Como se formou a concepção leninista de partido
Antoine Artous
Transcrição de Marcelly Machado
Lenin, pai do estalinismo e do Goulag? A ideologia hoje dominante não para de repetir e de voltar, em todos os aspectos, a esta ideia – que entretanto não é nova. Marx, se não é poupado, pelo menos se beneficia de circunstâncias atenuantes: ele teria responsabilidade considerável, mas somente “teórica”, por um curso monstruoso da história humana. Mas Lenin! Ele criou o instrumento político da revolução! Ele permanece, depois de tanto tempo, o alvo de ataques incessantes.
Muitos creem ver na teoria leninista do partido a fonte do desvio estalinista, quando não o estalinismo ainda não maduro. Esta abordagem não é apenas de ideologias que se aliaram à social-democracia em sua defesa do “mundo livre” e dos “valores ocidentais”. Esta questão é colocada, depois de décadas, por numerosas correntes do movimento operário, e inclusive por muitos que hoje procuram o caminho do socialismo.
É por isso que nos parece útil consagrar um artigo à concepção de partido progressivamente elaborada pelo Partido Bolchevique e por Lenin – para eliminar numerosas lendas, falsificações e ideias falsas. E também para resgatar o que foi a contribuição de Lenin neste domínio essencial e mostrar sua atualidade.
A questão do partido em Lenin não é senão um elemento de um conjunto mais vasto: a elaboração e aplicação – através da revolução russa e, depois, das lutas revolucionárias que se desenvolveram na Europa nos anos vinte – de uma estratégia de tomada do poder pelo proletariado.
Esta elaboração não é, certamente, fruto do acaso, mas a consequência de uma evolução histórica. Com a revolução russa se abre a era das revoluções proletárias, uma nova época para as lutas da classe operária que é o produto direto da evolução do modo de produção capitalista e de suas contradições.
Lenin, como Trotsky, Rosa Luxemburgo e muitos outros, são confrontados com problemas que Marx e Engels tinham, com dificuldades, esboçado e que os dirigentes da II Internacional tinham rapidamente enterrado: quais são os objetivos e os instrumentos que o proletariado deve construir para tomar o poder?
Esta estratégia não saiu, acabada, de um cérebro genial, ela é o produto de experiências da luta de classes, de debates que começaram no início do século no interior do movimento operário e que a revolução russa nem de longe encerrou.
Esta estratégia foi sistematizada progressivamente. Os primeiros congressos da Internacional Comunista marcaram um primeiro passo importante nesta sistematização, sem entretanto a concluir. A história da teoria leninista do partido seguiu esta mesma trajetória, ela não foi senão um aspecto desta elaboração estratégica.
As datas estão aí para o provar. A criação do partido social-democrata russo, a primeira cisão entre bolcheviques e mencheviques, a publicação do Que Fazer? (1902) estão ligadas a afirmação da necessidade da luta política do proletariado, da construção de um partido e de sua autonomia em relação à burguesia.
A revolução de 1905 e, sobretudo, a de 1917 colocaram de forma radicalmente nova não apenas a questão da tomada do poder mas também a da relação entre o partido e uma nova forma de organização da classe, os sovietes.
Mas os problemas colocados por esta relação estão longe de terem se esgotado. As dificuldades (e o caráter radicalmente novo) da construção do jovem estado operário russo introduziram novas questões na relação entre partido e classe. Da mesma forma, as experiências revolucionárias que se desenvolveram então na Europa: debates com correntes ultra-esquerdistas para as quais o partido tinha se tornado inútil frente ao soviete ou o conselho operário; relação com os partidos reformistas, tática de frente única, unidade sindical.
Para reconstruir esta história, que é também a da teoria leninista do partido, seria incorreto tomarmos um único momento, um único texto (Que fazer?, por exemplo) para examinarmos discursos ideológicos sobre o “leninismo” que não dão conta de uma prática real e de uma teoria que se elabora pouco a pouco. Devemos, portanto, retomar estas datas, retomar a história real.
A necessidade de um partido operário
Comecemos pelo Que fazer?, que é, frequentemente, apresentado como o fundamento da teoria leninista do partido, ainda que o próprio Lenin tenha inúmeras vezes salientado seus limites. No segundo congresso do Partido do Operário Social Democrata Russo [POSDR], que se realizou em 1903, ele indica que “golpeou no sentido oposto, o bastão brandido pelos economicistas” [“vergou, no sentido oposto, a vara brandida pelos economicistas”].
Em 1907, em um prefácio a uma nova edição desta obra, ele escreveu: “O erro central dos que polemizam hoje contra o Que fazer? consiste em isolar esta obra da situação política histórica determinada em que ela nasceu (...) Que fazer? é um resumo da tática do Iskra e de sua política de organização dos anos 1901 e 1902 (...) Julgar este resumo sem conhecer e sem compreender a luta do Iskra contra o “economicismo” então preponderante, é simplesmente falar para as moscas”. [1]
O Iskra (Centelha) foi uma revista fundada, no exílio, por social-democratas russos como Plekhanov e Lenin (que mais tarde se dividiram entre bolcheviques e mencheviques) a fim de lutar contra o populismo, sobretudo contra o economicismo, e de criar um partido social democrata russo.
Na segunda metade do século XIX, o populismo conheceu um desenvolvimento importante na Rússia. Baseando-se no peso do campesinato e na manutenção de estruturas comunitárias (o “mir”), os populistas explicavam que “o homem do futuro na Rússia é o mujique, da mesma forma que na França é o operário”.
