússia. Trata-se, antes, de afirmar certo quadro estratégico de luta pelo poder, que foi bem sintetizado por Daniel Bensaïd em uma brochura escrita em 1987[1].


1) A ditadura do proletariado como categoria estratégica


Reivindicar a tradição iniciada em outubro de 1917 e o "leninismo" não significa remeter a um ato fundador mítico, e sim a certa periodização da tradição marxista. Segundo esta abordagem, outubro de 1917 cristaliza uma nova fase histórica, aquela que encarna a sistematização do marxismo em sua dimensão estratégica ⎼ isto é, do marxismo como ferramenta para a tomada do poder pelo proletariado. A tradição iniciada pela Revolução de Outubro é entendida como o momento de cristalização histórica do marxismo como estratégia.


A Revolução russa e a criação da Terceira Internacional não se contentaram com o reestabelecimento de uma continuidade revolucionária com Marx e Engels, que teriam sido simplesmente traídos pelos dirigentes da Segunda Internacional. Esta seria, de fato, uma visão mítica ⎼ uma visão que será disseminada pelo stalinismo, mas não apenas por ele. Vem daí uma série de retornos críticos aos debates que atravessaram a Segunda Internacional antes de 1914, mas também aos limites das elaborações de Marx e Engels no que diz respeito às condições de luta pelo poder do proletariado. Limites estes ligados a certas condições históricas de então, mas também a certos problemas teóricos gerais; notadamente com relação ao estatuto da política e à relação entre luta política e "necessidade histórica".


Vem daí a insistência na noção de estratégia, ainda mal articulada em Marx e Engels, que se atém ao lugar particular ocupado pela luta pelo poder político na revolução proletária. A estratégia, escreve Daniel Bensaïd, "é um projeto de derrubada do poder político burguês. Pois a revolução socialista começa por este ato político. [...] O critério central é a conquista do poder político".


Nesse quadro, a ditadura do proletariado é percebida como uma categoria estratégica; isto é, como uma forma de poder político, diretamente articulada às condições políticas da luta pelo poder do proletariado. Para tratar disto, não basta congelar a cena em outubro de 1917; é preciso levar em conta as experiências revolucionárias que se seguiram, citadas mais acima. Assim procede Daniel Bensaïd em sua brochura, distinguindo duas hipóteses estratégicas (o emprego do termo hipótese é certamente significativo em seu modo de articular luta política e "necessidade histórica"). Uma hipótese está ligada às lutas por libertação nacional e à "guerra revolucionária prolongada"; a outra, que diz respeito aos países em que o proletariado é dominante, é a da "greve geral insurrecional".


Nos anos 1970, esse debate não era acadêmico. Discussões nessa linha atravessaram a reflexão da Quarta Internacional sobre a América Latina. E foi em referência à guerra revolucionária prolongada e à experiência da revolução chinesa que correntes importantes da extrema-esquerda italiana se lançaram em um enfrentamento direto com o aparelho de Estado. Na Europa, a Liga defendeu a perspectiva da "greve geral insurrecional": crise revolucionária, dualidade de poder, enfrentamento com o Estado burguês mediante a luta para fazer com que as estruturas de duplo poder se tornassem a base do novo Estado operário. Depois de algumas idas e vindas, a Liga passou a aderir a uma política de frente única.


Mais uma vez, não se trata aqui de erigir a revolução russa como modelo e de subscrever uma visão "simplista" do processo revolucionário. O próprio Trotsky já sublinhava a diferença entre a revolução russa, marcada por uma crise de definhamento do Estado, e a Alemanha. Para este país, por conta das tradições do movimento operário e do Estado, ele vislumbrava um processo de crise prolongada ⎼ especialmente por meio do desenvolvimento de experiências de controle operário ⎼, e não de emergência rápida de um duplo poder. De modo mais geral, a Liga não ignorou a distinção entre Oriente e Ocidente, recuperando Gramsci para sistematizar.


No entanto, a perspectiva estratégica é reafirmada, e é ela que sobredetermina a abordagem das questões referentes à democracia. Foi assim nas polêmicas encampadas à época pela Liga contra certas correntes "eurocomunistas" de esquerda, que defendiam uma perspectiva de "democracia mista”, à maneira das correntes "austro-marxistas" nos anos 1920 (Max Adler, Otto Bauer). Ou seja, que defendiam uma estratégia de passagem para o socialismo por meio de um parlamento clássico apoiado sobre conselhos operários e comitês. A Liga não os repreende somente pelo fato de terem esquecido o enfrentamento inevitável com o aparelho de Estado burguês (em tempo: alguns partidários da "democracia mista" não se esqueceram disto), mas dirige também uma crítica mais geral: à recusa de se fazer dos conselhos a estrutura basilar do Estado operário.


2) A democracia soviética como forma do poder dos "produtores associados"


Sem falar do stalinismo, sabe-se que o problema da democracia, ligado ao do partido, é uma questão-chave, presente desde os anos 1920 na Rússia soviética e reposta recorrentemente pelas demais experiências revolucionárias (China, Cuba, etc.). Uma das originalidades da Liga e da Quarta Internacional, diante da maioria das demais correntes de extrema-esquerda, é o fato de terem abordado frontalmente este assunto ⎼ em particular por meio de um texto de referência programática, datado de 1978, "Democracia socialista e ditadura do proletariado". Tal abordagem se deu em torno de dois temas já tratados por Trotsky: as liberdades democráticas e, sobretudo, o pluripartidarismo.


