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Compreendendo Trótski (Ernest Mandel)

Atualizado: 5 de set. de 2020


Compreendendo Trótski

Ernest Mandel

Tradução de Marcela Borges

Revisão de Pedro Barbosa




Até agora, a trilogia de Isaac Deutscher “O Profeta” havia sido a principal obra sobre a vida de Leon Trótski. Agora, foi superada pelo livro magistral de Pierre Broué (Fayard, Paris 1988), diz Ernest Mandel, em uma extensa resenha (publicada originalmente na revista Quatrieme Internationale) [nota dos escritores de Socialist Outlook]


I


Não existe infalibilidade neste mundo. Trótski errou mais de uma vez em sua análise e especialmente em suas decisões políticas, assim como Lênin, Rosa Luxemburgo, Engels e Marx antes dele. Havia rachaduras em sua armadura – como há em todos os homens e mulheres. Mas sua armadura ainda era de ouro e inspirou nossa admiração. Continuará inspirando por sucessivas gerações de ativistas, intelectuais e leitores comuns. Esse grande revolucionário sobressai das páginas da biografia de Broué como uma personalidade extremamente atraente e humana – muito mais do que na lenda apresentada tanto por seus inimigos quanto por seus admiradores incondicionais. Ele não era de forma alguma o rígido, autoritário e arrogante líder retratado por seu amigo Lunatcharski, ainda que fosse um homem completamente absorvido por seus sucessivos projetos políticos/organizacionais. Trótski era muito sensível, frequentemente inclinado a estabelecer acordos, e seu jeito reservado escondia uma capacidade de expressar profundo afeto. Sua habilidade de se comunicar com grandes multidões alcançou níveis raramente igualados neste século. Mas ele também sabia como conquistar e manter amizades e afetos de longa data, o mais conhecido destes sendo Christian Rakovsky.


Assim como todos os pensadores marxistas clássicos, seus interesses não eram limitados a política e economia, mas eram universais. Ele gostava de literatura, filosofia, história, ciências naturais, teoria militar, tecnologia, psicologia e pintura. Um dos ditados latinos favoritos de Marx, “Eu sou um homem e nada de humano me é estranho”, certamente se aplicava a Trótski. Um dos méritos menos óbvios do livro de Broué é mostrar a profunda humanidade de Trótski e transmiti-la ao leitor.


II


Trótski era um elaborador de táticas e de políticas mais fraco do que Lênin, o líder nato. Lênin era melhor em atrair ao redor de si amplos times de colaboradores habilidosos, mantendo suas contribuições específicas, mas integrando-as em uma coletividade cada vez mais efetiva. Esse foi um dos principais motivos do espetacular sucesso de Vladimir Ilyich na construção do Partido Bolchevique. Por outro lado, Trótski foi o mais ousado pensador teórico-revolucionário e estrategista gerado pelo movimento operário no século XX. Ainda hoje é possível se deslumbrar com a profundidade da análise de “Balanço e Perspectivas”, escrito em 1906. Toda a história do nosso século está resumida nesta análise.


Sozinho entre os marxistas, Trótski anteviu que no quadro de desenvolvimento desigual e combinado, determinado pelo imperialismo, o proletariado lideraria a primeira revolução socialista à vitória (podemos dizer as primeiras revoluções socialistas) não nos países industriais mais avançados, onde o movimento já era numericamente hegemônico e culturalmente mais forte do que em outros lugares, mas em um país relativamente menos desenvolvido, a Rússia, onde o movimento era politicamente o mais avançado, e onde a correlação de forças sócio-políticas era mais favorável devido particularmente à fraqueza e decadência da classe dominante.


Essa vitória desencadearia um processo de revolução internacional que eliminaria a subjetiva fraqueza do movimento operário na maioria dos países industriais mais avançados. Se isso não acontecesse, então manter o poder do proletariado na Rússia seria praticamente impossível. Podemos ver que todo o sucesso e tragédia da Revolução durante os últimos 70 anos foi então antecipado.


No entanto, a perda do poder direto do proletariado russo seguida pela derrota da primeira onda de revolução internacional não tomou a forma de restauração capitalista, e sim da ascensão do poder pela burocracia. Trótski não previu essa variável em 1906. Isso já o assombrava em 1922, como assombrou Lênin no mesmo período. Foi por isso que a ideia de “Termidor” dominou o pensamento e a ação de Trótski por 15 anos, se não até o seu assassinato por um agente stalinista. [O uso do termo “Termidor” se refere à Revolução Francesa de 1789, sendo o mês do novo calendário francês no qual os Jacobinos revolucionários, liderados por Robespierre, foram derrotados por uma ala da revolução que era reacionária, mas que não restaurou o antigo regime feudal. Aliás, essa analogia e preocupação foi levantada por Lênin antes de Trótski – nota do Socialist Outlook - S.O.].


Mas assim como a previsão da vitória de outubro já em 1906 e a intuição sobre o valor universal da estratégia da revolução permanente para todos os países menos desenvolvidos, o conceito de Termidor não é simplesmente uma transposição da experiência da Revolução Francesa para a Revolução Russa. Ele só faz sentido dentro do quadro de internacionalização da história e, portanto, da luta de classes que foi definitivamente aberto pela época imperialista.


Como classe, a burguesia russa foi esmagada e eliminada de todas as formas possíveis pela derrota na guerra civil. Ela não poderia retornar ao poder. Forças de restauração capitalistas poderiam emergir apenas da nova sociedade criada pela Revolução de Outubro. Elas apenas poderiam vencer em aliança com, e totalmente subordinadas ao, imperialismo. Mas o próprio imperialismo havia entrado em uma profunda e irreversível crise com a Primeira Guerra Mundial. Ele foi desafiado pelas sucessivas ondas de luta do proletariado nos centros industriais, por severas crises econômicas, pelos exacerbados conflitos interimperialistas e por levantes cada vez mais amplos dos povos coloniais e semicoloniais.