Estas correntes que se reclamavam do socialismo tinham suas cartas de nobreza. De fato, Marx e Engels escreveram no prefácio da tradução russa do Manifesto Comunista (1882): “Se a revolução russa for o sinal de uma revolução proletária no Ocidente e todas as duas se complementarem, a propriedade comunal atual da Rússia poderá servir para uma evolução comunista”. [2]
Um dos primeiros trabalhos de Lenin, depois de Plekhanov, foi mostrar que o desenvolvimento do capitalismo na Rússia havia tornado caduca essa hipótese, dissolvendo as formas comunitárias camponesas e fazendo do proletariado a classe revolucionária em todos os pontos do país.
O processo selvagem de industrialização logo foi acompanhado da deflagração das primeiras greves operárias reivindicativas. Desenvolve-se então no seio da nascente social-democracia o “economicismo”: a recusa de se fazer com que o proletariado assumisse a luta política contra o tzarismo. Seus objetivos são claros: “as propostas de criação de um partido operário independente são apenas a transplantação para o nosso país de objetivos estrangeiros (...) Para um marxista russo, há apenas um caminho: participar, isto é, contribuir para a luta econômica do proletariado e tomar parte da atividade da oposição liberal”. [3]
A necessidade de se construir um partido social-democrata ocorre, portanto, para Lenin – como também para Plekhanov – de uma primeira escolha estratégica: o papel central do proletariado na futura revolução russa e a necessidade dele se dotar de um instrumento para conduzir, com toda a independência, a luta política. Esta escolha permaneceria uma constante em Lenin. Plekhanov e os mencheviques se afastariam dela.
Que fazer?
Que fazer? resume, portanto, esta batalha, esforçando-se desde logo para definir o que é esta luta política necessária. E esta é, aliás, uma das primeiras contribuições de Lenin e uma de suas primeiras rupturas (não consciente) com a ideologia então dominante na Segunda Internacional.
Os setores dominantes da Internacional – mesmo aqueles que se opunham então ao “oportunismo” teorizado por Bernstein ou ao “ministerialismo” francês – tinham cada vez mais a tendência a reduzir a luta política da social democracia à luta parlamentar.
Sob o absolutismo tzarista, não existia este espaço. A luta política da social-democracia apenas poderia ser definida como uma luta no interior do conjunto da sociedade, preparando mobilizações políticas de massa contra a autocracia, pela sua derrubada.
Lenin não nega que os “economicistas” tenham uma concepção de luta política. Simplesmente, ela não era correta, ela é “redutora”, “sindicalista”, isto é, reformista. Ela é concebida como um simplesmente prolongamento da luta econômica, limitando-se a lutar por reformas legislativas e administrativas visando a melhoria das condições de trabalho.
Ora, este não é senão um aspecto do problema, porque a classe operária deve tomar a direção da luta contra a autocracia e contra todas as formas de opressão que ela faz pesar sobre a sociedade russa. Eis porque a consciência de classe social-democrata (revolucionária) somente pode surgir desta luta de conjunto: “a consciência política de classe apenas pode ser transmitida ao operário do exterior, isto é, do exterior da luta econômica, do exterior da esfera de relações entre operários e patrões (...) O conhecimento que a classe operária pode ter dela mesma está indissoluvelmente ligado a um conhecimento preciso das relações recíprocas de todas as classes da sociedade contemporânea, conhecimento não apenas teórico... ou melhor dizendo: menos teórico do que baseado na experiência da vida política”. [4]
Em consequência, a tarefa particular da social-democracia é conduzir campanhas de “denúncias políticas abarcando todos os domínios”. Campanhas que “são a condição necessária e fundamental do aprendizado pelas massas de sua atividade revolucionária”.
Mas Que fazer? é também muito marcado pela ausência de experiência de luta política de massa da classe operária russa. Ocupado em polemizar contra os “economicistas” que se contentavam em se colar às lutas reivindicativas, Lenin tem uma visão redutora da espontaneidade operária. Assim, ele afirma: “Por si mesmo, o movimento operário espontâneo apenas pode engendrar (e não engendra infalivelmente) o sindicalismo; ora, a política sindicalista da classe operária é precisamente a política burguesa da classe operária”.
Mas, em novembro de 1905, Lenin não hesitará em escrever: “A classe operária é instintivamente social-democrata, espontaneamente, e uma atividade social-democrata que já dura mais de dez anos não contribuiu pouco para transformar esta espontaneidade em consciência” [5]. E toda a experiência da revolução russa de 1905 e de 1917 está lá para provar como ele soube se apoiar sobre esta espontaneidade para impulsioná-la e inclusive impulsionar seu próprio partido...
Bolcheviques e mencheviques
O segundo congresso do POSDR assistiu a ruptura entre os bolcheviques (majoritários) e mencheviques (minoritários). Os motivos foram o artigo I dos estatutos que definiam a qualidade de membro do partido. Para Lenin, apenas poderia ser membro do partido aquele que tinha uma “participação pessoal em uma das organizações do partido”. Para Martov e os mencheviques, para ser considerado como membro, era suficiente exercer uma “atividade pessoal regular sob a direção de uma de suas organizações”.
Os mencheviques tinham portanto uma visão muito mais extensa das fronteiras do partido. Esta divergência remete a um contexto imediato: a vontade de Lenin de construir um partido de “revolucionários profissionais” adaptado às condições da luta clandestina contra o tzarismo, susceptível de ser um instrumento para a luta política.
Mas a divergência era de ordem mais geral, como explicaria Lenin em 1904: “Não se pode confundir o partido, vanguarda da classe operária, com toda a classe. Ora, é justamente nesta confusão (característica para o conjunto de nosso economicismo oportunista) que cai Axelrod, quando ele afirma: ‘Nós criamos naturalmente, antes de tudo, uma organização dos elementos mais ativos do partido, uma organização de revolucionários; mas partido de classe, nós devemos velar para não deixar fora do partido aqueles que, conscientemente – ainda que possa ser que não se mostrem ativos –, se liguem do partido’”. [6]
Quando a situação o permitir, veremos Lenin questionar a rigidez de um sistema de organização imposto pela luta clandestina. Mas ele jamais questionou esta clara delimitação do partido com a classe. Para ele, esta confusão entre classe e partido era sinal de oportunismo.