Não vou entrar em detalhes aqui, nem sublinhar como, de fato, essa abordagem opera uma reavaliação da herança legada por Marx e, depois, pela Internacional Comunista dos anos 1920 ⎼ em particular no que concerne à questão-chave das relações entre partido e proletariado. O problema para a Liga não é, portanto, a ausência de tratamento da democracia em geral, mas a referência a uma forma particular de democracia: a democracia soviética.


A propósito da Comuna de Paris ou dos sovietes, tradicionalmente fala-se em democracia direta, em oposição à democracia representativa. Daí uma crítica clássica: o mandato imperativo ligado à democracia direta leva à mera adição de pontos de vista, e não à possibilidade de que assembleias eleitas produzam, uma vez concluídas as deliberações, opções gerais. Contudo, se Marx e a Internacional Comunista dos anos 1920 falam de representantes eleitos e revogáveis, não se trata de mandatos imperativos. A democracia de tipo soviético é uma democracia representativa, que supõe uma forma de delegação do poder e de representação.


Daniel Bensaïd nos lembra disto em sua brochura, quando especifica o que diferencia esta democracia representativa da democracia representativa burguesa. Trata-se de romper "a separação entre a cidadania política e a existência social. A democracia socialista exprime diretamente os produtores associados, ela se enraíza, portanto, diretamente sobre os locais de produção e ultrapassa a vida dupla do trabalhar enquanto homem e enquanto cidadão. Esta é a ideia de base. A partir daí, pode-se imaginar todo tipo de hipóteses".


Os textos produzidos no pós-1968, com base no balanço da Revolução russa e da experiência das lutas anti-burocráticas no Oriente, mostram que as discussões sobre as formas institucionais de uma democracia socialista não se reduzem à simples pirâmide dos sovietes. É fato que a democracia de tipo soviético se articula bem às formas piramidais de poder: trata-se de representar através delas as "comunas sociais". Já em uma democracia "burguesa", é o cidadão abstrato (não enraizado socialmente) que elege o "seu" mandante: daí o sufrágio direto.


Este problema do enraizamento social da cidadania se inscreve em uma perspectiva do definhamento da política como atividade separada dos indivíduos. Certamente esta não é uma perspectiva imediata, mas, conforme Ernest Mandel: "O Estado operário é a última forma histórica do Estado. É uma forma de Estado que começa a definhar".


Compreendida deste modo, a democracia soviética é uma forma política ligada a um conteúdo: ela exprime o poder dos "produtores associados". Eu gostaria de sublinhar, dentre tantas, duas questões ligadas a essa abordagem, que são pouco discutidas. A primeira diz respeito a como definimos a cidadania, a segunda à visão que se delineia a partir desta definição das relações entre emancipação e trabalho.


3) A cidadania como estatuto social


O direito ao voto é um elemento central na definição da cidadania. Trotsky tem uma boa fórmula para especificar sua abordagem dessa questão no quadro da problemática soviética. Ele fala do "sistema eleitoral soviético, fundado sobre os grupos de classe e de produção" que se opõe "ao sistema da democracia burguesa", baseado naquilo que chamamos de "sufrágio universal direto" da "população atomizada".


A Revolução russa introduziu a categoria de cidadão, que não existia sob o czarismo: os sujeitos do czar eram divididos em cinco estados, cada um gozando de um estatuto legal. No entanto, desde o início, certas restrições foram aplicadas ao direito ao voto, que era especificado segundo o estatuto social: a Constituição de 1918 priva de direito ao voto (e de elegibilidade) aqueles que exploram o trabalho alheio ⎼ o que é a tradução jurídica do papel dirigente atribuído à classe trabalhadora. Essa disposição, acionada não pelos bolcheviques, mas pelos sovietes de antes de outubro de 1917, ilustra bem a lógica do sistema soviético como sistema representativo...


Além das medidas eleitorais particulares da Revolução russa, a citação de Trotsky mostra claramente que a problemática soviética implica a definição da cidadania em relação a um estatuto social. A cidadania não é aqui um atributo do indivíduo abstrato (direitos humanos), mas deriva do pertencimento a um grupo social. Em sentido estrito, a problemática não é aquela do sufrágio universal. Se em A guerra civil na França Marx pode se referir sem problemas ao sufrágio universal, isso se deve ao simples fato de que ele pressupõe que a base social do novo poder é homogênea socialmente: trata-se de produtores associados.


Minha insistência se justifica pelo fato de a Liga jamais ter abordado frontalmente esta questão. A problemática soviética não tem por função somente conferir à cidadania uma dimensão social, mas também a fixar socialmente. Ao fazê-lo, ela se inscreve na perspectiva do definhamento da política como momento separado, específico da prática social.


4) Trabalho e emancipação


A problemática soviética se articula igualmente com uma visão da emancipação do salariato entendida como emancipação do trabalho frente à tutela do capital; a emancipação dos indivíduos se realiza essencialmente através do trabalho, certamente transformado, liberto das alienações capitalistas, etc... A reorganização da sociedade é, então, pensada como reorganização do corpo social ao redor da produção, ela mesma transformada. Estes apontamentos visam não só certa tradição de valorização do homo faber, clássica no movimento operário, mas também a tradição marxista-revolucionária pós-1968 que, além disso, é crítica desta visão.