O destino dos ganhos remanescentes da Revolução de Outubro está, assim, diretamente ligado ao desfecho da luta de classes – mais precisamente de todo conflito sócio-político numa escala global. A questão do Termidor está inextricavelmente combinada com o processo de revolução e contrarrevolução mundiais. Praticamente sozinho entre os líderes comunistas, Trótski entendia isso já em 1923. Esse é certamente um dos leitmotifs (*1) do livro de Broué. Também é uma das razões pelas quais Trótski viu como decisiva a importância de criar a Quarta Internacional (*2) durante o período final de sua vida. Mesmo assim, o significado e conteúdo do Termidor Soviético permaneceu uma questão central nas lutas de tendências dos comunistas russos entre 1923 e 1933. Sobre isso, o livro de Broué nos dá mais detalhes e algumas conclusões importantes se comparado à trilogia de Deutscher.


A Oposição de Esquerda de 1923 tinha a noção correta do perigo da degeneração burocrática no partido e no Estado. Como colocam Marx e Engels: havia um risco de oficiais [funcionários] em tempo integral da classe trabalhadora se tornarem seus opressores. Isto foi o que obviamente aconteceu e pode ser resumido pela formulação posterior de Trótski da expropriação política do proletariado (o que traz consigo muitas consequências no nível econômico).


Mas tal contrarrevolução não é uma contrarrevolução social, e não envolve a restauração do capitalismo, assim como o Termidor Francês não implicou na restauração do Ancien Régime (*3) (o poder da nobreza semifeudal e da monarquia absolutista). Era uma contrarrevolução política construída sobre a base de uma sociedade criada pela revolução vitoriosa.


Para a Oposição, essa distinção fundamental não estava clara no primeiro período de sua luta. Para muitos de seus líderes, Termidor e restauração do capitalismo eram vistos como a mesma coisa, ou ao menos eram postos no mesmo balaio de uma forma excessivamente mecânica. Então, durante a luta de três frontes contra a burocracia, os “Nepmen” [homens da NEP – Nova Política Econômica] (a nova burguesia urbana de média escala) e o perigo do Cúlaque [Kulak] (*4), a Oposição foi submetida a um teste sério quando Stálin e sua fração deram um giro ultraesquerdista brutal em 1929 com a coletivização forçada da agricultura e uma industrialização alucinante. Um setor da Oposição, Piatakov e depois Preobrazhensky, Smilga e Radek, viu esse giro ao menos parcialmente como uma reabilitação de suas ideias. Eles usaram isso para justificar sua capitulação. Os outros setores da Oposição que permaneceram firmes às razões fundamentalmente proletárias, anti-burocráticas e internacionalistas para a luta contra a degeneração Termidoriana, continuaram a sua batalha sob a liderança de Trótski. Isso significava que eles tinham de elucidar o conteúdo do Termidor Soviético. Broué nos leva passo a passo através do desenvolvimento do pensamento da Oposição e de Trótski sobre isso. É uma parte fundamental de seu trabalho.


A hesitante e contraditória análise de Deutscher sobre o assunto não se sustenta como exame histórico geral. Como alguém pode falar em “revolução de cima para baixo”, forma como ele descreve a coletivização forçada, quando antes disso a contrarrevolução estava se sustentando em todas as áreas da sociedade? Trótski ilustra isso de modo surpreendente em “A revolução traída”, e sua análise geral é reforçada de forma ainda mais pungente pela crítica radical a esse período no glasnost (*5) da União Soviética atual. O grande desenvolvimento da indústria francesa, possibilitado pelos Jacobinos, não começou realmente até o Consulado (*6) e o regime Imperial. Mas isso justifica chamar esse período de “segunda revolução”? Os Planos Quinquenais (*7) foram o produto da Revolução de Outubro ou do stalinismo?


Hoje em dia, quando podemos elaborar um balanço conclusivo, pouca dúvida permanece. Qualquer coisa positiva construída durante o período 1929-1939 foi o produto da Revolução de Outubro. Mas os assassinatos em massa, a fome, miséria, opressão, desperdício e as absurdas desigualdades que acompanharam o que foi construído foram o produto do stalinismo, da ditadura burocrática e do poder de uma camada social definida. Deutscher subestimou seriamente tudo isso. O proletariado e os verdadeiros comunistas não reivindicam qualquer corresponsabilidade por todos estes desastres. Nós temos que lutar implacavelmente contra tais crimes, como fizeram Trótski e os trotskistas.


A contrarrevolução política vitoriosa na Rússia pode apenas ser derrubada por uma revolução política. No entanto, sempre houve um debate sobre a possível auto-reforma da burocracia. Também sobre essa questão Broué em geral está mais correto do que Deutscher. As erroneamente definidas “revoluções de cima para baixo”, como as do arquetípico Imperador Joseph II da Áustria ou a abolição da servidão pelo Czar Alexander II da Rússia, são caracterizadas pelo fato de que não eliminaram radicalmente todos os vestígios dos regimes decadentes, que devem ser destruídos para se garantir o progresso. Tais “revoluções” podem ser radicais. Elas podem libertar importantes forças progressistas. Mas sua função é, através de algumas mudanças, prevenir que haja revoluções populares. Precisamente porque elas não podem ser tão radicais quanto as verdadeiras revoluções populares, conseguem no máximo atrasá-las (às vezes até facilitam o desenvolvimento de uma revolução popular). A longo prazo elas não podem impedir a revolução popular. O que era verdadeiro para Alexander II ou Bismarck se provará, à luz da história, ser verdadeiro para Khruschev e Gorbachev – quaisquer sejam as diferenças entre nossos exemplos históricos.


É importante entender a dialética particular [existente] entre reformas radicais iniciadas do topo e as lutas de massas de baixo. Essa dialética é ainda mais importante e específica em sociedades pós-capitalistas, nas quais a burocracia não é uma classe, diferentemente da nobreza da corte austríaca com seu serviço civil (*8), ou dos Junkers (*9) da Prússia. Essa dialética é mais acentuada devido ao fato de que o proletariado tem uma enorme e potencial hegemonia sócio-econômica na URSS, além de qualquer comparação com a das classes populares nas sociedades de nossos exemplos históricos. Teria sido útil se Broué tivesse deixado este ponto claro.


(*1) – Leitmotiv: ideia, fórmula que reaparece de modo constante em obra literária, discurso publicitário ou político, com valor simbólico e para expressar uma preocupação dominante [Notas da Tradução – NT].