Porque, sob o capitalismo, em tempos normais, a classe operária não pode “adquirir o grau de consciência e de atividade de seu destacamento de vanguarda, de seu partido social-democrata” [7]. De fato, temos aí, na prática, uma ruptura com os modelos de partidos operários europeus social-democratas.
Esta ruptura pode parecer simplesmente o produto de uma teorização muito apressada das circunstâncias particulares nas quais militavam os social-democratas russos. De fato, mesmo empiricamente, era outra coisa que estava em jogo: a construção de um partido de tipo novo, correspondente a uma época nova que começava a nascer, a “da atualidade da revolução” (Lukács).
Mais imediatamente, esta vontade indomável de construir um instrumento centralizado para a luta política, que provoca a ruptura com os mencheviques, se clarifica bem rapidamente pela aparição de outras divergências.
Para Lenin e a maioria dos mencheviques, a futura revolução russa era caracterizada como uma simples revolução burguesa. Mas com duas visões muito diferentes. Lenin pensava que a burguesia liberal russa era incapaz de conduzir até o fim a luta contra o tzarismo e que as tarefas desta revolução deveriam ser conduzidas a seu desfecho por uma aliança entre o operário e o camponês.
Daí sua vontade de manter uma autonomia política absoluta frente a esta burguesia liberal. Os mencheviques, ao contrário, em nome do caráter burguês da revolução, desenvolveram um seguidismo cada vez mais acentuado frente aos liberais. A necessidade de um verdadeiro partido de ação para o proletariado era agora bem menor.
Partido e sovietes em 1905
Lenin sempre atribui uma grande importância à luta política e portanto à luta de partido: “A experiência mais rigorosa, mais completa e melhor definida da luta política de classe é a luta de partidos (...) Na sociedade burguesa ser sem partido é mascarar hipocritamente a adesão passiva (...) ao partido dos exploradores. A independência frente aos partidos é uma ideia burguesa. A ideia de partido é socialista” [8].
Deste ponto de vista, Lenin apenas prossegue e sistematiza as ideias de Marx, de Engels e da Segunda Internacional. Afirmar que a ideia de partido é socialista não é uma fórmula lapidar. Certo, a organização em partido concerne também a burguesia, mas não da mesma forma que ao proletariado.
Para a burguesia, a tomada do poder político é a consequência do desenvolvimento de um poder econômico, porque ela já está estruturada como classe sobre bases poderosas no interior da antiga sociedade. Quando a burguesia tem o poder, ela governa essencialmente através de seu estado.
Sua organização em partido, em correntes políticas, é uma característica permanente, mas muito menos vital para ela do que para o proletariado. Este não dispõe, no seio da sociedade burguesa, de nenhum poder econômico, social, político. É ele mesmo que deve produzir, em conflito permanente com a sociedade capitalista, suas formas de organização que lhe permitem se organizar como classe.
Não é, portanto, um acaso que os primeiros exemplos de partidos de massa, no sentido “moderno” do termo, tenham sido partidos operários.
A revolução russa fez surgir, pela primeira vez na história, uma nova forma de organização: os sovietes. Durante a revolução francesa ou quando da Comuna de Paris, aspirações à democracia direta já tinham se expressado claramente. Mas os sovietes foram mais além; o instrumento através do qual a classe operária se unifica como classe e lança as bases de um novo poder.
Em 1905, numerosos bolcheviques se integraram aos sovietes nascentes ou, como em Moscou, tomaram a sua direção. Em São Petersburgo, ao contrário, a desconfiança bolchevique se transforma rapidamente em oposição. Um dirigente bolchevique, Bogdanov, afirma “deve-se obrigar o soviete a aceitar o programa dos bolcheviques assim como a autoridade de seu comitê central, o que engendrará a sua absorção pelo partido... Se o soviete se recusar a seguir este caminho, os bolcheviques deverão abandonar e denunciar sua política”. [9]
Não se trata de um simples reflexo conservador, mas de uma leitura particular do Que Fazer? cuja lógica era de subordinar a classe ao partido. Lenin polemiza publicamente com esta posição defendendo a autonomia dos sovietes frente ao partido: “Na luta, nós somos obrigados a marchar juntos, conservando nossa plena independência política; o soviete, é uma organização de combate e deve permanecer enquanto tal... Nós não recusamos uma composição tão extensa e tão diversificada, nós desejamos”. [10]
É interessante ressaltar que, para argumentar a especificidade do soviete frente ao partido, Lenin retoma diretamente as posições que ele defendia no Que fazer? sobre os sindicatos. Ele se opunha então (e a partir daí não alterou sua posição) à ideia de que o combate econômico “fosse travado apenas pelos social-democratas ou unicamente sob a bandeira da social-democracia” [11]. O mesmo vale, explica ele, para a luta política travada pelos sovietes.
É certo que seria necessário atingir-se 1917 para que Lenin (como aliás a imensa maioria dos revolucionários) percebesse o alcance histórico novo dos sovietes e o modo como eles transformaram a visão tradicional das formas de organização que deveria adotar o proletariado para se constituir em classe e tomar o poder político.
Mas então, ao escrever O Estado e a revolução, ao teorizar toda a lógica da democracia soviética e o caráter universal dos conselhos operários na luta pelo poder do proletariado, ele soube tirar as lições essenciais desta experiência. Os mencheviques, que em 1905 tinham sido muito mais “flexíveis” que os bolcheviques face à aparição dos sovietes, freavam então abertamente o seu desenvolvimento: é verdade que se tratava então da conquista do poder pela classe operária...