Citemos Daniel Bensaïd em 1976: "Ao tornar-se o epicentro do poder, a associação de produtores em seus locais de trabalho perturba o conjunto da estrutura social, abole a cisão entre o Estado e a sociedade civil. A empresa em que reside a estrutura de base do novo poder não pode mais ser uma empresa, do mesmo modo como o Estado proletário não é mais, segundo a expressão de Engels, ‘um Estado propriamente dito’. [...] Pois definir a coletividade dos produtores como a célula de base da soberania proletária não significa apenas localizar a base do poder nos locais de produção, mas modificar de cima a baixo as divisões sociais estabelecidas pelo capitalismo". O trabalho não é mais uma atividade separada, "ele se torna a trama socializada de novas relações sociais nas quais são superadas as separações entre a esfera do trabalho e a esfera do não-trabalho".


Vê-se que essa problemática da emancipação articulada ao redor do trabalho liberto finca suas raízes em uma perspectiva mais geral de definhamento não apenas do Estado, mas de toda uma série de dimensões "separadas" da vida social trazidas à tona pelo capitalismo. Porém, qualquer que seja a mudança desejada nas relações sociais, a coisa é mais complicada que isto. No que diz respeito às relações entre emancipação e trabalho, é mais interessante se apoiar na dialética entre tempo livre e tempo de trabalho esboçada por Marx nos Grundrisse e na conclusão do livro III do Capital. Estou apenas levantando a questão. A problemática não é a de uma "reunificação" da vida social, mas a da manutenção do trabalho (certamente totalmente transformado) e da produção como uma esfera social específica.


Este ponto, que assinalo apenas de passagem, coloca o problema de o que devemos entender por abolição do salariato. Se a exploração capitalista não existe mais, o salariato como relação social de disponibilização da própria força de trabalho permanece. E isso simplesmente porque a separação dos produtores com relação aos meios de produção não é posta em questão em prol do retorno às formas artesanais de produção. E essa separação, que ainda é mantida, gera efeitos sobre a organização do espaço social e se traduz na manutenção daquilo que Marx, como veremos, chama de funções administrativas na gestão da produção.


Seja como for, o fato é que o "reino da liberdade", de que Marx fala no livro III do Capital, situa-se fora da produção, nas atividades ligadas ao tempo livre, proporcionado pela redução da jornada de trabalho. O indivíduo não é fixado em um estatuto social único de produtor. O que o caracteriza, pelo contrário, é sua possibilidade de circular através das diferentes esferas da prática social: trabalho, formação, atividades sociais diversas, etc... É difícil ver como essa perspectiva pode se articular com aquela de uma democracia que faz da empresa "a estrutura de base do novo poder".


II. Um retorno necessário sobre a democracia


Não é preciso tecer longos argumentos para explicar a necessidade de uma reflexão sobre a democracia.


1) Ruptura com o capitalismo, democracia e apropriação social dos meios de produção


Afirmar que a fase histórica ligada à revolução de outubro se encerrou (há bastante tempo, mas esse é um outro debate) é igualmente dizer que o quadro estratégico definido acima tornou-se obsoleto. De fato, há muitos anos ele não estrutura mais o perfil da Liga. E percebe-se com clareza que o tema da defesa da democracia, que se tornou um de seus eixos centrais, não é uma mera retomada da temática clássica do lugar conferido à defesa das liberdades democráticas em uma conjuntura defensiva.


Seria preciso discutir mais longamente a respeito da avaliação dessa fase histórica. Seria inútil tentar reestabelecer uma continuidade direta com Marx e Engels quanto à questão da luta pelo poder, ou então com as tradições nacionais de antes de 1917, como a de Jaurès (o socialismo pela República social); como se outubro de 1917 e o que se seguiu tivesse sido mera obstrução. Repetindo: a tradição inaugurada por outubro de 1917 cristalizou (para o bem e para o mal) uma dimensão estratégica do marxismo que, justamente, foi construída a partir das insuficiências estratégicas legadas da fase anterior. Quanto às teorizações posteriores a outubro de 1917 a respeito da passagem parlamentar e pacífica ao socialismo, conhecemos bem seu balanço.


Não se trata, portanto, de esquecer o passado, mas simplesmente de notar que a fase atual é marcada por uma incerteza estratégica que seria inútil pretender solucionar por meio da repetição pedagógica das hipóteses estratégicas do passado ⎼ ou por meio da elaboração "de apartamento", distante das novas experiências históricas, de uma nova estratégia.


A fórmula da incerteza estratégica remete ao modo pelo qual, no período pós-1968, a Liga estava construída em torno de uma hipótese estratégica. Isto não quer dizer que a manutenção de uma perspectiva de ruptura com o capitalismo não se cristaliza ao redor de certos eixos gerais. O primeiro destes eixos diz respeito à apropriação social dos principais meios de produção, a fim de romper não com o mercado em geral, mas com a sua dominação. O segundo concerne à democracia. O primeiro é decisivo porque, na conjuntura atual, estruturam-se ao seu redor clivagens decisivas no que diz respeito à "superação" do capitalismo e à batalha por uma sociedade que leve em conta as necessidades sociais, ecológicas, etc. E de modo mais amplo, porque uma simples lógica de democracia política, sem incursões nas relações de propriedade, não leva "naturalmente" a uma dinâmica de transformação social.