(*2) – Quarta Internacional: organização comunista internacional fundada em 1938, composta por seguidores de Leon Trótski. Tinha o objetivo declarado de ajudar a classe trabalhadora a alcançar o socialismo [NT].

(*3) – Ancien Régime: Antigo Regime [NT]

(*4) – Cúlaque: termo pejorativo usado no linguajar político soviético para se referir a camponeses relativamente ricos do Império Russo que possuíam extensas fazendas e faziam uso de trabalho assalariado em suas atividades. [NT]

(*5) – Glasnost: uma política por maior transparência nas informações dentro da União Soviética, iniciada por Mikhail Gorbachev em 1985. [NT]

(*6) – Consulado: regime político vigente na França revolucionária desde o golpe de estado de 18 de brumário (9 de novembro de 1799), que pôs fim ao regime do Diretório (1795-1799), até o início do Primeiro Império, em 1804, quando Napoleão Bonaparte foi proclamado Imperador dos Franceses. [NT]

(*7) – Planos Quinquenais: instrumento de planificação econômica implantado por Stálin na antiga União Soviética, com o objetivo de estabelecer prioridades para a produção industrial e agrícola do país para períodos de cinco anos. [NT]

(*8) – Serviço Civil: nome dado aos funcionários permanentes da burocracia que auxiliam nas políticas monárquicas. [NT]

(*9) – Junkers: membros da alta nobreza da Prússia que eram donos de terras e exploravam o trabalho de camponeses. [NT]



III


Apesar de todas as suas fraquezas, a trilogia de Deutscher (que alcançou um público muito maior do que a de Broué jamais alcançará) de fato teve o mérito histórico de quebrar a barreira de silêncio e calúnias que historiadores stalinistas e burgueses, assim como outros transeuntes e oportunistas de todo tipo, tentaram erigir por um quarto de século ao redor do líder da insurreição de outubro e fundador do Exército Vermelho. Fora do pequeno movimento trotskista e sua periferia, para quem esse livro obviamente não era necessário, ele marcou um caminho para a verdade para centenas de milhares de leitores. Longe de ser, como Broué em certo ponto sugere, uma apologia de Stálin, foi uma etapa essencial para a desmitificação de Stálin diante dessa parte da opinião global.


O mesmo comentário se aplica ao relatório de Khruschev no Vigésimo Congresso do PCUS (*10). Seria bastante irracional e de uma cegueira histórica defini-lo como uma “sutil apologia de Stálin”. Para milhões de comunistas ao redor do mundo ele marcou o fim do culto a Stálin, e não a sutil continuação de sua autoridade. Noventa e nove por cento das pessoas da época viram isto desta maneira também – mesmo os mais fortes defensores de Stálin entenderam.


A injustificada e injusta tentativa de Broué de sistematizar sua crítica a Deutscher se desmancha em dois capítulos nos quais a polêmica está estranhamente ausente: os capítulos que falam sobre 1920-1921, expressivamente intitulados A Crise da Revolução e A Retirada. Nós concordamos totalmente com o julgamento de Broué relativo aos eventos de Kronstadt (*11) – é matizado e solidamente reforçado por documentos dos arquivos imperialistas que o próprio Trótski desconhecia na época. Mas achamos que Deutscher explica o trágico papel de 1921, o ano decisivo da revolução, muito melhor do que Broué.


O contexto histórico é bem conhecido: houve uma queda catastrófica na produção; fome; dizimação numérica do proletariado; o recuo da primeira onda revolucionária no Ocidente com contra-ofensiva capitalista; mas também a derrota definitiva dos exércitos Brancos na Guerra Civil e o fim da intervenção militar imperialista contra a Rússia Soviética. Esse é o contexto no qual o Partido Bolchevique, com Lênin e Trotsky na liderança, optou pela Nova Política Econômica [NEP], organizaram o recuo e se posicionaram na Internacional Comunista (*12) contra o aventureirismo de ultra-esquerda e a teoria da “ofensiva” levantada por Zinoviev e Bukharin. Contra eles, Lênin e Trótski apoiaram uma política de frente única, dando aos comunistas uma linha para as massas e um modo de conquistar uma maioria antes de qualquer luta pelo poder. Tudo isso era lógico, coerente e baseado em um correto entendimento da realidade, da relação de forças e das tendências da situação. Broué (como Deutscher) corretamente enfatiza tudo isso.


Mas ao mesmo tempo, a atitude dos Bolcheviques perante as formas de se exercer o poder político na Rússia sofreu uma virada completamente ilógica e injustificada. Ao invés de dizer “a guerra civil acabou, e o inimigo da classe recebeu um golpe decisivo e não vai se recuperar tão cedo, então, devemos decisivamente ampliar a democracia soviética, particularmente dentro do partido, dos sindicatos e dos Sovietes (*13), os Bolcheviques, em sua grande maioria, incluindo Lênin e Trótski, deram um giro precisamente para a direção oposta, dizendo: “agora que a guerra civil acabou, a energia e o dinamismo políticos do proletariado vão arrefecer, junto com seu idealismo e comprometimento, então há um perigo mortal de que o retrocesso econômico se transforme em um retrocesso político; por isso, nós devemos fortalecer a disciplina, o controle de cima para baixo e a centralização. A democracia política deve ser radicalmente reduzida”.


Além disso, esse esquema de análise serviu como modelo – uma justificação, deveríamos dizer – para se acompanhar de modo general as medidas de liberalização econômica por um enrijecimento político. Isso se sucedeu por décadas, contradizendo todas as profecias e previsões dos dogmáticos liberais do Ocidente.


De fato, a análise estava errada. Ela levou a conclusões políticas desastrosas. É difícil mostrar que a ameaça ao poder Soviético pelos os homens da NEP (*14) era pior do que a de Kolchak (*15) ou Wrangel (*16). É ainda mais difícil explicar como uma classe operária que estava ausente da tomada de decisões políticas e que cada vez mais era reduzida ao papel de uma apoiadora passiva do aparato, era mais capaz do que uma classe ativa e intervindo conscientemente de lutar contra a “desenfreada” e “subterrânea” contrarrevolução. Novamente, dado o contexto econômico, os Bolcheviques deveriam ter entendido que o principal perigo não era a contrarrevolução burguesa, e sim a alienação e a passividade política da classe operária, que por sua vez abriria as portas para a contrarrevolução política, ao Termidor. Os altos e baixos da revolução, em última análise, dependem da correlação entre as foças sociais, e não do que acontece nos dois principais campos políticos. Dentro dessa correlação, o que acontece dentro da classe operária é no mínimo tão importante, se não mais importante, do que aquilo que acontece entre a burguesia e seus aliados.


