top of page
  • Foto do escritorEditor MRI

A crítica amorosa e furiosa de Bohrer (Peter Drucker)

Atualizado: 19 de nov. de 2020


A crítica amorosa e furiosa de Bohrer

Peter Drucker

Tradução de Neila Priscila dos Santos Costa

Revisão de Pedro Barbosa


“Marxismo e Interseccionalidade”, de Ashley Bohrer, é uma leitura indispensável para os socialistas que tentam entender como classe, raça e gênero se enlaçam. Marxismo e Interseccionalidade: Raça, Gênero, Classe e Sexualidade no Capitalismo Contemporâneo de Ashley J. Bohrer, Bielefeld (Alemanha): Transcript, 2019, distribuído por Columbia University Press.


Para gerações de socialistas, a força que iria criar o socialismo estava no movimento operário, ponto final. Para além disso, havia “Questões” para os trabalhadores debaterem: a Questão da Mulher, a Questão Nacional, a Questão do Negro, a Questão Judaica. Somente com a ascensão do movimento por direitos civis, do movimento Black Power e com a segunda onda do feminismo que essas “Questões” se transformaram, para a esquerda, nos principais atores sociais com os quais ela teria que lidar.


A partir da década de 1970, feministas marxistas e marxistas negras(os) e latinas(os) estavam transformando a teoria revolucionária, na tentativa de fazer justiça a essas diferentes forças sociais. Na década de 1980, com os sindicatos em declínio e a esquerda socialista se desintegrando, muitas(os) teóricas(os) radicais foram além do marxismo. Em particular, feministas afro-americanas como Patricia Hill Collins e Kimberlé Crenshaw teorizaram a “interseccionalidade” em uma abordagem ambiciosa e nova para mapear o entrelaçamento entre racismo, gênero e local de trabalho.


Hoje, no entanto, uma nova geração de jovens socialistas, inspirada nas campanhas de Bernie Sanders e na onda de greves dos professores, vem revivendo um marxismo de “classe primeiro”[1]. Muitos deles compartilham uma rejeição automática das “políticas de identidade” – uma frase que pode significar muitas coisas diferentes. Geralmente (ao contrário das gerações anteriores), eles sabem que precisam pelo menos dizer uma palavra sobre o antirracismo, o feminismo e os direitos LGBTI. Mas muitas vezes eles não se envolveram muito com o pensamento antirracista, feminista ou queer da esquerda, e especialmente não se envolveram com a interseccionalidade.

"Visivelmente furiosos"


Ashley Bohrer, ela própria uma ativista de esquerda assim como uma filósofa da Universidade de Notre Dame, tem pouca paciência com a ignorância de muitos socialistas. Ela descreve a sessão em uma conferência em que os principais pesquisadores marxistas brancos reivindicaram demolir a interseccionalidade em apresentações “repletas de erros, caricaturas e pronunciamentos desmedidos”, enquanto “muitos jovens, negros e mulheres”, ignorados na discussão, encontravam-se “visivelmente furiosos” (p. 13).


Bohrer leu amplamente o trabalho de feministas marxistas e pensadores antirracistas, bem como de teóricas da interseccionalidade, e pensou profundamente sobre o que elas/eles têm a dizer. Ela está frustrada, e com toda a razão, com recusas apressadas da interseccionalidade por marxistas – e vice-versa, porque alguns teóricos da interseccionalidade descartam o marxismo tão rápida e ignorantemente quanto o contrário se dá.


Exemplos retirados do ativismo levaram Bohrer a insistir na utilidade tanto do marxismo como da interseccionalidade. Seu interesse por eles “nasceu realmente de seu trabalho com comunidades ativistas”, do Occupy Chicago ao Jewish for Justice in Palestine também passando pela International Women's Strike (p. 9). “[Os] argumentos produzidos na rua... frequentemente falam com mais clareza e precisão” do que os acadêmicos, ela escreve (p. 21), e tanto o marxismo quanto a interseccionalidade têm raízes profundas nas ruas.

Além disso, Bohrer destaca que as teóricas da interseccionalidade homenagearam ancestrais que foram profundamente influenciados pelo marxismo. Isso inclui comunistas negros, desde Claudia Jones, uma teórica pioneira da “superexploração” e da “tripla opressão” na década de 1940, até Angela Davis nas últimas seis décadas, que recentemente descreveu seu próprio trabalho como interseccional. O socialista negro e mais tarde comunista W. E. B. Du Bois enfatizou a “significação simultânea” de raça, classe e gênero. Elizabeth Martinez, tendo sido uma trabalhadora Chicana em tempo integral para o SNCC, em 1972 chamou o capitalismo, o racismo e o sexismo de “faces do mesmo inimigo”. A famosa declaração do Coletivo Combahee River, de 1979, um verdadeiro monumento do feminismo negro e do pensamento anticapitalista, foi precursora de Collins e Crenshaw. Audre Lorde e bell hooks fizeram muitas das mesmas conexões.