No entanto, a questão da democracia não pode se diluir em um discurso genérico que se contenta em ressaltar que as condições sociais geradas pelo capitalismo impedem a consolidação de uma democracia real. Antes, tal questão diz respeito a uma esfera particular (e decisiva) da sociedade, que é o poder político, sua organização, a batalha por sua transformação, etc. Sob este aspecto, a necessidade dessa batalha específica traduz igualmente uma certa continuidade com relação às referências anteriores da Liga, a uma certa visão da contribuição de Lênin no que tange à dimensão específica da luta política, etc.


2) O que é a democracia?


A democracia, no sentido moderno do termo, é uma forma política cuja emergência está historicamente ligada ao período das revoluções burguesas. Sem entrar aqui no mérito das discussões sobre as diferentes abordagens da democracia ligadas a condições históricas diferentes destas revoluções, farei referência à abordagem da democracia vinda da revolução francesa. É esta abordagem, de fato, que marcou a história do movimento operário e dos movimentos por emancipação, e é a partir dela que Marx trabalha.


Antes de ser uma forma institucional, a democracia, compreendida deste modo, se ancora em dois princípios historicamente inéditos de organização do poder político.


a) Todos os indivíduos são ditos iguais e livres perante a lei. É sobre esta base que se define a cidadania, isto é, o exercício da soberania. O indivíduo não é cidadão em função de um estatuto social pré-definido (pertencimento a uma ordem, comunidade, classe, etc.), mas devido a esse movimento que o define como membro do povo-cidadão, igual aos demais cidadãos. Se falo em movimento, é porque essa cidadania não é uma essência pré-constituída, mas uma relação social, construída através de lutas. Não somente ela é imposta à burguesia, mas também sua definição permanece sempre objeto de disputas.


b) Essa forma de soberania engendra uma forma particular de poder político, um "poder público", para retomar a expressão do Manifesto do Partido Comunista. Isto é, um poder que, em sua definição, possui duas características essenciais que o diferenciam de todas as formas de poder político que existiram no passado. Por um lado, trata-se de um poder que não pertence a ninguém (indivíduo ou grupo social). Por outro, trata-se de um poder que não tem sua legitimação dada por uma inscrição em uma ordem sobrenatural (o cosmos, o reino de deus, etc.), mas se mostra como emanação do povo soberano.


Em seus textos de juventude ⎼ os únicos em que produziu uma análise sistemática da especificidade do Estado moderno ⎼, Marx ressalta o caráter historicamente inédito desta forma de poder político. Contudo, ainda que ele pense que a emancipação política seja um grande progresso, ele caracteriza a democracia assim definida como abstrata, porque ela se articula com a sociedade civil-burguesa que vive sob o reino do homem egoísta e das desigualdades sociais. E ele descreve o Estado que dá à luz essa forma de poder político como um Estado político separado: ele não está embutido nas realidades socioeconômicas da sociedade civil, mas repousa sobre a comunidade ilusória de cidadãos abstratos. O Estado do Antigo Regime, pelo contrário, não é um Estado separado, uma vez que, para além de seu caráter patrimonial, ele se articula com formas de organização sócio-políticas da sociedade civil (ordens, corporações, senhorio) nas quais se inserem os indivíduos, e que mediatizam as relações destes com o Estado.


3) O momento necessário da abstração política


Deste modo, Marx pretende criticar a pretensão da política e do direito moderno de produzir uma verdadeira comunidade humana, assim como sua função a uma só vez de ocultação e racionalização das contradições da sociedade civil. Não voltarei a este aspecto da questão. Antes, eu diria, em uma formulação deliberadamente lapidar e paradoxal, que mais de um século depois, podemos retomar estas caracterizações que o jovem Marx faz da democracia, mas conferir-lhes um sinal positivo. E isto por duas razões:


a) É o caráter abstrato, socialmente indeterminado, da cidadania e dos direitos humanos que dá todo o seu interesse a esta definição da democracia. De fato, como princípio de organização do poder político ela se depara com a realidade de uma sociedade dominada pelo capital, que limita, confisca, etc., a democracia. Sua dialética é a de uma exigência ininterrupta e universal de uma batalha pela cidadania, por seu alargamento, por seu exercício em nome da legitimidade reiterada do povo-soberano.


b) Do mesmo modo, é por funcionar como Estado político separado da sociedade civil que essa forma de poder pode se estabelecer como "poder público" ⎼ e isso no sentido indicado mais acima: esse poder não é propriedade de ninguém. Por isso, mais uma vez, a exigência ininterrupta, frente à realidade de uma sociedade dominada pelo capital (ou frente aos Estados burocráticos), de um "poder público" controlado pelos cidadãos e não por interesses particulares.


Definida desta maneira, a democracia não é uma simples forma superestrutural ⎼ para retomar certa terminologia "marxista" ⎼ cuja verdade estaria alhures: na economia, na natureza de classe do Estado, etc. Trata-se, antes, de um princípio de organização do poder político que gera efeitos no conjunto da estruturação das relações sociais (da sociedade civil).


