Como mudar o mundo? ⎼ debates estratégicos
François Sabado
Tradução de Pedro Barbosa
Notas de introdução ao debate da universidade de verão de 2010
1) Esta é uma questão extraordinariamente difícil.
Primeiro porque estamos em uma nova época histórica, testemunhamos uma virada do mundo, uma mudança dos centros de gravidade, novas relações de força mundiais, combinadas com uma crise sem precedentes do capitalismo desde os anos 30. A amplitude dessas mudanças faz com que não saibamos quais serão as formas e os conteúdos das transformações ou revoluções do século XXI.
2) Em segundo lugar, porque estamos em um período político no qual as relações de forças foram historicamente deterioradas com a contrarreforma liberal e estamos há mais de 30 anos sem revoluções anticapitalistas ⎼ houve “revoluções” de veludo, laranjas, no oriente, mas não foram revoluções anticapitalistas ⎼ e portanto não temos experiências revolucionárias sobre as quais poderíamos nos apoiar... Em todo caso, desde a metade do século XIX, já houve períodos bastante longos sem revoluções.
Trabalhamos, portanto, com hipóteses estratégicas abertas e não “modelos” a serem reproduzidos.
Como, então, mudar o mundo?
3) Antes de mais nada, por uma recusa do sistema capitalista atual. Não partimos de modelos revolucionários mais ou menos idealizados, mas de uma análise do capitalismo, de suas contradições: acumulação de riqueza e propriedade do capital em um polo e exploração e pobreza no outro, destruição do meio ambiente e do clima de um lado, defesa dos equilíbrios ecológicos do outro.
O custo social e ecológico do capitalismo é cada vez mais pesado para o povo suportar. Aqui e ali registramos não só cada vez mais catástrofes econômicas, sociais e climáticas, mas até mesmo sinais de barbaridade destrutiva. É preciso mudar de lógica e opor à busca máxima pelo lucro a satisfação das necessidades sociais. Este é fundamento de um programa de reivindicações imediatas, democráticas e transitórias ⎼ que visem uma nova distribuição das riquezas e incursões na propriedade capitalista ⎼, reivindicações que conduzam à conquista do poder pelos trabalhadores.
4) Depois, constatamos, apesar da profundidade de sua crise, que ainda há uma saída para o capitalismo, mas, e a situação atual o demonstra, não há capacidade de grande reforma ou de autorreforma do sistema. O capitalismo se depara com enormes dificuldades para resolver tais contradições.
São tais contradições que criam o terreno para reações, oposições e lutas, o que Marx chama o “movimento real” que desemboca na luta de classes.
Este movimento não é mecânico, automático. É necessário a conjunção de acontecimentos, de choques, de tomadas de consciência: vê-se de maneira concreta nas empresas como as pessoas reagem. Mas a “luta” existe sob diversas formas, de maneira multidimensional, lutas econômicas, mas também ecológicas, lutas contra a opressão das mulheres, lutas políticas e democráticas, todas girando em torno da oposição entre classes dominantes e oprimidas.
5) Mas estas oposições, a vontade das classes dominantes de preservar o poder ⎼ elas jamais esqueceram que a luta de classes existe ⎼ e a incapacidade histórica do sistema de se auto reformar levam a uma conclusão: para mudar o mundo, obter reformas radicais sérias ou mesmo se defender contra os ataques, é necessário um movimento de baixo, grandes mobilizações, grandes greves gerais e mais substancialmente uma revolta global contra o sistema. Foi o que produziu grandes movimentos históricos, as jornadas de 1848 e a Comuna na França, as revoluções russa, alemã e espanhola, na França em 1936, 1945 e 1968, nos anos 70 em Portugal e no Chile. As revoluções coloniais na China, Vietnã, Iugoslávia, Cuba, Nicarágua... Deve-se, é claro, avaliar essas revoluções, fazer um balanço crítico dessas revoluções e sobretudo do que aconteceu depois, mas as oposições de classe que determinaram tais movimentos ainda operam em nossas sociedades modernas. Não podemos visar as revoluções de amanhã sem aprender com as revoluções de ontem, e isso sem as repetir. E constatamos ainda que as grandes reformas parciais ⎼ tempo de trabalho, seguridade social, salários, direito ao aborto ⎼ são o resultado de mobilizações de massa ou o subproduto de grandes choques históricos.
6) Para que essas oposições ⎼ sem nada de automático ⎼ se transformem em uma crise revolucionária, são necessárias várias condições. Para Lênin, a crise revolucionária resultava de uma “grande crise nacional”. Ele apresentou quatro critérios para definir estas crises:
⎼ “Os de baixo não querem mais”
⎼ “Os de cima não podem mais”
⎼ “Os do meio oscilam com os…de baixo...”
⎼ “A existência de uma força de transformação revolucionária: consciência, organização dos setores mais mobilizados, direção, em resumo, um ou mais partidos revolucionários... para derrubar a ordem estabelecida.”