Em um período de enormes dificuldades materiais para a classe operária, institucionalizar o poder do aparato e seus métodos de comando, reduzindo e exterminando a democracia dos trabalhadores, significa contribuir com um brusco declínio na atividade política da classe operária e com o seu enfraquecimento político, alterando assim a relação de forças às suas custas. Trótski e Lênin não entendiam isso em 1921. Eles entenderam um ano depois. Mas enquanto isso o dano já havia sido feito (não estamos dizendo que era irreversível). O regime unipartidário se tornou oficial. Foram banidas frações dentro do partido único (uma consequência quase inevitável do princípio de unipartidarismo, uma vez que cada fração é um segundo partido em potencial). Stálin se tornou secretário geral do partido único. Ao mesmo tempo houve um crescimento ultrarrápido e monstruoso do aparato do partido – algumas centenas de funcionários de tempo integral após a Revolução de Outubro, mas 15.000 em agosto de 1922.


O livro de Deutscher tem o mérito de mostrar a natureza radical e decisiva desse ponto de virada. Isso não se reflete nas páginas do livro de Broué. Além disso, Trótski, em “A revolução traída”, não moderou suas palavras. Em uma das mais importantes autocríticas de sua vida política, o que ele disse foi:


“A proibição de partidos de oposição trouxe consigo a proibição de frações. A proibição de frações resultou em uma proibição de se pensar de forma diferente da dos líderes infalíveis. O monolitismo (*17) partidário fabricado de maneira policialesca resultou numa impunidade burocrática que se tornou a fonte de todos os tipos de desvios e corrupção.” (New Park, 1967, p. 104-5)


Como no mundo um escritor como Deutscher, que dedica mais de um capítulo de seu livro a esse mecanismo, análise que foi confirmada pela história e repetida por muitas pessoas hoje na URSS ainda que não por Broué (ainda), pode ser caracterizado como um apologista velado de Stálin? Obviamente essa acusação simplesmente não se sustenta.


Existe outro argumento que se desenrola nas linhas seguintes. Enquanto Lênin e Trótski cometeram o mesmo erro político das proibições em 1921, e ainda que Lênin de fato tenha nomeado Stálin ao posto de secretário geral, ainda assim Trótski é mais culpado em razão de suas posições anti-democráticas sobre a questão dos sindicatos. Fazendo isso ele abriu caminho para Stálin. O novo posto deste significou a remoção dos apoiadores de Trótski – Preobrazhensky, Krestinsky e Serebriakov – da posição de secretários, após a derrota do bloco de Trótski/Bukharin na questão dos sindicatos.


No entanto, devemos matizar o julgamento feito sobre o erro de Trótski na questão dos sindicatos. Aqui, Broué tende a seguir o posicionamento incompleto de Deutscher sobre o assunto. De fato, a questão dos sindicatos como existia em 1920 não pode ser reduzida ao problema da (relativa) independência dos sindicatos perante o Estado, ou da extensão da ação autônoma da classe operária diante dos administradores de indústria (que eram cada vez mais burocráticos). Lênin estava certo e Trótski/Bukharin estavam errados sobre este ponto. Mas a questão dos sindicatos também envolvia a forma de gestão, o problema de “quem gerencia”.


Neste aspecto da questão dos sindicatos, Lênin defendia o princípio do comando feito somente pela gerência. Trótski/Bukharin, embora não levantando claramente a questão da auto-gestão (a Oposição Operária defendia a gestão pelos sindicatos, como constava no programa oficial do partido), sugeriram movimentos decisivos nesta direção em documentos que Broué, assim como Deutscher, não leva em consideração ou não conhece. Nós já nos referimos a eles em 1955 [1].


Olhando em retrospectiva, é evidente que não se pode impedir o processo de burocratização simplesmente defendendo a autonomia dos sindicatos contra os administradores que estavam separados da massa de produtores. A luta contra a burocracia deve ser levada adiante em pelo menos três frontes: defesa dos interesses econômicos imediatos dos trabalhadores; democracia socialista (classe operária e soviete) e sua institucionalização; e gestão operária dos locais de trabalho e da economia como um todo. Neste último ponto, pelo menos, Trótski estava à frente de Lênin em 1920.


(*10) – Vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética: evento realizado de 14 a 26 de fevereiro de 1956, no qual foram realizadas denúncias contra as falhas do regime de Stálin. [NT]

(*11) – Revolta de Kronstradt: insurreição dos marinheiros soviéticos da cidade portuária de Kronstadt contra o governo da República Socialista Federativa Soviética da Rússia, em 1921. [NT]

(*12) – Internacional Comunista: também chamada de Terceira Internacional, foi uma organização internacional fundada por Vladimir Lênin e pelo Partido Bolchevique em março de 1919. [NT]

(*13) – Sovietes: órgão criado pelos trabalhadores e soldados russos durante a Revolução de 1905. Neste órgão, os trabalhadores exerciam um poder ao mesmo tempo executivo e legislativo, elegendo seus representantes a partir dos locais de trabalho e quartéis. [NT]

(*14) – NEP, Nova Política Econômica: política econômica seguida na União Soviética entre o abandono do comunismo de guerra (praticado durante a guerra civil) em 1921 e a coletivização e renacionalização forçada dos meios de produção com a ascensão ao poder de Stálin em 1928. [NT]

(*15) – Kolchak: Aleksandr Vasiliyevich Kolchak foi um comandante naval russo, um explorador polar e antigo líder de parte do Exército Branco durante a guerra civil russa.