É evidente que essa batalha pela democracia não se reduz à defesa de uma abstração política. Segundo Marx, a dinâmica dos direitos humanos é fortemente socializada, de acordo com a problemática do direito ao trabalho, ao ensino, etc. É preciso fazer pressão nesse sentido. Do mesmo modo, pode-se perfeitamente articular a organização do poder político com formas de representação do social (comitês, associações, etc.); isto é uma necessidade para quem gostaria de refletir sobre formas de organização do poder em uma sociedade que rompeu com o capitalismo e que precisa, de uma só vez, socializar a produção e a política. Não é possível se limitar à abstração do povo-soberano. Trata-se simplesmente de ressaltar que a "abstração política" da qual fala o jovem Marx ⎼ a enunciação de uma cidadania socialmente indeterminada ⎼ é um momento decisivo e incontornável da democracia.


Inclui-se aí uma sociedade que, tendo rompido com o capitalismo, comece a pôr para funcionar a dinâmica da emancipação social através da dialética entre o desenvolvimento do tempo livre e do tempo de trabalho de que falamos mais acima. Nesta sociedade o indivíduo circula por diversas esferas sociais (trabalho, formação, vida social, etc.) nas quais se desenvolvem formas de gestão democrática. No entanto, o que caracteriza a relação das diversas práticas desse indivíduo com o poder político? Ele é um cidadão no sentido abstrato e não um indivíduo que obtém seu estatuto de cidadão de seu estatuto de produtor, ou de outra determinação social qualquer.


"Não se trata somente de libertar a produção, mas também de se libertar da produção ao parar de fazer dela o eixo de gravidade das atividades sociais e das ações dos indivíduos", escreve Jean-Marie Vincent, resumindo bem a perspectiva de emancipação que ressaltamos anteriormente. Se é este o caso, é preciso tirar as consequências e romper definitivamente com a problemática da "democracia de produtores". E, sublinhe-se, essa problemática mergulha suas raízes bem além da revolução russa. Nós conhecemos a fórmula com que a tradição sindicalista-revolucionária resumia sua perspectiva de emancipação operária: "a oficina será o governo".


4) Apontamentos sobre a análise do Estado capitalista


Essa abordagem da democracia moderna não contradiz em nada a análise do Estado político separado da sociedade capitalista como um Estado de classe cuja particularidade, relativamente às formas pré-capitalistas, é a de funcionar como um Estado representativo. Por mais que ele tenha evoluído desde o período censitário, nem por isso ele se tornou um Estado "neutro", mas seguiu sendo um Estado capitalista, ainda que não se reduza a isto. Sobre essas questões, não posso deixar de remeter a meus trabalhos anteriores. É preciso insistir no fato de que uma das principais fraquezas da tradição marxista reside sem dúvida em sua incapacidade de abordar sistematicamente o caráter radicalmente novo do Estado moderno, em relação às formas de poder político das sociedades pré-capitalistas. Daí se seguem duas consequências.


Primeiramente, há uma dificuldade de dar conta das particularidades das formas de dominação política da burguesia com relação às formas próprias às classes dominantes das sociedades pré-capitalistas, assim como uma tendência recorrente a adotar um discurso trans-histórico, monótono e entediante sobre o Estado de classe através das eras. Em seguida, há uma dificuldade de compreender a formidável ruptura na organização do poder político gerada pelo advento do Estado moderno.


Marx ressalta frequentemente que o desenvolvimento do capitalismo recoloca em questão o modo de organização de todas as sociedades passadas nas quais o poder político-econômico se estruturava através de relações de dependência pessoal. Mas é também isso que se exprime através do advento deste Estado, dado que ele delimita essa esfera social particular ⎼ e historicamente inédita ⎼, se mostrando como "poder público", emanação do povo-cidadão, no sentido definido mais acima.


Aqui, reencontra-se um problema que já havíamos reencontrado. Aquele da relação entre a perspectiva da emancipação e as "conquistas da era capitalista", para retomar uma expressão de Marx, na organização do social. Isto é, está em questão o futuro de toda uma série de dimensões "separadas" da vida social atualizadas pelo capitalismo e que, em última análise, são o produto dessa outra formidável ruptura histórica representada pela separação dos produtores e dos meios de produção.


III. Sobre o definhamento do Estado


Essa abordagem da democracia pressupõe um outro esclarecimento programático que diz respeito à perspectiva de definhamento do Estado. Eu não vou me engajar aqui em um debate "erudito" de interpretação dos textos de Marx e dos problemas ou aporias encontrados em seguida pela tradição marxista que adotou esta perspectiva. Apenas sublinharei três questões. De resto, não se pode fazer o balanço do "socialismo que realmente existiu" sem levar em conta esse ponto cego legado por Marx para a tradição marxista que é a perspectiva do definhamento do Estado.


1) Definhamento do direito e da política em prol da mera administração da produção


Ninguém é obrigado a reivindicar Marx, mas aquele que o faz ⎼ e em particular aquele que o faz via uma tradição histórica que se cristaliza em O Estado e a Revolução de Lênin ⎼ não pode se contentar com a explicação segundo a qual a perspectiva do definhamento do Estado é uma mera fórmula geral, que indica a vontade de construir um poder político não-burocrático. Ou ainda, se contentar com meramente sublinhar que se trata de uma perspectiva histórica de longo prazo, esquecendo que ela estrutura a perspectiva mais imediata do período da chamada "ditadura do proletariado".