Crítica amorosa


Ao invés de “policiar os limites” de tradições teóricas, Bohrer defende uma “crítica amorosa”. E ela vê muito o que criticar, nos dois lados do debate sobre o marxismo e a interseccionalidade. De fato, enquanto a teoria da interseccionalidade foi apropriada pelos departamentos de estudos de gênero, seu foco inicial no racismo foi ofuscado, e sua compreensão sempre incerta sobre [a categoria] classe ficou ainda mais frouxa. (O marxista palestino Rafeef Ziadah apontou em uma discussão recente sobre o livro de Bohrer que hoje a interseccionalidade é até astutamente utilizada como um álibi por departamentos de recursos humanos.) Entre os radicais não-marxistas que reivindicam inspiração na teoria da interseccionalidade, Bohrer vê e rejeita uma obsessão pela “checagem de privilégio”, que pode reduzir as pessoas e seus argumentos a reflexos mecânicos de sua branquitude, masculinidade ou heterossexualidade.


E Bohrer admite, com pesar, que alguns marxistas alegam explicar a acumulação e a crise de maneiras completamente cegas às questões de gênero e raça – quando a realidade nunca é cega às questões de gênero e raça – ou de maneira eurocêntrica. Alguns marxistas teorizaram a história capitalista baseando-se exclusivamente em exemplos da agricultura e indústria inglesas. No entanto, obras marxistas como Europe and People Without History [Europa e os povos sem história, em tradução livre] de Eric Wolf, mostraram como a riqueza acumulada por meio da escravidão africana e do saque das Américas e da Ásia foram centrais para o início do capitalismo.


Uma leitura difícil, mas produtiva


Mesmo a escrita clara de Bohrer e seu talento para encontrar exemplos reveladores não tornam sempre Marxismo e Interseccionalidade uma leitura fácil. O livro fica particularmente denso quando ela se propõe a identificar exatamente o que distingue a teoria da interseccionalidade das explorações anteriores de classe, raça e gênero. Muitos leitores, como eu, podem terminar o livro sem conseguir guardar plenamente na memória as suas cinco definições e seis postulados do pensamento interseccional. Ainda assim, os pontos chave estão lá. Eles incluem a insistência de que nenhuma opressão é consistentemente experienciada como mais importante do que as outras. E nenhuma opressão causa unilateralmente as outras. A exploração de classe e outras formas de opressão são, em um termo cunhado por Bohrer, “equiprimordiais”. Além disso, diferentes opressões devem ser pensadas “simultaneamente e em conjunto uma com a outra” (p. 92). Cada indivíduo vive em vários locais sociais diferentes ao mesmo tempo. O racismo foi central para o assassinato de Eric Garner pelo Departamento de Polícia de Nova York, por exemplo, mas a classe é importante para entender por que a polícia foi atrás de Garner por vender cigarros na rua, enquanto os crimes muito maiores de criminosos corporativos ficam impunes. Da mesma forma, enquanto a escravidão teve fontes econômicas profundas, o racismo é essencial para entender o que Orlando Patterson chamou de a “morte social” que a escravidão negra provocou nas Américas.

Outro insight importante da interseccionalidade é que todo grupo é heterogêneo, atravessado pelas diferentes realidades das pessoas que o compõem. Longe de celebrar identidades acriticamente, aponta Bohrer, a teoria da interseccionalidade vê toda identidade como uma coalizão complexa. Como escreve Linda Martín Alcoff, por exemplo, os trabalhadores podem estabelecer uma causa comum além das suas diferenças, mas apenas trabalhando com suas diferenças, e não ignorando-as. A solidariedade nunca pode ser baseada puramente na semelhança ou no menor denominador comum. Bohrer, portanto, concorda com David Roediger, um marxista pioneiro nos estudos sobre branquitude, de que a esquerda deve rejeitar escolher entre projetos amplos de classe, como assistência médica universal, ou demandas específicas referentes a raça, como reparações.


Além disso, embora o racismo e o sexismo sirvam aos interesses do capital em geral, às vezes eles até se chocam com os interesses do capital. Isso aconteceu quando “as colheitas maduras da Califórnia apodreceram nos campos porque os níveis de política anti-imigração atingiram níveis tão altos que muitas pessoas sem documentos deixaram de trabalhar para colhê-las” (p. 190). Por razões como essas, diz Bohrer, é necessário um “quadro interseccional” para “uma análise de classe boa, cuidadosa e profunda” (p. 112)

Coalizão ou síntese?