(*16) – Wrangel: Pyotr Nikolayevich Wrangel foi um barão, general do Exército imperial russo e mais tarde líder do Exército Branco durante a Guerra civil russa. [NT]

(*17) – Monolitismo: caráter do que é formado por um só bloco, um conjunto rígido, impenetrável. [NT]



IV


As hesitações de Broué sobre a questão central do pluralismo político e sobre o ano decisivo de 1921 são particularmente surpreendentes, uma vez que um dos principais méritos de seu livro é precisamente o modo como ele traz à tona a continuidade do pensamento e ação de Trótski enquanto um defensor intransigente da autoatividade e auto-organização da classe trabalhadora.


Trótski foi o primeiro teórico da organização em sovietes, de 1905-1906. Ele previu ainda naquela época que os sovietes floresceriam por toda a Rússia na próxima revolução russa. Lênin apenas recuperou esta ideia chave, que também vem de Marx e Engels, em seu livro “O Estado e a revolução”, de 1917. A Internacional Comunista generalizou esta ideia em 1919-1920. Foi transformada em um princípio universal aplicável a todas as revoluções de caráter predominantemente proletário, ao redor de todo o mundo. Rosa Luxemburgo, Gramsci e outros pensadores Marxistas revolucionários elaboraram mais profundamente este conceito em 1918-1920. Então Trótski já havia feito uma “descoberta” teórica com tal ideia em 1906.


Embora fosse o teórico e líder prático da auto-organização da classe trabalhadora, Trótski teve que refinar sua concepção a respeito do movimento operário organizado, especialmente depois que a divisão entre comunistas e social-democratas se cristalizou após 1919-1920. Lênin havia seguido o mesmo caminho em sua luta pela frente única, começando com “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” e depois com o Terceiro Congresso da Internacional Comunista. O foco mais preciso de Trótski no movimento operário levou à concepção da natureza orgânica deste movimento enquanto uma totalidade contraditória. Por um lado, existem diferenciações políticas, conflitos e eventualmente lutas bem difíceis, e por outro lado existe um reflexo contínuo de solidariedade de classe, luta comum, unidade de ação contra o inimigo de classe, contra perigos em comum e na busca de interesses comuns. Se isso é óbvio do ponto de vista econômico e justifica integralmente a linha de uma única confederação sindical da massa, é igualmente verdadeiro a nível político.


A análise de Trótski sobre o fascismo, sua definição do papel vital da frente única dos trabalhadores para interromper a ascensão dos nazistas na Alemanha, suas propostas táticas e sua incansável campanha a respeito do perigo mortal que a tomada de poder por Hitler representaria para o moimento operário alemão e internacional, estão entre as mais brilhantes contribuições de Trótski para o marxismo revolucionário. Broué demonstra aqui ter íntimo conhecimento sobre o que escreve. Os escritos de Trótski sobre o fascismo são um complemento indispensável para a teoria geral da auto-organização da classe trabalhadora. Através deles, é possível entender como os sovietes (conselhos operários) são tanto o instrumento mais efetivo e natural para a luta unitária como o instrumento mais efetivo para o exercício do poder pela classe trabalhadora. Em um desses incríveis insights que aparecem regularmente nos escritos de Trótski – Broué não gosta de chamá-los de “proféticos”, porque soa um pouco religioso, quando é na realidade um caso de combinação de análise científica com intuição –, ele previu, anos antes do evento, que os sovietes iriam surgir na Espanha primeiramente na forma de milícias antifascistas. Isto é exatamente o que aconteceu em 1936.


Isso obviamente não significa que a defesa intransigente do princípio de auto-organização da classe trabalhadora, que está no coração de toda a atividade política de Trótski – com a trágica exceção de 1921 –, não tinha absolutamente nenhuma fraqueza. Broué relata de passagem como Trótski, tal como Lênin, era um aliado de Kautsky contra Rosa Luxemburgo por volta de 1910, quando ela se posicionava a favor da greve política de massa. O sucesso de Rosa teria sido de suprema importância para o futuro do movimento operário alemão e para a luta de classes do país. A questão está intimamente ligada com a autoatividade e auto-organização da classe trabalhadora.


A história confirma que a consciência de classe “média” do trabalhador está muito conectada com a sua experiência de lutas concretas e, portanto, com as formas concretas de luta que eles vivenciaram. Teria sido útil se Broué tivesse enfatizado mais este ponto.


Devemos ser gratos a Broué por ter a coragem de desfazer, ao menos parcialmente, o tabu que ainda existe entre nós sobre os escritos do jovem Trótski – “Nossas tarefas políticas”. É um livro muito desigual, muito injusto com Lênin. No entanto, procurar ali, como certos historiadores fizeram, pelas sementes do stalinismo e da burocratização do partido e dos sovietes é debochar de todo um processo histórico complexo e concreto que produziu o stalinismo ao longo de duas décadas, envolvendo três revoluções e duas contrarrevoluções, a flutuante atividade de milhões de homens e mulheres, a variação das relações de forças de forças sociais colossais e suas inevitáveis repercussões no pensamento das lideranças, inclusive Lênin. Isto é particularmente mal conduzido, uma vez que “Nossas tarefas políticas” é uma declaração de guerra contra tal burocratização.


É difícil negar que o Lênin de 1905-1907 ou de 1917-1919 havia retificado algumas das formulações excessivas de “Que fazer?” sobre o papel radical, centralizador e de líder “jacobino” dos revolucionários profissionais. Ele obviamente tinha curvado demais a vara numa direção, e rapidamente curvou-a na outra direção quando insistiu, especialmente no Prefácio da coleção “Em doze anos”, na aplicação mais ampla dos princípios democráticos, na necessidade de eleição de líderes, de debates públicos e transparentes dentro de um partido de massas público e legal. Em um nível mais teórico, ele disse:


“É claro que a razão primária para esse sucesso [do partido de revolucionários profissionais] reside no fato de que a classe trabalhadora, cujos melhores elementos estão no Partido Social-Democrata [isto é, os marxistas], é diferente por razões econômicas objetivas de todas as outras classes na sociedade capitalista por ter uma maior aptidão para se auto-organizar. Sem esta condição, a organização dos revolucionários profissionais teria sido uma brincadeira, uma aventura, uma mera fachada. O panfleto “Que fazer?” em muitas ocasiões enfatiza que a única razão de existência de tal organização é o seu vínculo com a classe realmente revolucionária que vai espontaneamente à luta”. “Obras escolhidas”, Vol. 13 [traduzido do francês], destaque nosso.