Desde muito cedo a perspectiva de Marx é a do definhamento do Estado, da política e do direito moderno. Com o tempo, ela se torna mais precisa: insistência na necessidade da luta pelo poder político do proletariado; período de ditadura do proletariado; distinção de diversas fases históricas na construção do comunismo, etc. Mas não se pode driblar o fato de que a perspectiva segue sendo a do definhamento do direito e da política e, portanto, da democracia no sentido em que eu falei há pouco.


O que existirá então? Aqui as indicações são menos sistemáticas, e eu deixo de lado os textos de juventude. O Manifesto fala da manutenção de um "poder público que perderá seu caráter político" e da "transformação do Estado em uma mera administração da produção". Esta abordagem permanecerá dominante. Conhecemos a expressão de Engels no Anti-Dühring: "O governo das pessoas dá lugar à administração das coisas e à direção das operações de produção". Muito se disse sobre seu caráter "tecnocrático". Marx é (ao meu ver) menos sistemático. No entanto, em seus textos de maturidade, quando trata desta questão, Engels explica que, com relação ao Estado atual, "as funções governamentais" desaparecerão e se manterão as "simples funções administrativas".


Lênin é "ortodoxo" porque escreveu, em O Estado e a Revolução, que, para Marx, a democracia é ainda uma forma de Estado e, enquanto tal, deve desaparecer. Vez ou outra se ressalta que um dos interesses deste livro de Lênin é enfatizar uma convergência entre o marxismo e o anarquismo no que diz respeito à perspectiva geral de desaparecimento do Estado. Eu acredito que, pelo contrário, esta afirmação indica um impasse teórico. É assim também com a retomada da temática da oposição entre Estado / liberdade ⎼ que, ao fim e ao cabo, pertence à tradição liberal. Para além disso, frequentemente se esquece que, neste livro, Lênin faz da grande indústria legada pelo capitalismo ⎼ uma vez suprimida a propriedade privada por meio da estatização dos meios de produção ⎼ a tão esperada base a partir da qual pode se organizar o definhamento do Estado.


Lênin retoma aqui a abordagem do Anti-Dühring. É o bastante, diz Engels, suprimir a propriedade privada para que a socialização imanente das forças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo desabroche. Isso implica calar sobre as análises de Marx a respeito do despotismo da fábrica, mas nos permite compreender como Engels pode afirmar que o Estado desaparece no momento mesmo em que se toma os meios de produção... As fórmulas de Lênin em O Estado e a Revolução são mais prosaicas, mas também mais inquietantes: "Todos os cidadãos tornam-se empregados e operários de um único 'cartel' do povo, do Estado. [...] A sociedade inteira não será senão um único escritório e uma única oficina, com igualdade de trabalho e igualdade de salário".


2) A propósito da separação entre os produtores e os meios de produção


A temática da transformação das "funções governamentais" em "meras funções administrativas" reflete as contradições nas quais Marx e Engels se enredam quando tratam da perspectiva de definhamento do Estado. Eles se diferenciam da tradição anarquista da época, que imagina que esse definhamento (ou supressão ⎼ não é esse ponto que está em questão aqui) se daria com a implementação de formas comunitárias de organização da produção de gêneros artesanais ou semi-artesanais ("o governo é uma oficina").


O desenvolvimento do capitalismo colocou em xeque uma produção que, nas sociedades pré-capitalistas, era organizada na forma “de um processo de trabalho individual" ⎼ segundo a expressão que Marx e Engels empregam frequentemente ⎼, em prol da organização de uma cooperação através de um "trabalhador coletivo". Para Marx, não se trata de voltar atrás: a produção deve se organizar a partir do "trabalhador coletivo" livre da tutela do capital. Conforme ele escreve nos Grundrisse: "O produto deixou de ser obra do trabalho isolado e direto: é na realidade a combinação da atividade social que aparece como produtor".


De fato, se permanece a necessidade de um "poder público", isso se dá porque a supressão da propriedade privada não tem por objetivo questionar a separação dos produtores relativamente aos meios de produção tendo em vista o retorno a uma forma artesanal de produção e de organização comunitária, e sim organizar essa "combinação da atividade social" a partir de bases diferentes.


Mais de um século mais tarde, não é preciso muita argumentação para enfatizar que essa organização não se reduz a meras funções administrativas (que se pretendiam puramente técnico-científicas), mas remete a escolhas políticas. E isso especialmente porque ela pressupõe a manutenção de formas de divisão do trabalho e de instituições públicas através das quais podem se cristalizar formas de dominação sócio-política; mesmo se considerarmos como dado o desaparecimento das classes sociais. Marx não chega a imaginar essa possibilidade quando, para ilustrar o que entende pela desaparição do Estado político ⎼ concomitante à da dominação de classe ⎼, toma "a posição de um gerente em uma cooperativa operária" como exemplo de uma função puramente administrativa, que não confere poder algum.


Mais concretamente, para além das fórmulas de O Estado e a Revolução que citamos mais acima, esse tipo de problema foi escamoteado pelos dirigentes da jovem revolução russa: vem daí o ponto cego que é a afirmação de que, uma vez suprimida a propriedade privada e estatizados os meios de produção, colocar-se-iam questões essencialmente de organização técnica da produção (Pachukanis, Preobrazhensky). À época, Trotsky é sem dúvida o dirigente bolchevique que vai mais longe no questionamento dessa visão tecnicista, insistindo ⎼ segundo uma fórmula de Ernest Mandel ⎼ na "função socioeconômica da democracia soviética".