Isso a leva a discordar de vários outros marxistas que leram a teoria da interseccionalidade com seriedade e que tentaram responder tal abordagem. Ela critica o trabalho de David McNally e Susan Ferguson, por exemplo, que, segundo ela, argumentam que os insights úteis da teoria da interseccionalidade podem ser simplesmente “absorvidos” pela teoria feminista marxista da “reprodução social”. Bohrer discute a teoria da reprodução social de maneira positiva e detalhada, mas a vê como limitada por seu foco inicial na “situação da dona de casa da classe trabalhadora”. Ela duvida que a teoria da reprodução social, “desenvolvida para responder às mulheres brancas, da classe trabalhadora, heterossexuais, casadas, cisgêneras e saudáveis”, possa “responder de maneira produtiva, sensível e profunda à situação de pessoas que não se encaixam em nenhum desses lugares sociais” (p. 170n19). Aqui eu acho que Bohrer subestima o poder da teoria da reprodução social. Na verdade, Sara Farris em seu livro In the Name of Women’s Rights, que Bohrer menciona brevemente, usa a teoria da reprodução social de maneira brilhante para jogar luz sobre a opressão das mulheres imigrantes nos degraus inferiores do mercado de trabalho europeu. Bohrer não é totalmente clara sobre como o marxismo e a interseccionalidade devem ser reunidos. A certa altura, ela escreve que uma possível resposta aos problemas entre eles é uma síntese das duas abordagens teóricas (p. 118). Mais frequentemente, porém, ela rejeita qualquer desejo de unificar “interseccionalidade e marxismo em uma única teoria”, em vez disso, busca se apegar às “tensões criativas e dinâmicas entre tais abordagens” (p. 23). Aqui Bohrer não é tão convincente. Ao meu ver, manter o marxismo e a interseccionalidade apenas coexistindo lado a lado, como duas tradições mutuamente respeitáveis, mas distanciadas, minaria algumas das principais contribuições que o marxismo deveria trazer para o encontro. A compreensão feminista marxista do capitalismo generificado como um coerente, embora contraditório, modo de produção e reprodução social torna possível entender nossa ordem mundial como um todo, de uma maneira que a interseccionalidade por si só não consegue. E a compreensão marxista do modo capitalista como possuindo uma dinâmica inerente que nos permite entender a mudança e a transformação social, não apenas (obviamente) como produtos da luta, mas também como um potencial baseado na realidade objetiva. Também tenho reservas quando Bohrer cita aprovadamente a descrição da teórica da interseccionalidade Ange-Marie Hancock sobre “a relação entre ‘oprimido’ e ‘opressor’ como polivalente e contingente” (p. 171). A própria Bohrer enfatiza a necessidade de analisar “a posição complicada e contraditória das pessoas da classe trabalhadora como habitando ambas posições, a de oprimido e de opressor no capitalismo” (172). Seu lembrete de que trabalhadores brancos/homens/heteros/cisgêneros podem desempenhar papéis opressivos é bem aceito e importante. Na minha opinião, ele enfatiza o argumento central de Lênin de que precisamos construir um movimento da classe trabalhadora que vá além da estreita consciência de interesses de grupo e que se torne uma tribuna de todos os oprimidos. Os marxistas podem aprender com a minuciosa apreciação das complexidades da opressão que a interseccionalidade tem a oferecer, e o livro de Bohrer é uma contribuição para a compreensão dessas nuances e relações. Mas apenas uma síntese das duas tradições, fundada em um compromisso inequívoco de combater todas as opressões, pode nos equipar bem para mudar o mundo. 24 de março, 2020. Peter Drucker é um ativista gay / queer estadunidense que vive na Holanda desde 1993. Ele foi de 1993 a 2006 co-diretor do Instituto Internacional de Pesquisa e Educação (IIRE) em Amsterdã, escreveu livros e artigos sobre o movimento LGBT em todo o mundo. Ele editou e introduziu uma antologia pioneira sobre os gays do terceiro mundo e a esquerda, chamada Different Rainbows. Ele é o autor de Warped: Gay Normality e Queer Anti-Capitalism.


Nota [1] Nota da revisão: o autor está fazendo referência a abordagens marxistas que defendem que a “classe” “vem antes” (em primeiro lugar) em relação às outras opressões (“class first” Marxism).

99 visualizações0 comentário
Post: Blog2_Post
bottom of page