O centralismo democrático
Tem-se frequentemente apresentado a ruptura entre bolcheviques e mencheviques como resultando da adoção de métodos organizacionais muito diferentes. Se esquece que as duas correntes, sob as imposições da clandestinidade, desenvolviam uma prática semelhante: a regra era a cooptação e não a eleição. Mencheviques e bolcheviques explicavam, aliás, que se tratava de uma exceção.
A revolução de 1905 transforma profundamente as condições de construção do partido, devido à mobilização massiva dos trabalhadores e às possibilidades da atividade política legal. As reações de Lenin a esta nova situação foram radicais.
No passado certos mencheviques o tinham criticado de querer, através de seu centralismo, impor o poder dos intelectuais radicais sobre a classe operária. Eles se esqueciam que, devido a condições objetivas, a composição do conjunto das correntes social-democratas russas era pouco proletária.
Quando as massas operárias se colocaram em movimento, Lenin não cessou de insistir sobre a necessidade de um recrutamento massivo e de um esforço particular não apenas para integrar os operários ao partido, mas para conduzi-los às diferentes instâncias de direção. Ele se chocou, assim, com os “aparatchiks”, os militantes clandestinos dos anos precedentes que tinham frequentemente reflexos conservadores. Lenin teve então a mesma atitude que nos primeiros meses da revolução de 1917.
É também neste período que foram profundamente transformadas as regras de funcionamento do partido. No congresso bolchevique de Londres (abril de 1905), Lenin fez votar uma resolução defendendo “a preponderância completa do princípio eletivo”. Os poderes muitos importantes que tinha o comitê central no período anterior foram reduzidos. A “autonomia dos comitês” foi reforçada; o comitê central não podia dissolver ou nomear comitês locais sem a aprovação de dois terços de seus membros, ele não podia mudar a composição destes comitês sem o acordo de seus membros.
Assim se elabora a noção do centralismo democrático que o congresso do partido de Estocolmo (1906), reunindo desta vez os mencheviques e os bolcheviques, fez sua, por iniciativa de Lenin. A partir daí, os bolcheviques sempre se reclamaram dela.
Estas observações históricas não são inúteis frente aos que – confundindo leninismo e estalinismo – explicam que a melhor ilustração do centralismo democrático se encontra no Que fazer?...
Junto com a clara delimitação entre o partido e a classe, o centralismo democrático se tornou um dos princípios da teoria leninista da organização e foi assim definido em 1906: “O princípio do centralismo democrático e da autonomia das organizações locais significa precisamente a liberdade de crítica, completa e para todos, enquanto ela não é um obstáculo a uma unidade na ação determinada e não admite toda crítica que destrói a unidade na ação decidida pelo partido”. [12]
Deve-se ainda precisar que o centralismo encontra suas raízes na necessidade da luta centralizada contra o estado burguês e da forma de organização particular que daí decorre para o partido. Assim, em 1903, mencheviques e bolcheviques recusaram-se a conceder ao Bund (organização operária judaica) uma autonomia própria no partido. Da mesma forma, embora os bolcheviques defendessem o direito à autodeterminação para todos os povos oprimidos pelo estado tzarista, eles estavam, todavia, organizados em um único partido centralizado.
A liberdade de discussão era compreendida como possibilidade de reagrupamentos internos (tendências, frações) para a defesa de suas ideias. Estes debates frequentemente eram conduzidos publicamente, através dos diferentes órgãos de imprensa. Esta tradição, aliás, repercutirá nos partidos comunistas nascentes da Europa nos anos vinte.
Marx e Lenin
Se desenvolve, portanto, através da revolução russa, formas de organização (partido “leninista”, sovietes) que rompem com a tradição do movimento operário, da Segunda Internacional, e vão desembocar na criação da Terceira Internacional. Para compreender a amplitude destas transformações, deve-se voltar mais atrás.
Algumas vezes, Lenin é apresentado como um simples continuador de Marx sobre as questões do partido, quando na verdade ele introduziu rupturas profundas. Marx e Engels não cessaram de combater as correntes proudhonianas ou bakuninistas com o objetivo de que o proletariado conduza a luta política e se constitua em partido. Mas este combate, que pode ser reconstruído, se revelou cheio de evoluções.
No Manifesto Comunista (1848), eles não colocam para a França, a Alemanha... a perspectiva imediata de criação de partidos operários independentes, mas uma política de apoio crítico a diversos partidos burgueses de oposição. Quando eclode a revolução alemã de 1848, que o Manifesto explica “seria o prelúdio imediato de uma revolução proletária”, Marx retorna à Renânia, milita no movimento democrático, chama seu jornal (A Nova Gazeta Renana) “jornal da democracia” e se opõe a alguns de seus amigos da Liga dos Comunistas que queriam organizar imediatamente o proletariado de maneira independente.
Não foi senão no último momento, imediatamente antes do triunfo da contra-revolução, que ele se engajou no caminho da criação de um partido operário independente. Além disso, ele tira um balanço crítico desta experiência na famosa “Carta do comitê central à Liga dos Comunistas (1850)”, na qual ele faz um chamado à “revolução permanente”. [13]
Em compensação, Marx e Engels jamais reviram as frases do Manifesto que definiam as tarefas e o lugar dos comunistas: “Eles não formam um partido distinto oposto aos demais partidos operários. Eles não têm interesses que os separam do conjunto do proletariado. Eles não estabelecem princípios particulares sobre os quais pretendem modelar o movimento operário (...) Na prática, os comunistas são portanto a fração mais resoluta dos partidos operários de todos os países (...) O propósito imediato dos comunistas é o mesmo de todos os partidos operários: constituição do proletariado em classe, derrubada da dominação burguesa, conquista do poder político pelo proletariado”. [14]
Não há razão para se ver aí a simples expressão do estado embrionário no qual se encontrava o movimento operário naquele período, onde não existiam senão dois partidos operários (na Inglaterra e nos Estados Unidos) – que, além disso, não tinham nada a ver com o que seriam mais tarde os partidos social-democratas.