No entanto, também ele permanece preso a essa visão, como se pode ver nos limites de sua análise do Estado stalinista. Apesar de sua denúncia do controle da burocracia sobre a economia, ele não chega a compreender "teoricamente" que a manutenção da separação dos trabalhadores relativamente aos meios de produção pode ser, por meio da estatização dos meios de produção, um fator-chave na produção/reprodução de formas estatais burocráticas.


Aqui seria preciso tratar mais detalhadamente da categoria de burocracia. Uma das fraquezas da tradição marxista é muitas vezes fazer dela uma categoria trans-histórica, sem considerar verdadeiramente a burocracia no sentido moderno do termo, como camada social específica gerada pela separação dos produtores relativamente aos meios de produção e, precisamente, das funções administrativas vinculadas a estes.


3) Manutenção de um Estado político separado


Assim como a apropriação social dos meios de produção não coloca em questão a separação dos trabalhadores relativamente aos meios de produção, mas organiza de modo diferente sua cooperação ⎼ funcionando como "combinação da atividade social" ⎼, também a "destruição" do Estado burguês não pode ser entendida como a desaparição dessa esfera social particular que não existe nas sociedades pré-capitalistas. E que se cristalizou no Estado, como instituição específica, distinta das demais relações sociais.


É nesse sentido que se deve falar na manutenção de um Estado político separado ⎼ isto é, na manutenção de uma instituição ou conjunto de instituições específicas, distintas das demais relações sociais e em que se cristaliza o "poder público" de que fala o Manifesto. E se se imaginar que se trata aqui de um lugar em que há somente funções administrativas que não conferem poder algum, então aqueles que estão no comando poderão se perpetuar com tranquilidade. Decorrem daí dois problemas.


O primeiro diz respeito ao questionamento das formas de existência burocráticas desse Estado e das relações sociais que elas engendram. Ao lado da questão da definição da apropriação social dos meios de produção, abre-se a questão do futuro da divisão do trabalho. É difícil imaginar ⎼ a menos que, mais uma vez, pensemos a reapropriação dos meios de produção sob a forma artesanal ⎼ como a organização da produção, entendida como "combinação da atividade social total", poderia suprimir toda a divisão do trabalho. A perspectiva da "polivalência" de que fala Marx deve ser entendida como a capacidade dos indivíduos de circular por diferentes esferas de atividade. Se é assim, é preciso tratar dos efeitos da manutenção de certa divisão do trabalho. Em particular, dos efeitos das sempre presentes "funções administrativas" e do par dirigentes/dirigidos criado por elas. A tradição marxista tendeu a dissolver a especificidade dessa questão em um simples discurso sobre a dominação de classe.


O segundo problema diz respeito aos princípios propriamente políticos de organização desse poder. Reencontramos aqui a democracia moderna como simultaneamente a afirmação da cidadania enquanto direito do homem em geral (isto é, como direito socialmente indeterminado) e a afirmação da existência de um "poder público" cristalizado em uma instituição separada da sociedade civil, também ela indeterminada; justamente devido a seu caráter "público".


IV. À guisa de conclusão


Este artigo tinha o objetivo de elencar certos problemas legados pela tradição marxista no que tange à perspectiva geral da emancipação social. A discussão não pode senão continuar, e ela abarca muito mais do que a Liga. A propósito da democracia propriamente dita, é preciso sem dúvida distinguir duas questões.


A primeira diz respeito ao retorno crítico à herança de Marx e da tradição iniciada em outubro de 1917, e integra as discussões mais gerais sobre a “atualidade” do marxismo. A segunda é mais diretamente política. Parece-me que, no que diz respeito às suas referências gerais no passado, a Liga não pode seguir contornando a questão do lugar da democracia, no sentido aqui descrito, naquilo que se convencionou chamar de período de transição. Para além dessas observações, encerrarei com mais dois apontamentos.


1) Uma crise do "Estado nacional social"


O fato de a questão da democracia estar na ordem do dia não se deve a uma mera necessidade de introspecção ligada às nossas referências a Marx, a outubro de 1917, etc. e desligada da evolução do mundo real. Tal fato decorre igualmente das consequências da mundialização e da ofensiva neoliberal que a acompanha, assim como da crise das formas de soberania estatal construídas ao longo do século passado. Essa crise não implica somente problemas políticos imediatos, mas também discussões mais gerais de "refundação" da democracia e um trabalho sobre o cenário legado pelo passado.


Tomemos o exemplo da crise dos Estados ocidentais, em particular dos europeus. Muitas vezes associa-se esse tema ora à crise do Estado de bem-estar social, ora à crise do Estado-nação, enquanto na verdade a caracterização adequada da situação passa por relacionar esses dois níveis. Trata-se de uma crise do Estado nacional-social, para retomar a expressão de Étienne Balibar; isto é, de uma crise da forma estatal que começou a ser construída no final do século XIX. Na realidade, essa forma está ligada à fase histórica do movimento operário de que falamos e que, para além de outubro de 1917, mergulha suas raízes na criação da Segunda Internacional. Por sinal, é um problema importante de método analítico compreender como o Estado capitalista de um dado período histórico não pode se construir como uma forma política exterior aos efeitos da luta de classes e às formas de existência do movimento operário. Pelo contrário, a história do Estado nacional-social e a do movimento operário do século passado são as duas faces de um mesmo processo histórico.