Esta nos parece ser a formulação correta do problema da relação entre a organização de vanguarda (como uma tarefa específica a ser alcançada), a espontaneidade de massas e a auto-organização da classe trabalhadora, ainda que o termo usado por Lênin – “seu vínculo com” – poderia ser mais profundamente desenvolvido.


Tendo dito tudo isso, ainda assim o caso é que “Nossas tarefas políticas” de fato expressa a preocupação e alerta contra os riscos que qualquer partido corre quando um dos componentes dessa doutrina, e especialmente a prática do centralismo democrático, é desempenhada de uma forma unilateral, particularmente quando o partido exerce poder estatal e existe um declínio da autoatividade das massas. Broué fez um bom trabalho em trazer isso à tona. O tabu precisava ser desfeito.


Nossa conclusão é auto-evidente. A verdadeira auto-organização da classe trabalhadora, uma rede de sovietes com poder efetivo, envolvendo toda a classe trabalhadora ou ao menos a sua grande maioria, só é possível sobre a base do pluralismo partidário.


Isto não é verdade somente porque a classe trabalhadora na prática segue diferentes partidos e correntes políticas. Sufocá-los ou bani-los não é a mesma coisa que restringir os direitos e poderes da burguesia ou do imperialismo, mas é, ao invés disso, um ataque aos direitos e à iniciativa política de importantes setores da classe trabalhadora. Sem o livre debate e luta políticos, a educação política e a atividade da classe trabalhadora irão rapidamente degenerar. No início você terá um sistema de “seguidismo” [tailending] passivo, e depois obediência burocrática. A consciência e a inteligência das massas declinam. No final, a indiferença e o cinismo generalizados substituem uma democracia dos trabalhadores viva.


A grande Rosa Luxemburgo foi a primeira a entender esse problema, apesar de seu apoio apaixonado à Revolução Russa e apesar do fato de que ela não estava ciente das circunstâncias particulares da guerra civil desencadeada em 1918-1920. De 1921 em diante, seu alerta (feito três anos antes, antes de ela ser brutalmente assassinada) se mostrou legítimo e foi confirmado pela experiência histórica:


“Se a vida política for sufocada em todo o país, então necessariamente a paralisia dominará os sovietes. Sem eleições gerais, sem liberdade de imprensa, de direito ilimitados de reunião, sem uma livre batalha de ideias, a vida irá murchar e entrar em estado vegetativo em todas as instituições públicas, e a burocracia restará como o único elemento ativo”. “Revolução Russa”, outubro de 1918 (Maspero, Paris 1969) [traduzido do francês].



V


O livro de Broué nos ajuda a responder a pergunta que surge da história da URSS no período de 1923-1940, sobre a qual se questionam historiadores e jovens (para não mencionar a vanguarda operária) – como se explica o ódio persistente e a perseguição implacável de Stálin contra Trótski, sua família e seus amigos?


Podemos colocar de um lado o aspecto puramente psicológico do fenômeno – rivalidade pessoal, ciúmes, inveja, sentimento de inferioridade intelectual que alimentava um forte sentimento de culpa, paranoia endêmica que no final se transformou em uma paranoia universal e monstruosa. Tudo isso é verdade. Mas é absolutamente insuficiente para explicar como um indivíduo com tais características pôde expressá-las de um modo quase ilimitado em um país enorme que havia emergido de uma espetacular experiência revolucionária, que tinha liberado não somente energias econômicas como também a potencial emancipação moral e cultural de milhões de seres humanos.


Nos aproximamos de uma explicação científica e coerente se focarmos no papel político dos dois protagonistas desse drama como representantes, em uma forma quase concentrada, dos interesses, tradições e “valores” das duas forças sociais antagônicas – o proletariado e a burocracia.


O ódio stalinista foi partilhado por uma grande parte da burocracia por muito tempo. A luta anti-burocrática de Trótski foi vista como basicamente correta por uma boa parte da vanguarda operária, em graus variáveis e em diferentes momentos – esta é a tragédia – por quase todos os velhos bolcheviques, incluindo aqueles que inicialmente apoiaram Stálin.


Na medida em que o poder se acumulou, evoluindo na direção do “poder pessoal”, e conforme o Termidor levou ao bonapartismo e à ditadura de Stálin, a sobrevivência de qualquer coisa ou pessoa que encarnasse o programa ou ideais de Outubro, ou mesmo a tradição emancipatória do marxismo, tornou-se inaceitável para os lacaios e representantes da contrarrevolução política. Uma vez que foi uma contrarrevolução política, e não social, o cordão umbilical com Marx e Lênin não pôde ser totalmente cortado, então o regime se disfarçou com a máscara monstruosamente deformada do “marxismo-leninismo”. Apresentou-se como o seguidor legítimo de uma tradição que profanava cada vez mais dia após dia. Assim, não era suficiente somente suprimir a principal pessoa protestando contra ela: todos os potenciais oponentes também deveriam ser condenados ao silêncio permanente.


Dentre esses oponentes, apenas Trótski apresentou não só uma denúncia do stalinismo como também uma explicação, baseada na tradição marxista, da ditadura burocrática. Inevitavelmente isso fez dele o principal inimigo do regime uma vez que seus escritos o minavam por dentro, ainda que apenas de forma teórica. Consequentemente a perseguição sistemática, a tentativa de apagar totalmente a memória e ideias de Trótski, corresponde a um reflexo de autodefesa e auto-justificação de uma casta privilegiada formada por centenas de milhares de indivíduos. Stálin era apenas o mais efetivo e inescrupuloso executor de tais atos criminosos. Essa já é uma explicação mais crível.


Esta explicação ainda é insuficiente. Dá-se muita “honra” à burocracia em geral e a Stálin em particular, se os apresentarmos como obcecados por ideias, programas, denúncias, análises críticas ou ao menos pela necessidade de auto-justificação ou identidade. Tudo isto desempenhou um papel na perseguição a Trótski, ao trotskismo e depois a todo o partido bolchevique. Mas existe mais aí do que isso.