Marx e Engels definiram, de fato, os princípios gerais que guiariam continuamente a sua ação. Para eles, a constituição do proletariado em classe e a construção do partido são organicamente ligadas no mesmo processo histórico que varria, pouco a pouco, todas as seitas pré-existentes.
As diferentes organizações que eles construíram são simples etapas, instrumentos conjunturais a serviço deste objetivo geral. Partido e classe são uma unidade. Seu problema não era, pois, tanto definir formas organizacionais, mas sim indicar incessantemente o objetivo: constituir a classe em partido.
Não que eles se desinteressassem das batalhas políticas concretas. Ao contrário, na Liga dos Comunistas ou mais tarde no interior da Primeira Internacional, eles estiveram mergulhados até o pescoço. Em compensação, embora eles tenham conduzido uma batalha incessante sobre a necessidade do partido, jamais produziram uma “teoria” sobre suas formas de organização, suas relações com a classe, etc.
Eles se limitaram a afirmação de algumas concepções gerais que eram o produto direto de sua visão da emancipação do proletariado. Assim, eles lutaram continuamente contra toda forma de estruturação em “sociedades secretas” que reproduziam o funcionamento das seitas pré-socialistas e se opunham ao processo de autoemancipação da classe operária. Eles defenderam, também contra Bakunin, um mínimo de centralização necessária à luta política.
“A fração mais resoluta”
A única linha de ruptura prática, organizacional, que Marx introduziu no interior do movimento operário nascente, foi a necessidade do proletariado lutar pelo poder político e constituir-se em partido (combate contra os proudhonianos, ruptura com Bakunin) e da independência deste partido frente à burguesia e ao estado (luta contra Lassalle).
Entretanto, Marx e Engels não se limitaram a esta simples elaboração estratégica. Assim, tirando as lições da Comuna de Paris, Marx escreve, em 1871 que “a classe operária não pode se contentar em tomar o aparelho do estado tal como ele é e fazê-lo funcionar por sua própria conta” [15]. Ele considera esta lição suficientemente importante para escrever no prefácio da edição de 1872 do Manifesto do Partido Comunista que este texto se contentava em afirmar a necessidade da tomada do poder político, que ele envelheceu neste ponto e que devia integrar os ensinamentos da Comuna.
Neste mesmo momento, Marx e Engels desenvolviam um debate feroz contra Bakunin, no interior da Primeira Internacional, que terminaria numa ruptura. Nas ideias que Marx e seus partidários defenderam, nas resoluções que eles escreveram, se encontra simplesmente a necessidade de constituição do proletariado em partido, da luta política pelo poder, sem referência aos ensinamentos da Comuna.
Esta mesma ausência é encontrada, por exemplo, na formação da social-democracia alemã. Em 1892, quando representava ainda a ortodoxia marxista, Kautsky escreve, em um comentário ao programa de Erfurt que seria traduzido em muitas línguas e aparecia um pouco como um novo manifesto: “Enquanto existir o estado moderno, o centro da ação política será sempre o parlamento. [O proletariado luta] para que ele deixe de ser um simples meio de dominação da burguesia”. [16]
Ninguém se amotinou então. É verdade que se, quando do segundo congresso da Segunda Internacional (Zurich, 1883), a questão da luta política esteve no centro dos debates, as resoluções finais apenas retomaram o espírito daquelas da Primeira Internacional, sem fazer a menor referência às lições da Comuna.
Em 1910, quando Rosa Luxemburgo rompeu sua aliança com aquele que então se tornou o “centrista” Kautsky, ela não combateu o parlamentarismo que, todavia, era o que explicava fundamentalmente a evolução direitista do “papa do marxismo”.
É apenas em 1912 que um representante da esquerda, Anton Pannekoek critica Kautsky neste terreno. Este pode responder abertamente: “O objetivo da nossa política permanece idêntico ao que sempre foi: conquista do poder de estado através da obtenção da maioria no parlamento, e da evolução do parlamento ao papel de instância dirigente do governo. Não existe, portanto, nenhuma questão de destruição do aparelho de estado”. [17]
Não se trata, naturalmente, de explicar a evolução da Segunda Internacional pelo “esquecimento” das lições da Comuna, mas de evidenciar as bases programáticas sobre as quais se desenvolveram, no século passado, os partidos operários, mesmo quando eles se reclamavam explicitamente dos ensinamentos de Marx.
Se Marx e Engels se prenderam às linhas de clivagem descritas acima para delimitar os partidos operários, é porque a questão fundamental do período histórico em que eles militaram foi a necessidade de constituição do proletariado em classe através de suas organizações e, antes de mais nada, seus partidos. E não a luta pelo poder.
A atualidade da revolução
O leninismo é elaborado em um novo período: o da “atualidade da revolução”. Não se trata mais apenas do proletariado se constituir em partido distinto, mas de lutar pelo poder.
As lições tiradas por Marx da Comuna de Paris, que não se destacavam imediatamente para o período precedente, se tornaram uma questão central. De maneira mais geral, as clivagens sobre a estratégia revolucionária para a tomada do poder tornaram-se determinantes para a estruturação do movimento operário.