Isso é o que tem faltado em numerosas situações revolucionárias. Esse é o problema chave de hoje, como construir o processo de auto-emancipação dos trabalhadores.
7) É evidente que esse processo não é repentino, não é de curta duração. Isso nunca foi para nós a “grande noite”. Além disso, todas as revoluções mostraram que para substituir o poder das classes dominantes por outro poder de origem popular, é preciso todo um processo de mobilização, de experiências sociais e políticas em que os trabalhadores, os movimentos revolucionários ou de libertação mais conscientes mostram sua capacidade de hegemonia na sociedade... ligando suas necessidades a incursões na propriedade capitalista, a uma nova distribuição das riquezas, a uma apropriação social da economia.
8) Como indicamos, não existem modelos revolucionários, cada revolução teve suas especificidades, em particular em função das coordenadas da “crise nacional” que sobredetermina as condições de emergência de uma situação revolucionária. Por exemplo, em países com fortes tradições parlamentares, como a Europa ou a França, este processo também atravessará certas instituições burguesas, em diversos graus, em particular nos municípios, o que é uma das razões que nos fazem intervir regular e seriamente nas instituições. É o que nos leva a travar batalhas nessas instituições para defender as reivindicações populares, mas também uma série de lutas democráticas, pela representação proporcional nas diversas eleições, por reivindicações democráticas de ruptura com a V República, como a de uma assembleia constituinte.
Mas o que a natureza e o funcionamento das instituições capitalistas mostram é que “elas não são neutras”, são não só moldadas e marcadas pelas classes dominantes ⎼ basta ver o tipo de político que domina ⎼, mas até por definição estão subordinadas ao mercado: muitas coisas se discutem no parlamento, mesmo que os procedimentos parlamentares limitem tais discussões, sobretudo com as regras da V República. Mas uma coisa que nunca é discutida é o direito de propriedade capitalista e seus efeitos sociais e econômicos... nas empresas como na cidade e em um conjunto de esferas sociais. Todas as leis burguesas protegem esta propriedade. E mesmo quando houve na história maiorias eleitorais de esquerda em situações revolucionárias ⎼ a Espanha em julho de 1936 ou o Chile em 1973 ⎼, as classes dominantes violam suas próprias leis, suas próprias instituições, para reprimir o movimento de massas. É por isso que rejeitamos a ideia de Mélenchon da “revolução através das urnas”. Como instituições tão marcadas socialmente poderiam aceitar uma revolução?? Isso não se sustenta… e todas as revoluções mostraram que elas estavam em choque com o Estado e suas instituições… Quanto aos exemplos latino-americanos ⎼ Chávez e Morales ⎼ eles não são comprobatórios, primeiro porque as classes dominantes são mais fracas em tais países do que na Europa e porque nesses países houve uma ruptura parcial com o imperialismo mas ainda não uma revolução social anticapitalista.
É essa conformação das classes dominantes e do Estado que leva em situações de crise à “irrupção das massas na cena social e política”, fora das instituições capitalistas, com os mais frequentes movimentos de greves gerais que mostram a força do movimento de baixo, mas também de novas formas de organizações sociais ligadas aos problemas da vida cotidiana, do controle, do abastecimento e da gestão que, coordenando-se, devem aspirar ao poder. Há aqui, para nós, uma especificidade: diferente de todos os outros partidos, não lutamos para “tomar o poder para o nosso partido”, mas para que a auto-organização dos trabalhadores e da população ⎼ assembléias, conselhos, comitês ⎼ tome o poder.
9) Em todo esse processo, porque as revoluções que queremos são majoritárias, é necessário uma abordagem unitária, de unidade das organizações de trabalhadores, das formas de auto-organização, de unidade onde façamos a demonstração da eficácia dos anticapitalistas diante das direções burocráticas reformistas. Esse é um grande problema, porque temos uma classe assalariada de mais de 85% da população ativa, mas muito fragmentada, dividida.
Mas, ao mesmo tempo, uma abordagem de independência, porque não se pode levar a cabo, de maneira séria, uma perspectiva de transformação e gerir cuidadosamente as instituições e a economia capitalista, razão pela qual rejeitamos a participação ou o apoio a governos de centro-esquerda ou social-democratas e defendemos a perspectiva de um governo dos trabalhadores.
Essa dupla abordagem conduz, no plano das alianças, por um lado a uma política de unidade de ação ou de frente de resistência com o conjunto das organizações da esquerda social e política e, por outro lado, ao agrupamento dos anticapitalistas sob uma orientação independente do social-liberalismo.
10) Nas situações revolucionárias, abrem-se situações de duplo poder entre, por um lado, o velho poder e suas instituições ⎼ velho poder em crise, fraturado, contestado pelo movimento de baixo ⎼ e, por outro lado, o novo poder, as assembléias e conselhos de empresas e de cidades, que devem se coordenar e se centralizar e constituir um novo poder. Nos países com forte tradição parlamentar, para que os trabalhadores conquistem a hegemonia e reivindiquem o poder, é necessário que por sua experiência de controle, de gestão, de luta e de prática da democracia os novos organismos mostrem a sua superioridade com relação às velhas instituições. É preciso em particular vencer a batalha pela democracia. O processo revolucionário deve ser, para milhões de pessoas, mais democrático do que o Estado e suas instituições.