É certo que o estabelecimento desse Estado não foi um processo linear, e se cristalizou em figuras específicas nos diferentes países. Na França, por exemplo, ele assumiu a forma do Estado republicano que, a partir da Terceira República, começa a se construir como forma estatal dotada de três características: o sufrágio universal como atributo de todos os cidadão e, ao mesmo tempo; uma cidadania tornada atributo da nacionalidade (e vice-versa); e uma cidadania nacional articulada aos direitos sociais. Isso implica a inscrição, no interior desse Estado, de formas de soberania popular (que não são meramente "formais"), por meio da institucionalização, parcial, das lutas de classe, de modo a permitir a participação da classe operária na "vida da nação". É este conjunto que está irremediavelmente em crise.


Não deixemos a discussão nos confundir. Os Estados nacionais não vão desaparecer como que encantados pelo efeito da mundialização, e o nível nacional permanece um elemento-chave para o exercício da soberania popular. Já a crise do Estado nacional-social como forma política específica, essa sim é irreversível.


2) Uma questão de refundação


Levar a sério a democracia como forma política ⎼ e a questão dos direitos humanos e cidadãos que vinculam-se a ela estruturalmente ⎼ não é simplesmente se contentar em agregar uma dimensão social (os direitos sociais, etc.) à afirmação de alguns princípios que encontramos em qualquer manual escolar, mas sim participar ativamente das discussões sobre os princípio políticos que a fundamentam. Frente à crise das soberanias estatais construídas ao longo do século passado, estamos de fato assistindo a um movimento de refundação.


A discussão sobre as diferentes abordagens da democracia, ligadas às experiências diversas das revoluções burguesas, não é nova, mas ganha novo fôlego com a ofensiva neoliberal. Na França, essa discussão se configura frequentemente como uma oposição entre a República e a democracia de tipo anglo-saxão. Colocado dessa forma, o debate é uma armadilha; tanto mais porque, frente à crise do Estado nacional-popular, seria ilusório e perigoso aderir à perspectiva de reativação de uma versão de "esquerda" da tradição republicana (a república social).


Por outro lado, há de fato algo em jogo aqui: a defesa de uma abordagem da democracia vinda da Revolução francesa, contra a versão liberal da democracia moderna. Essa abordagem consiste em fundamentar os direitos humanos na cidadania, e em fazer da afirmação da cidadania ⎼ isto é, das condições para o exercício do poder político ⎼ o ato fundador da democracia. A título de ilustração, refiro-me ao artigo sobre a igualdade escrito para a Rouge e reproduzido aqui, sob a forma de um quadro.


Terminarei ressaltando essa dimensão necessária do debate, comumente subestimada em favor da mera insistência sobre a dimensão social da democracia ou da república. Existem, porém, depois de um bocado de anos, discussões político-teóricas sobre a definição mais geral da democracia como forma política. E nós a encontramos na "esquerda da esquerda".


Veja-se, por exemplo, um texto publicado no Boletim nº4 da Fondation Copernic pelo grupo de trabalho "instituição", intitulado "o exercício da cidadania e a democratização das instituições". Sobre o tema "uma herança a transformar", o texto apresenta a tradição da soberania popular originada na Revolução de 1789 seguindo, grosso modo, a argumentação neoliberal ⎼ porém em versão "inteligente" ⎼ desenvolvida por Marcel Gauchet em A Revolução e os Direitos Humanos (Gallimard, 1989). Esquematicamente, Marcel Gauchet argumenta que essa soberania não fez senão reproduzir a figura da soberania vinda da monarquia absoluta ⎼ daí a tendência ao despotismo presente na tradição dos direitos humanos e do cidadão formulados em 1789.


Pelo contrário, Étienne Balibar fez uma leitura interessante dessa tradição, na qual, evitando os discursos "republicanos" à francesa, ressalta seu caráter radical, a saber, a dialética moderna da "igualiberdade" ["l'égaliberté"] que ela traz, assim como o interesse que ela apresenta para a reflexão sobre as relações entre as lutas pela emancipação e a democracia. Trata-se, explica o autor, de pensar uma soberania igualitária, que seria "a única maneira de abandonar radicalmente toda a transcendência e inscrever a ordem política e social no elemento de imanência, de auto-constituição do povo". Isso abre uma série de contradições, dado que a sociedade civil e o Estado são estruturados por hierarquias, desigualdades e dependências. Mas é justamente essa dialética contraditória que confere interesse a essa problemática da soberania e da exigência, sempre reiterada, de "igualiberdade" que ela porta.


Esses problemas conduzem naturalmente à questão do lugar que os direitos humanos devem ocupar, diante dos efeitos da mundialização, mas em relação com o desenvolvimento desta. Do pondo de vista da tradição programática passada da Liga, essa questão coloca um problema análogo àquele da democracia: o da referência a esses direitos como princípio universal de organização da sociedade moderna.


Publicado originalmente em Critique Communiste, nº 159-160, verão-outono de 2000.

[1] Trata-se de BENSAÏD, Daniel. Stratégie et parti. Paris: Éditions PEC-la Brèche, 1987. Uma nova edição, de 2016, conta com apresentação de Ugo Palheta e Julien Salingue (Paris: Les Praires Ordinaires, 2016). [N. do T.].

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