O que fez Trótski e os bolcheviques-leninistas da Oposição serem o inimigo público número um de Stálin e da burocracia foi a inabalável capacidade e vontade de Lev Davidovich (Trótski) e seus companheiros de traduzir críticas e denúncias a Stálin, ao stalinismo e à burocracia em atividade política orientada à classe trabalhadora. Eles eram revolucionários, educados, fortalecidos por duas experiências de atividade em um período não-revolucionário, antes de 1905 e entre 1907 e 1913, com as quais aprenderam, em grupos menores do que a Oposição de 1928 ou 1932, a procurar atentamente pelo mínimo sinal de renascimento de atividade da classe operária. Eles tinham aprendido como intervir e inserir suas ideias dentro das mais limitadas e moderadas lutas. Eles tinham aprendido a arte da organização clandestina, construindo pacientemente vínculos, mesmo que com apenas dois trabalhadores da oposição em um local de trabalho, ou três estudantes rebeldes em uma universidade, ou duzentos trabalhadores envolvidos em uma ação de protesto ou em uma greve de pequena escala.


Stálin havia frequentado a mesma escola e conhecia as mesmas técnicas, e era obcecado pela ideia de que aquilo que Trótski e os bolcheviques haviam conseguido fazer contra o Czar, eles, mais cedo ou mais tarde, fariam contra ele. Ele pôde fazer alguns acordos com todo mundo sob certas condições (veja como ele lidava com as sucessivas ondas de capituladores entre 1928 e 1934). Ele não podia fazer acordos com ativistas de propaganda ou agitadores com uma intervenção direcionada à classe operária e aos jovens.


Ele não estava errado, ao menos do ponto de vista histórico de longo prazo. Só era necessário considerar a pergunta – Qual teria sido o destino da Revolução Húngara de 1956, o que teria acontecido com o Solidarnosc (*18), se houvesse existido nesses países um núcleo de bolcheviques-leninistas organizados? Ainda que tivessem uma força de apenas mil pessoas, mesmo sem um “Trótski”, eles não apenas teriam sido capazes de representar e concretizar a tradição comunista do país em questão como também se identificariam com qualquer protesto popular e qualquer demanda operária dos últimos 10-15 anos. Desta forma podemos entender a diferença que a vida ou a morte de Trótski e do trotskismo na URSS representava para as chances de sobrevivência a longo prazo da ditadura burocrática. O ódio de Stálin e sua perseguição a Trótski e o trotskismo eram, portanto, não apenas um simples ódio e perseguição de inimigos ideológicos. Era um ódio e perseguição contra os únicos comunistas capazes de ajudar a classe operária soviética a minar e derrubar os privilégios e o poder da burocracia.


O que Stálin e a burocracia odiavam em Trótski é o que os trabalhadores russos e os jovens iriam admirar e imitar nos anos seguintes: sua intransigente defesa dos interesses políticos e materiais dos trabalhadores; sua identificação com a luta anti-burocrática, pela democracia socialista; sua persistente luta contra a desigualdade social, privilégios, poder ilimitado, injustiça, e pelos direitos das mulheres, dos jovens e das pessoas de nacionalidades minoritárias contra a discriminação e a opressão.


Broué nos ajuda a reviver de forma meticulosa, mês a mês, ano a ano, um dos aspectos menos conhecidos da vida de Trótski como o inspirador e líder da Oposição após sua expulsão do PCUS (*19). É uma das maiores contribuições deste livro memorável. Graças a Broué esta impressionante continuidade político-organizativa não é excessivamente personalizada ao redor de Trótski.


Não existia apenas Trótski e seu filho Sedov. Houve numerosos outros ativistas excepcionais que foram trazidos à vida novamente por Broué. Ele os fornece um nome e uma identidade política. Eles estão entre os mais puros heróis e heroínas de nosso século. Nunca desistiram ou cederam ao “inevitável”. Nunca perderam a fé de que esse pesadelo iria acabar. Foram mortos junto com todo e cada um de seus companheiros. Como disse uma testemunha ocular: Eles foram derrubados como grandes árvores, tendo em seus lábios xingamentos a Stálin e uma palavra de ordem pelo poder soviético e a revolução mundial. Temos orgulho deles. No futuro, todos os trabalhadores da URSS terão orgulho deles. Graças a eles, nossa corrente é a única que consegue olhar o povo soviético nos olhos sem um senso de culpa, sem vergonha ou traumas. Esses heróis salvaram a honra e a continuidade do comunismo.


Em seu último discurso perante seus “juízes” no Terceiro Processo de Moscou (*20), o desafortunado Bukharin disse (talvez encobrindo alguns arrependimentos) que era preciso ser um Trótski para propor e cumprir tudo aquilo. De fato. Era preciso ser Trótski para incansavelmente prosseguir com a luta pela emancipação da classe operária soviética e internacional em meio aos terrores de Hitler e Stálin, na meia-noite do século. Graças ao livro de Broué milhares de contemporâneos agora entenderão isso melhor e entenderão que definitivamente não foi uma causa perdida.


(*18) – Solidarnosc: federação sindical da Polônia fundada em 17 de setembro de 1980 nos Estaleiros Lênin, em Gdańsk, sendo originariamente liderada por Lech Wałęsa.

(*19) – PCUS: Partido Comunista da União Soviética

(*20) – Processos de Moscou: uma série de julgamentos dos opositores de Josef Stálin ocorridos entre 1936 e 1938 na União Soviética, durante o Grande Expurgo.



VI


O livro de Broué cobre meio século de história mundial. É inevitável que não pudesse cobrir tudo. Podemos todos ter nossas opiniões sobre o que deveria ter sido mais desenvolvido, sobre o que poderia ter sido deixado de fora ou não.


Nós lamentamos que Broué não mencione o papel de Trótski como precursor na análise da minoria negra nos EUA [2]. Também lamentamos que ele não tenha mencionado o fato de que, sozinho entre os marxistas, Trótski previu em 1938 que se houvesse uma nova Guerra Mundial, todos os judeus da Europa estavam sob risco de serem fisicamente liquidados. Broué também não menciona a primeira grande derrota política do stalinismo, o julgamento do POUM (*21) espanhol, cujos representantes foram a princípio acusados de colaboração com Franco (*22) – uma mentira vil –, mas ao final foram sentenciados por terem tentado estabelecer a ditadura do proletariado.