11) Esse processo é longo. Ele combina mobilizações sociais, auto-organização e batalhas institucionais, mas há um momento de “crise de crises”, de confronto, e ali, as classes dominantes que ao longo de todo o processo se opuseram às forças transformadoras, inclusive através da repressão, desencadeiam a contra-revolução. Foi o que ocorreu na Rússia no final de 17-18, na Alemanha em 18, 20 e 23, na Espanha em julho de 36, na Indonésia em 65, no Chile em setembro de 73. Frisamos que, assim que o poder escapa das classes dominantes, elas violam inclusive a sua própria legalidade para quebrar o movimento de massas.
É necessário destacar que em geral não são as revoluções que são violentas ⎼ elas são “boas crianças”, plenas de generosidade talvez até de ingenuidade ⎼, são as contrarrevoluções que são sangrentas: a aristocracia e os exércitos de toda a Europa se uniram contra a revolução francesa, os exércitos brancos na Rússia, o exército e as tropas de choque fascistas na Espanha nos anos 30, o exército no Chile em 1973.
Portanto, a ruptura, a quebra e a destruição da velha máquina de Estado é o momento decisivo de tal crise para que os povos tomem o poder. Todas as experiências históricas vão nessa direção. Portanto, é necessário uma estratégia que se apoie no próprio movimento de emancipação dos povos e que parta da defesa das necessidades sociais, dê prioridade à auto-organização, leve a novas instituições da democracia socialista e prepare o choque decisivo ⎼ inclusive militar, com experiências de autodefesa, de trabalho no exército ⎼ com o poder da burguesia. Essa estratégia geral tem implicações para a intervenção cotidiana de um partido anticapitalista: um programa de reivindicações transitórias, unidade de ação dos trabalhadores nas e das suas organizações, mas também dos movimentos sociais, mulheres, jovens, ecologistas, movimento de base e auto-organização, governo dos trabalhadores e não participação em coalizões de gestão da economia e das instituições capitalistas.
12) Esta abordagem constitui a diferença fundamental entre revolucionários e reformistas: não é que os revolucionários sejam contra as reformas e os reformistas sejam a favor. Na verdade, os reformistas de hoje nem mais defendem reformas.
Os revolucionários lutam por reformas ou para arrancar vitórias parciais, mas diferentemente dos reformistas eles não acreditam na neutralidade do Estado, não acreditam que a transformação da sociedade possa ser realizada através de um acúmulo gradual de reformas. Podemos arrancar reformas parciais, sobretudo se houver grandes movimentos, mas quando se coloca a questão de mudanças estruturais revolucionárias, as classes dominantes respondem com a repressão.
Mas as concepções dos reformistas, acreditando na capacidade do Estado de realizar transformações sociais fundamentais, os levam a se integrar nas instituições, a subordinar os movimentos sociais a elas, quando não a defender o Estado diante das revoltas populares. Quantas vezes os reformistas não desarmaram os trabalhadores, de início politicamente, em certas conjunturas até militarmente, e isso quando não os reprimiram para salvaguardar a assim chamada “democracia”, ou mais exatamente seus interesses no Estado e na sociedade capitalista?
De fato, como explica Daniel Bensaïd, “A frente única tem sempre um aspecto tático. As organizações reformistas não o são por confusão, inconsequência ou falta de vontade. Elas expressam cristalizações sociais e materiais... As direções reformistas podem então ser aliados políticos táticos para contribuir para unificar a classe. Mas elas permanecem estrategicamente inimigos potenciais. A frente única visa, portanto, criar as condições que permitam romper com essas direções na melhor relação de forças possível, no momento de escolhas decisivas, e destacar delas as mais amplas massas possíveis” ("Estratégia e partido", 1986).
Não sabemos quais serão os contornos das revoluções do século 21. Não temos uma estratégia definida e definitiva, mas precisamos, desde já, de uma série de referenciais estratégicos, em torno dos problemas da conquista do poder pelas classes populares. Um partido anticapitalista não pode ser construído sem ter respostas iniciais sobre “como os trabalhadores podem tomar o poder”. Sem essa reflexão, sem a preocupação estratégica, estamos condenados a uma intervenção “no dia a dia”, a uma sequência de táticas, sem visão de conjunto. É necessário, portanto, continuar essa discussão. Certamente ficaremos surpresos com as revoluções de amanhã, mas sabemos que haverá confrontação, pois já existe confrontação hoje nas lutas de classe. Preservar essa tensão revolucionária entre a situação atual e um horizonte de transformação da sociedade é indispensável para dar um sentido à nossa intervenção anticapitalista.
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