Os partidos operários saídos da Segunda Internacional colaboraram ativamente com a burguesia ao se oporem “à conquista do poder político pelo proletariado”, quando esta conquista se colocou na ordem do dia. É, pois, justamente porque os comunistas, como explicava Marx no Manifesto, não tem “interesse que os separem do conjunto do proletariado”, que eles têm agora que formar partidos “distintos, opostos aos outros partidos operários” para cumprir as tarefas estratégicas colocadas pelo novo período.
Certamente, Lenin não sistematiza imediatamente esta orientação. Pelo menos até 1912, ele considera os bolcheviques e os mencheviques como duas frações públicas de um mesmo partido que, à imagem da social-democracia europeia, comportava um ala esquerda e uma ala oportunista. É por isso que suas batalhas pela reunificação com os mencheviques (que se realizava provisoriamente em 1906) não eram para ele uma simples manobra tática.
Diz-se que Lenin, após a traição de agosto de 1914 pelas direções dos principais partidos da Segunda Internacional, proclama a necessidade de se construir uma nova internacional. Mas quando ele propôs, na conferência dos bolcheviques de abril de 1917 – na qual suas teses de abril tornaram-se majoritárias contra os “velhos bolcheviques” – abandonar o nome de partido social-democrata pelo de comunista, ele só obteve um voto: o seu!
A revolução russa e as lutas revolucionárias que se deflagram então na Europa, ao colocarem concretamente a questão da tomada do poder pelo proletariado modificaram, portanto, profundamente a estruturação do movimento operário e as formas de organização da classe operária.
Mas se esquece frequentemente que, durante este período onde os bolcheviques começaram a teorizar sua experiência, o que se convencionou chamar de concepções leninistas de organização do proletariado para a tomada do poder comportava dois elementos estreitamente ligados: a questão do partido e a questão dos sovietes ou conselhos operários.
É em nome do poder dos conselhos operários que se organizaram rupturas nos partidos da Segunda Internacional e a criação da Internacional Comunista. Ao escrever O Estado e a revolução, Lenin retoma explicitamente o fio, rompido pela Segunda Internacional, das lições que Marx tinha tirado da Comuna. Mas, de fato, ele vai bem mais longe.
Para Marx, a constituição do proletariado em classe “para si” e a construção do partido eram duas facetas do mesmo processo histórico. A noção de classe e a noção de partido estavam de alguma forma confundidas. A social-democracia alemã ilustra plenamente esta visão: o partido (com seus movimentos de massa, seus sindicatos) representava o proletariado.
Nós vimos que Lenin, em sua polêmica com os mencheviques, explicava a necessidade de se estabelecer uma delimitação clara entre partido e classe. Mas este não é senão um aspecto de sua teoria. O outro aspecto é que são os conselhos operários e não o partido que se tornaram o lugar de unificação política do proletariado, da sua constituição em classe.
Quando se critica frequentemente o leninismo de fazer do partido o único representante político do proletariado, se rompe com esta lógica. Mesmo se, como nós vimos, ela não foi percebida, até pelos bolcheviques, de um dia para o outro.
O poder dos sovietes
As teses adotadas pelo primeiro congresso da Internacional Comunista (março de 1919) e escritas por Lenin são explícitas sobre o papel dos sovietes: “A essência do poder dos sovietes consiste em que a base constante e única de todo poder governamental é a organização das massas antes oprimidas pelos capitalistas, os operários e semi-proletários. (...) Apenas a organização soviética do estado pode realmente quebrar de uma vez e destruir definitivamente o velho aparelho burguês, administrativo e judiciário, que se conserva e deve-se inevitavelmente se conservar sob o capitalismo, mesmo nas repúblicas mais democráticas. (...) A Comuna de Paris deu um primeiro passo neste caminho, de uma importância histórica universal; o poder dos sovietes deu o segundo”. [18]
É a esta mesma conclusão que chegaram dirigentes do movimento operário europeu como Luxemburgo ou Gramsci. A questão central era reconhecer nos sovietes ou conselhos operários a base do poder proletário.
Isto porque toda uma série de correntes intermediárias, que não iriam romper com a Segunda Internacional, estavam prontas a “levar em conta” estas novas formas de organização. Assim, “Kaustky via nos conselhos operários e de soldados um fenômeno da mais alta importância; contudo, ele limitava rigorosamente a sua função e a descrevia como organizações de classe que, se eram aptas a resolver a questão da mobilização permanente das massas nos locais de trabalho, não tinham, entretanto, nenhuma vocação para se transformarem em instituição de estado”. [19]
Representantes da social-democracia austríaca, como Otto Bauer – que são apresentados às vezes como uma corrente (o “austro-marxismo”) que abriu uma terceira vertente entre o leninismo e a social-democracia – de fato defendiam neste terreno as mesmas concepções de Kautsky. Os conselhos são por eles apresentados como instrumentos de “democracia social” ou de “democracia econômica”, mas o lugar do poder político permanece sempre o parlamento.
Estas correntes, embora critiquem os aspectos mais direitistas da política da Segunda Internacional, embora criassem as vezes organizações independentes, não se orientaram jamais em direção da construção de partidos radicalmente novos porque sua estratégia permanece fundamentalmente a da conquista do poder atrás do parlamento.
Mas, no interior do movimento comunista nascente existiam também correntes “esquerdistas”, que também desenvolveram pontos importantes de desacordo com a política leninista: boicote sistemático das eleições, dos sindicatos, tática da “ofensiva em toda as frentes”.
Algumas destas correntes tinham uma tendência cada vez maior a ver nos conselhos operários não apenas uma forma de organização fundamental para a tomada do poder, mas a única forma de organização da classe, que questionava a antiga estruturação da classe operária em partidos e sindicatos, que fundia em seu interior a luta política e a luta econômica.