Nós sentimos muito que após enfatizar o papel do camarada Badovsky de introduzir as ideias trotskistas na Polônia na década de 1950, ele não mencione o papel do nosso camarada Petr Uhl, a mais respeitada figura da oposição tcheca, continuamente atacado pela burocracia por seu trotskismo e que passou seis anos em uma prisão stalinista.


Ficamos particularmente surpresos pela forma como Pierre Broué lidou com a questão da reabilitação de Trótski e da atual campanha em curso sobre isso, não apenas entre jornalistas ocidentais procurando por um furo, mas também entre importantes correntes do movimento operário internacional.


Nós nunca pedimos que os governantes da URSS – os representantes políticos da burocracia – reabilitassem Trótski politicamente. Não concedemos a eles qualquer competência para isto. O julgamento do papel político de Trótski e de suas ideias é uma questão de história e da povo trabalhador soviético e internacional. Nunca duvidamos de seu veredito. No fim das contas, ele irá alcançar o próprio PCUS.


Por outro lado, nós exigimos a reabilitação penal e judicial de Trótski, e devemos continuar exigindo. Trótski e seu filho Leon Sedov foram acusados de crimes terríveis pela promotoria e juízes do primeiro Processo de Moscou. Foram declarados culpados em sua ausência, na sentença deste julgamento. Os vereditos do segundo e terceiro processos confirmaram esta decisão. Esta é a base dos motivos de Trótski ser julgado um “inimigo do povo” e de seus escritos terem sido banidos da URSS.


Além disso, a suprema corte da URSS solenemente rescindiu os vereditos dos três Processos de Moscou. Isso reabilitou os velhos bolcheviques, que foram sentenciados com base em alegações totalmente fabricadas. Deve ser feita uma exceção para Leon Trótski? O que mais além de um tribunal soviético pode reabilitá-lo judicialmente a esse ponto?


A questão também existe em um nível mais diretamente político. Milhares de corajosos homens e mulheres estão reivindicando na URSS a reabilitação judicial de todas as vítimas dos expurgos stalinistas, incluindo Trótski. Não é nosso dever elementar internacionalista apoiar esta luta? Broué provavelmente já mudou de posição a respeito disso. Se ainda não mudou, então esperemos que em breve mude.


Mas tudo isso altera muito pouco nossa avaliação geral sobre este livro. É um ótimo, um excelente livro por causa de seus objetivos, da energia que ele transmite, da fundamentação acadêmica e das conclusões a que chega, com as quais concordamos. É e continuará sendo um instrumento indispensável para a educação de quadros [cadres (*23)] e para o recrutamento de simpatizantes. Teremos que esperar um longo tempo por um livro melhor, talvez após todos os arquivos na URSS serem abertos, e possivelmente um pouco depois disso.


(*21) – POUM: Partido Operário de Unificação Marxista, fundado em 1935.

(*22) – Franco: referente a Francisco Franco Bahamonde, ditador militar espanhol que governou o país entre 1936 e 1975.

(*23) – Cadre: palavra francesa, referente a um grupo de pessoas que formam uma comunidade de aprendizado colaborativo.



Considerações finais


“Isaac Deutscher é um escritor mais talentoso do que Pierre Broué. Sua linguagem é mais impactante, tem um estilo mais vivo que é mais fácil de ler e tem um dom de resumir ideias e eventos de uma forma original. Mas Broué é um historiador melhor. Ele se utiliza de citações e fundamenta suas fontes. Ele evita julgamentos prévios. E agora, diferentemente da época em que Deutscher escrevia, ele consegue ter acesso e usar fontes de documentação suplementar e uma literatura secundária.


Acima de tudo, o terceiro volume de Deutscher foi marcado pela abordagem extremamente polêmica do autor quanto ao seu objeto em todas as questões em disputa entre os dois homens na década de 1930. Uma exame objetivo dessas questões com a informação que temos hoje nos leva à conclusão de que foi a análise de Trótski, e não a de Deutscher, que estava certa sobre a maioria delas. Dois importantes exemplos sustentam essa afirmação. Em primeiro lugar, o âmbito da crise social/política na França em 1934, culminando na Greve Geral de Junho de 1936 e na subsequente derrota da Greve Geral de 1938. Deutscher claramente subestima esse evento, ainda que a formulação de Trótski de junho de 1936 “A Revolução Francesa começou” seja discutível. Depois existe a questão da fundação da Quarta Internacional em setembro de 1938, reconhecendo a necessidade de continuar o trabalho iniciado em 1933 de pacientemente construir novos núcleos revolucionários tanto nacional quanto internacionalmente, e de consolidar esse trabalho o tanto quanto possível contra as pancadas que receberia dos efeitos da Guerra Mundial.


Sobre essas questões e muitas outras, Broué, que é obviamente politicamente mais próximo de Trótski do que Deutscher era, é também um historiador mais objetivo. Ele escreve como apoiador de Trótski, mas não como um não-crítico ou deslumbrado admirador. Ele nunca esconde sua imensa admiração e amor pelo seu tema – sentimentos que entendemos, uma vez que compartilhamos deles. Mas não cria a mitologia de um guru ou político infalível.”



Notas

1. E. Germain [Ernest Mandel]: The discussion on the trade union question in the Bolshevik party (1920-1), em Quatrième Internationale 1955, n. 1.

2. George Novack corretamente enfatizou a contribuição de Trótski sobre isso para o desenvolvimento do pensamento marxista, esclarecendo um aspecto central das tarefas políticas dos revolucionários nos Estados Unidos (George Novack: Leon Trotsky’s Contribution to Marxism em Proletarian Politics, Baroda/India 1980, n. 1/2). O mesmo artigo contém uma apresentação breve e lúcida da lei do desenvolvimento desigual e combinado que Trótski formulou primeiro, e uma defesa da teoria da revolução permanente que se baseia nesta lei. George Breitman desenvolveu a concepção marxista (trotskista) da questão negra nos Estados Unidos com maiores detalhes.

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