Isto era não ver que, sob o capitalismo, os sovietes apenas podem realmente existir nos períodos de intensas mobilizações, justamente porque eles são os órgãos de tomada do poder. Era não ver que até nos períodos revolucionários eles não questionam a necessidade de partidos e sindicatos, mesmo que eles transformem completamente as condições da luta de classes e, portanto, o seu lugar.
A frente única
Sob o impulso da Revolução Russa e das explosões revolucionárias em vários países europeus, se desenvolve uma visão um pouco simplificada das formas de organização da classe operária.
De um lado, os sovietes, órgãos do poder proletário. De outro, a reestruturação completa do movimento operário, sob a direção dos partidos comunistas construídos sob o cadáver da social-democracia e rodeados de múltiplas organizações de massa, organicamente ligadas a ele.
De um certo ponto de vista, o modelo da antiga social-democracia alemã não foi abandonado. Assim, “em sua formação, a Internacional Comunista pensava poder seguir o exemplo da Primeira Internacional, animada por Marx, englobando ao mesmo tempo organizações políticas e organizações sindicais. Ela pensava, dessa forma, assegurar uma unidade de direção revolucionária ao movimento operário” [20]. Assim, o segundo congresso da Internacional Comunista cria um “Conselho Provisório de Sindicatos Vermelhos”.
Esta perspectiva era sobredeterminada pela ideia de uma vitória rápida da revolução na Europa, mas se articulava também sobre uma certa visão da reestruturação do movimento operário. Bem rapidamente, discussões frequentemente tempestuosas conduziram à retificação desta perspectiva errada e se elabora a política de frente única, que foi adotada pelo terceiro congresso da Internacional Comunista (1921).
De fato, esta política questionava a visão simplificada que tinha podido se desenvolver. Certo, a necessidade da construção de partidos comunistas independentes não foi questionada, nem o lugar e função dos conselhos operários. Mas a política de frente única parte de uma constatação: a manutenção da existência de vários partidos operários; o fato de que os partidos reformistas, mesmo se sua direção é “burguesa”, se enraízam na classe operária e são também uma de suas emanações. Sinteticamente, os comunistas não são mais o único partido do proletariado, mas são o partido revolucionário que deve se provar e ganhar as massas para a ação através de uma tática apropriada.
Não é de se espantar que a direção estalinista, que sistematiza a “teoria” do partido único, não tenha jamais praticado uma verdadeira política de frente única, que implica no reconhecimento do parceiro como um partido operário. Como para os sovietes, se bem que num nível diferente, a frente única supõe que não se pense a batalha pela unificação política da classe como sendo a unificação através do partido.
Trotsky em 1932 resumiu bem a questão: “se no curso do período preparatório da revolução o Partido Comunista tivesse conseguido eliminar completamente das fileiras do proletariado todos os outros partidos e reunir sob sua bandeira, tanto política como organizacionalmente, a maioria esmagadora dos operários, os sovietes não teriam sido necessários”. Mas, completa ele, a experiência histórica provou o contrário.
Trotsky precisa também a ligação entre a questão da frente única e dos sovietes: “Da mesma forma que o sindicato é a forma elementar de frente única na luta econômica, o soviete é a forma mais elevada de frente única, quando chega para o proletariado a época da luta pelo poder”. [21]
Se o sindicato é uma forma elementar de frente única, isto significa que a criação de sindicatos organicamente ligados aos partidos comunistas, “sindicatos vermelhos”, não é a linha de trabalho correta. De fato, a Internacional Comunista revê sua linha, as cisões sindicais são sistematicamente apresentadas como o produto da política e das manobras de burocratas reformistas. A batalha pela unidade sindical, ligada é certo ao respeito pela democracia, ao livre jogo das diferentes correntes, se torna progressivamente um dos eixos de atividade dos comunistas.
A política de frente única conduz, portanto, a um questionamento da subordinação organizacional das organizações de massa ao partido e a compreensão de que estas organizações de massa devem ser os locais de unificação da classe operária, com base no respeito ao pluralismo das correntes existentes.
Outra consequência que decorre logicamente daí: estas organizações, contrariamente a um partido que agrupa os militantes com base num programa, não podem ser regidas pelo centralismo democrático. Elas devem encontrar – se elas pretendem organizar a classe em seus diferentes setores e níveis de consciência – formas de centralização mais flexíveis. A forma federativa, por exemplo, de uma velha tradição do movimento sindical.
A interrupção estalinista
Nada mais errôneo do que a visão de uma concepção leninista de partido – e de maneira mais geral das formas de organização necessárias ao proletariado na sua luta pelo poder – que teria nascido de uma só vez, que tomaria o aspecto, no próprio Lenin, de uma doutrina sistematicamente exposta em um texto.
Elaborada passo a passo, ao mesmo tempo que os outros aspectos da estratégia revolucionária, a concepção leninista do partido pode mesmo, às vezes, parecer contraditória. Ela não procura suprimir as contradições, mas dominá-las melhor para as superar. Contradição entre centralismo e democracia, tensões inevitáveis entre o papel dos sovietes e o do partido, relações sempre delicadas entre o partido, claramente delimitado do resto da classe, e a mobilização de massa dos trabalhos.
Contradições que advém, afinal, das próprias condições de luta do proletariado no sistema capitalista.
Sem falar dos que veem no leninismo a raiz do totalitarismo estalinista, alguns reprovam Lenin de ser portador de uma concepção “autoritária” de partido, de ter desenvolvido uma tendência sistemática a subordinar a classe ao partido.
Naturalmente se confundimos o leninismo com um modelo organizacional imposto pelas condições de luta contra a autocracia tzarista, podemos utilizar este discurso. Mas nos esquecendo de que o próprio Lenin foi o primeiro a questionar este primeiro modelo, logo que isto foi possível.
Apesar das condições dramáticas em que se realizou a revolução russa, Lenin jamais produziu uma teoria do partido único [22]. Por exemplo, a interdição, em 1921, das tendências e frações no interior do Partido Bolchevique (que se pode, a posteriori julgar ter sido um erro) foi explicitamente apresentada por ele como uma medida conjuntural e anormal.
Da mesma forma, pode-se avaliar que sob a direção autoritária de Zinoviev – que desenvolveu uma concepção sempre um pouco “burocrática” de partido – a Internacional conheceu formas de centralização muito ultimatistas, tanto mais que após a morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht não existiam direções de partidos nacionais que pesassem face à experiência e a autoridade dos bolcheviques.
Entre 1919 e 1921, a Internacional Comunista foi construída “na marra”, na perspectiva de lutas revolucionárias que poderiam conduzir rapidamente à tomada do poder em vários países. Para dispor de partidos comunistas importantes em vários países, a direção da Internacional Comunista não teve sempre paciência e flexibilidade, preferindo frequentemente a intervenção direta, e as vezes brutal, à construção mais progressiva de direções.
Lenin foi um dos poucos a se inquietar com esta “russificação” da Internacional, que conduzia à imposição de esquemas saídos diretamente da experiência organizacional russa em países de tradições diferentes.
Poderíamos continuar esta descrição – que já foi feita por outros [23] – para mostrar todas as dificuldades encontradas a nível nacional e internacional pelos bolcheviques. Mas isto era quase inevitável e, em todo caso, não tem nada a ver com o que se passa quando do triunfo do estalinismo. Para impor com sucesso o seu reinado, este teve, aliás, que destruir o que tinha sido construído, o Partido Bolchevique e a Internacional.
Opõe-se, às vezes, uma outra “teoria” à concepção leninista de organização do proletariado para a tomada do poder, a de Rosa Luxemburgo. Uma “teoria” que não é encontrada, porque, se por sua atividade na social-democracia alemã Rosa teve uma sensibilidade maior do que Lenin ao processo de degeneração da Segunda Internacional, ela não soube lhe opor mais do que o apelo à mobilização e a espontaneidade das massas. Ela não levantou a necessidade da luta pela construção de outras formas de organização de tipo novo. Sua fraqueza foi justamente não ter produzido uma teoria de organização do proletariado.
E não é um acaso se, quando ela se aproxima do bolchevismo em questões essenciais (papel dos sovietes, programa da revolução socialista, etc), ela se põe a construir o primeiro núcleo do futuro partido comunista alemão, sem entretanto se solidarizar com os dirigentes russos sobre o conjunto dos problemas políticos.
Não é de hoje que a luta contra o leninismo serve de cobertura ideológica à luta contra toda perspectiva revolucionária. O estalinismo – ao se apresentar como a continuação do leninismo através de uma falsificação histórica sem precedentes, cujos efeitos descobrimos a cada dia – prestou um serviço inestimável a todos os burgueses e social-democratas que há muito tempo desenvolvem esta cruzada.
Mas também temos que reconhecer que, para numerosas correntes revolucionárias que se desenvolveram no último período, a referência no leninismo colocou problemas e continua a o fazer. O rechaço ao estalinismo, a experiência de degeneração da URSS e a existência e a prática de partidos estalinistas tornam este debate inevitável e, inclusive, legítimo.
Se nós nos reclamamos do leninismo não é pelo prazer de nos colocarmos uma etiqueta a mais, nem pela mania de reproduzir o funcionamento do Partido Bolchevique neste ou naquele período – ainda que se tenha muito a aprender dos debates que tiveram lugar sobre estas questões neste partido e depois nos partidos comunistas nos anos vinte.
Se nos reclamamos do leninismo, é porque ele está estreitamente ligado – como nós tentamos mostrar neste artigo – à elaboração progressiva, através da Revolução Russa e depois de experiências como aquela da Alemanha, de elementos fundamentais de uma estratégia de tomada do poder pelo proletariado e das formas de organizações necessárias para atingir este objetivo.
A vitória do estalinismo interrompeu brutalmente este processo. Trotsky e mais uns poucos puderam prosseguir e aprofundar esta elaboração: análise das novas formas de dominação capitalista (fascismo); preservação e enriquecimento das conquistas dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista através da luta contra a ascensão do nazismo, da revolução espanhola, da frente popular francesa; análise da degeneração do estado operário soviético e das questões colocadas pela transição ao socialismo. Na época sua voz não encontrou muito eco.
Mas é sempre um espanto ver como indivíduos ou correntes que pretenderam, nos últimos anos, definir perspectivas revolucionárias, acreditarem estar inovando, mas na realidade não estarem senão repetindo velhas canções já ouvidas. Deve-se sempre discutir as palavras seriamente, a luz de experiências antigas e recentes. Mas nada deve nos impedir de dizer que nós já conhecemos esta música.
Assim, para tomarmos apenas um exemplo, as correntes “euro-comunistas de esquerda” se põem a explicar que se deve construir partidos de “novo” tipo (rejeitando o centralismo democrático, rapidamente assimilado ao centralismo burocrático estalinista). Eles elaboraram uma estratégia “nova”, pretendendo articular o sistema parlamentar e os conselhos operários em um processo prolongado e gradual de transformação social.
Eles não fazem, no fundo, mais do que retomar o discurso dos “austro-marxistas”, que nós já citamos acima, e que já explicavam que o caminho seguido pelos bolcheviques podia ser bom para um país atrasado como a Rússia, mas não para os países capitalistas modernos...
Pode-se jogar com as palavras, mas não com os elementos chave que estruturam uma perspectiva revolucionária. Portanto, nós nos reclamamos do leninismo.
* Transcrição extraída de “Perspectiva Internacional” (maio, 1985) por Marcelly Machado. No documento transcrito, não constam as notas do original.
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